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2.2 Nas linhas do discurso entre metáforas e metonímias

Mas o que quer dizer este poema? - perguntou-me alarmada a boa senhora. E o que quer dizer uma nuvem? – respondi triunfante. Uma nuvem – disse ela – umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo... ( Senhora, Mario Quintana ) Nas teorizações do discurso na pauta do pós-fundacional, a retórica é percebida como um mecanismo importante nos jogos de linguagem, assim como no poema que abre essa seção. Segundo Laclau (2011), a retoricidade é inerente à significação na medida em que "sem um deslocamento tropológico, a significação não poderia encontrar suas próprias bases" (LACLAU, 2011: 197). Com efeito, uma das grandes contribuições da teorização do discurso nesta perspectiva foi a de oferecer subsídios teóricos que permitiram ampliar as ferramentas produzidas nos limites dos estudos da linguística e da semântica para a análise da tessitura do social. Laclau (2011) explica assim esse movimento de ampliação:

Como nos "jogos de linguagem" de Wittgenstein, as palavras e os atos (a que deveríamos de acrescentar os afetos) fazem parte de uma rede interdependente. As categorias linguísticas como distinções entre significante/significado e sintagmas/paradigma se teorizadas adequadamente – deixam pertencer a uma disciplina regional e passam a

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definir relações que operam no próprio terreno de uma ontologia geral. (LACLAU, 2011: 209)

Nesta seção exploro os efeitos desse tipo de afirmação para a análise discursiva aqui pretendida, destacando alguns mecanismos retóricos mobilizados na luta hegemônica pela significação/definição.

Uma primeira implicação desta postura epistêmica consiste em reconhecer que operar com as figuras de linguagem como categorias organizadoras de sentidos de conhecimento nas políticas de avaliação é tomar como desafio o exercício de transitar na impossibilidade da determinação prévia de sentidos e, ao mesmo tempo, trabalhar nas fundamentações contingentes expressas nos materiais analisados, construir algumas afirmações/posições, para

pensar o escolar. Isso significa entender que é por meio do uso de figuras retóricas que a ação

social opera como discurso e vice-versa, permitindo a compreensão das operações discursivas do social e do político.

Trata-se, assim, de entender por quais mecanismos, por exemplo, alguns sentidos são mais prestigiados, universalizados, hegemonizados do que outros nos processos de produção e distribuição de conhecimentos escolares validados por políticas de avaliação em larga escala.

Ou, parafraseando Quintana, entender por quais estratégias ora nomeiam nuvem como chuva,

ora nuvem como bom tempo.

Sob a perspectiva da democracia radical, defendida pela teorização do discurso com a qual me filio, o afastamento da dicotomia "pensamento/realidade" implica na adoção de outras formas de compreensão do fenômeno político, ou seja, apresenta a proposta de ampliação de categorias para "dar conta das relações sociais" (LACLAU e MOUFFE, 2005:150). Nessa direção, sinonímia, metáfora e metonímia são saídas metodológicas

interessantes para essa compreensão, pois “não são formas de pensamento que guardam um

sentido segundo sua literalidade primária através da qual as relações sociais se constituíram, senão que são parte do terreno primário da constituição do social” (idem).

Entre as diferentes figuras, as metáforas e metonímiass são consideradas ferramentas de análise potentes para interpretar o jogo político, não com a perspectiva "do que quer dizer" ou "do que está por trás" das palavras, mas com o intuito de explorar os mecanismos mobilizados nas lutas pela significação/hegemonização dos sentidos produzidos em contextos específicos. Assim, essas figuras de linguagem são aportes metodológicos que me permitem pensar nos processos de seleção de conhecimento a serem ensinados no contexto das políticas de avaliação. Afinal, como afirma Laclau (2011) :

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A metáfora e a metonímia, nesse sentido, não são apenas algumas figuras entre muitas outras, mas as duas matrizes fundamentais em torno das quais todos os outros tropos e figuras deveriam ser ordenados (LACLAU, 2011:193)

Nesse movimento, dialogo com Howarth (2005) leitor de Laclau e estudioso do discurso, com o objetivo de levantar algumas pistas para leitura dos textos empíricos, nos quais metáforas e metonímias assumem a dupla função de elementos estruturantes da política e dos mecanismos acionados no jogo político, como observa Howarth ( 2005) ao afirmar que: Categorias retóricas são ao mesmo tempo importantes tanto para consubstanciar a ontologia da teoria do discurso, e como um meio de analisar textos e práticas lingüísticas (HOWARTH, 2005: 11, tradução livre)ix

Howarth (2008), ao afirmar que "uma característica importante da teoria do discurso é a análise cuidadosa de retórica e de todas as formas de significado ’textual’" (HOWARTH, 2008:10), reforça a pertinência das escolhas realizadas neste estudo para operar metodologicamente. Tratar de forma cuidadosa essa análise significa procurar fugir de reducionismos linguísticos e adentrar o universo móvel da significação e das estratégias discursivas para fixação de sentidos.

Nesta perspectiva armada para ver, a potencialidade heurística das categorias metonímia e metáfora ganham força quando vistas como "dois pólos de um continuum" (LACLAU, 2011:196) e não como figuras retóricas diferentes uma da outra. Como figura retórica isolada, a metonímia estaria diretamente relacionada ao campo semântico que

envolve termos como combinação, contiguidade, sintagma, deslocamento que caracterizaria

uma das duas formas de relação possíveis entre dois termos/significantes, em uma estrutura discursiva. No que diz respeito à metáfora, essa é associada à segunda possibilidade de

relação expressa por termos como substituição, analogia e paradigma, condensação.

No jogo da linguagem existem duas formas de relação entre os dois termos – metáforas e metonímias – em uma estrutura discursiva: por combinação ou por substituição. Por combinação, as articulações se organizam na cadeia discursiva de forma que as posições assumidas ajudem a compor a produção de sentido. Já na condição de substituição, os termos em relação de continuidade investem de poder um outro para substituí-lo ou representá-lo.

Na abordagem discursiva laclauniana, essas duas diferentes formas de relação entre os termos passam a ser vistas de tal forma articuladas que tendem "a se transformar uma na outra" ( LACLAU, 2011: 195). Essa percepção é importante e possível, pois Laclau considera

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que "ambas são transgressões do mesmo princípio que é a lógica diferencial associada ao eixo

sintagmático do sistema de significação" (idem, grifo meu).

Operar desse modo significa assumir que os processos de significação mobilizam em permanência essas duas figuras da retórica para dar conta da aporia trabalhada na primeira seção deste capítulo: a impossibilidade e necessidade de fechamento do discurso para que a significação aconteça, ainda que de forma precária e contingente. Assim: significar, nomear, definir pressupõe acionar simultaneamente a operação metonímica que permite estabelecer combinações ou relações de contiguidade entre as unidades diferenciais. Essas operações resultam em uma cadeia de equivalência potencialmente aberta e uma operação metafórica cuja função impossível e necessária consiste em condensar em um único significante as diferentes particularidades trazidas, metonimicamente, para a cadeia. Nesse processo, por meio da substituição de um desses termos particulares, um ou outro significante passa a assumir a condição de universal.

Importa sublinhar que a metonímia é condição para que a operação metafórica possa acontecer e vice-versa. Isso ocorre na medida em que as relações de contiguidade são estabelecidas em meio às disputas pela significação que se realiza por meio de uma analogia. Dito de outra maneira, em meio a este jogo, há condensação de elementos em uma determinada forma de representação, mas, como no campo discursivo, toda substituição requer uma condensação de sentidos. E, do mesmo modo, toda combinação implica em deslocamentos de sentidos. Assim, é possível dizer que não há metáforas sem metonímias, ou, como afirma Laclau: a "contiguidade" se transforma gradativamente em analogia, e a metonímia em metáfora". (LACLAU, 2011: 197)

O entendimento de um projeto hegemônico como estabilização de sentido se torna possível por meio de processos metafóricos a partir dos deslocamentos de reivindicações – de um lugar ao outro no espaço discursivo – movimento este iniciado por relações de contiguidade.

Como venho ressaltando, a análise do discurso na perspectiva da Teoria do Discurso pós-fundacional não se limita, pois, ao terreno do explicativo, sendo também constitutiva do fenômeno social que se quer interpretar. É, portanto, nessa linha, que a abordagem dos teóricos do discurso com os quais dialogo destaca a estreita relação entre a retórica e a análise política. O emprego da retórica para o entendimento do fenômeno político substancia a interpretação das metáforas e metonímias como efeitos de sistematização política em se

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tratando de uma análise textual. A escolha dessas categorias, como já sublinhei anteriormente, se justifica porque elas :

[...] não são formas de pensamento que guardam um sentido segundo sua literalidade primária através da qual as relações sociais se constituíram, senão que são parte do terreno primário da constituição do social. (LACLAU, 2006:150)

O discurso como totalidade estruturada viabiliza uma perspectiva ontológica para

pensar a produção de fundamentos contingentes, sem os quais não há luta política. É com essa

argumentação que Laclau (2000) define a hegemonia como "totalização metafórica", ou seja,

as operações metonímicas acontecem entre as unidades diferenciais no discurso e vão, por meio de um analogia, na direção de uma universalização. Para tanto, antes desta totalização a

hegemonia começa "sempre metonímica" (p.74).

A compreensão de que é no jogo político que os sentidos vão se homogeneizando/

hegemonizando reafirma o entendimento da função das metáforas como

condensação/substituição de fluxos de sentidos. Nas teorizações laclaunianas, são as metáforas que ao condensarem sentidos em torno de um significante permitem que um particular, resultante de uma operação metonímica, alcance a condição de universal.

Nos processos de significação, os fechamentos acontecem por meio de operações metafóricas com tentativa de condensar vários sentidos que estão em disputa, em um significante que expresse esse conjunto de demandas/sentidos. Por sua vez, os processos de construção hegemônicas são metonímicos na medida em que, para indicar um sentido mais amplo, se desloca uma característica particular para um plano geral. Nas palavras de Laclau (2005):

[...] a prática hegemônica é essencialmente uma operação metonímica pela qual um determinado grupo ou movimento recebe demandas articuladas por grupos contíguos (por exemplo, um movimento estudantil começa a organizar e dirigir as demandas dos trabalhadores) ou estende um conjunto de reivindicações em esferas adjacentes (as lutas dos trabalhadores simbolizam exigências da nação inteira). Por outro lado, a estabilização de tais práticas em uma forma hegemônica ou ordem, cada uma organizada em torno de um significante vazio, é metafórica na medida em que envolve a criação de novas totalidades significativas através da desarticulação e substituição das formações previamente existentes (p.11, tradução livre)x

O excerto acima sintetiza a luta pela significação colocando em evidência a dimensão ontológica do jogo político como desenvolverei mais adiante, na próxima seção. Nesse trecho, aparece a categoria laclauniana “significante vazio” que encarna a totalidade metafórica permitindo operar simultaneamente com a impossibilidade e necessidade estrutural de

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interrupção na cadeia de equivalência, condição de fixação de qualquer sentido. Afinal, como afirma esse autor:

[...] uma cadeia de equivalências pode, em princípio, expandir-se indefinidamente, mas, uma vez que um conjunto de relações centrais está estabelecido, essa expansão é limitada. Certas novas relações seriam simplesmente incompatíveis com as particularidades integrantes da cadeia. (LACLAU, 2000:. 140-141)

Dito de outro modo, o significante vazio é a expressão utilizada para nomear a falta

constitutiva, evidenciando a impossibilidade de uma representação, o que implica num

significante esvaziado de efeitos representativos. O significante vazio representa uma série de

demandas particulares articuladas numa cadeia de equivalência que acabam, pois, em apagar

conteúdos particulares. Para Laclau (1996): “um significante vazio é um significante sem

significado” (p. 69) o que não significa abundância nem insuficiência, mas marca os limites do processo de significação. Em outras palavras, o significante vazio é ausente de um conteúdo específico e, por isso mesmo, é potencialmente capaz de articular qualquer demanda política que assuma um papel hegemônico de representação.

Assim, a questão da totalização metafórica como processo de operação hegemônica,

nomeada como significante vazio, será acionada menos como objeto de estudo ou ferramenta

analítica do que como condição para pensar as questões que me interessam explorar nesta

pesquisa. Desse modo, a análise não pretende identificar significantes vazios, mas sim,

explorar essa função discursiva determinante para pensar as lutas de significação e em particular os momentos de reativação de uma ordem sedimentada.

Ao assumir a possibilidade de interpretação das políticas de avaliação no campo de discursividade, passo a entender que os significantes expressos são metáforas e metonímias, pois condensam diferentes particularismos que se deslocam no jogo político da definição.

As palavras são fruto de processos de significação mediados por operações de condensação (metáforas) e de deslocamentos (metonímias). Este processo, na teoria do

discurso, é entendido como articulação, que traduz a potencialidade política, de pensar os

sentidos sempre contingentes e precários, passíveis de outras condensações e deslocamentos. Ao fazer essa afirmação, não estou dizendo que em algum momento não haja predominância de sentidos que, com sua força enunciativa, ocupe lugar de destaque. Pelo contrário, estou reconhecendo os processos de condensação como momento de fechamento de sentido expresso por meio de metáforas que funcionam de forma a bloquear, momentaneamente, outros deslocamentos (metonímias) na cadeia discursiva.

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Assim, cada significação é um exercício de definição que se pretende hegemonizar, representar "um todo", a partir de algo que é heterogêneo (unidades diferenciais), num movimento de superposição que garante a presença de equivalências e diferenças.

Interessa-me, pois, compreender as estratégias de validação dos conhecimentos de

qualidade entendendo a imbricação entre as políticas curriculares/de avaliação que tendem a estabilizar como hegemônico alguns sentidos particulares e o jogo político que opera na desestabilização de fronteiras ou cortes antagônicos. Nessa linha, entendo que os processos de

legitimação dos conhecimentos adjetivados como escolares são marcas de um processo

permanente, impossível e necessário de totalização metafórica, cujos mecanismos interessa-me explorar.

Neste estudo aposto, assim, que operar com essas figuras retóricas/categorias de análise – metonímias e metáforas – abre possibilidades metodológicas promissoras para a compreensão nas lutas pela significação hegemônica do conhecimento escolar de qualidade nas políticas de avaliação. Por meio de operações metafóricas e metonímicas, são produzidos

diferentes sentidos para o significante conhecimento, tornando-se assim assaz instigante

investigar esses processos de constituição discursiva no terreno das políticas de avaliação, tendo como foco os deslizamentos, deslocamentos e condensações de sentidos que mobilizam

o significante conhecimento no jogo de definição do escolar.

Entendo assim que os textos políticos que compõem o acervo empírico desta pesquisa – matrizes de referência e provas – representam uma política curricular/de avaliação compreendidos como parte de uma articulação hegemônica em torno da demanda popular de qualidade da/na educação que no jogo político da definição por meio dessas operações discursivas se estabilizam provisoriamente. Para tal, a seguir passo a desenvolver o segundo aspecto teórico-metodológico mencionado anteriormente: a diferença conceitual entre político e política como proposta de adensar a perspectiva armada para pensar o objeto deste trabalho, deslocando, assim, os sentidos de política curricular para "o político" do conhecimento escolar.

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