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Em contraposição ao modo como a cidade moderna, ampla e publicitária é apresentada, a periferia – local para onde Anísio leva Marina – se mostra fragmentada, cortada em planos curtos unidos através do rap que estrutura a narrativa e dá sentido a uma seqüência em que dois estranhos compartilham o mesmo espaço que, se não favorece o diálogo, também não o impossibilita. O carro, neste caso, pode ser pensado como

um assento onde duas pessoas podem se sentar uma ao lado da outra e olhar a mesma paisagem, a mesma vista. E, inclusive, se as duas permanecerem em silêncio, não signifi ca que estejam mal. Pode-se convidar alguém a sentar- se no seu carro sem que você seja obrigado a ser ou a se tornar seu amigo. E, em certo momento, essa pessoa desce e vai embora… Por isso digo que o carro oferece um assento ideal” (KIAROSTAMI apud BERNARDET, 2004, p. 41)

O automóvel descortina a região, através de uma câmera agitada que olha para a frente, para os lados ou se aproxima em zoom, tentando mostrar o máximo possível. Um panorama de grandes edifícios e torres de energia é substituído por imagens de um bairro pobre. Apesar da montagem mais recortada, o tempo parece se estender através da quietude das pessoas que num dia de sol caminham ou andam de bicicleta num ritmo que destoa da velocidade da metrópole globalizada. As pessoas, captu- radas pela câmera, se deixam fi car diante dela, surpresos com a possibilidade de se tornarem imagem. Elas não se aproximam nem fazem qualquer gesto em direção à câmera, somente se deixam ver, retribuindo o olhar sem nenhuma ansiedade. A seqüência dura quase um minuto e meio, composta como um documentário que fl agra o dia-a-dia do lugar.

O passeio é interrompido por Anísio, que leva Marina para um salão de beleza popular onde a cabeleireira se nega a atendê-la com a justifi cativa de excesso de trabalho. Anísio se mostra magoado com a recusa e sai ameaçando não voltar. Marina assiste ao debate, divertindo-se com a situação como se estivesse diante de um espetáculo exótico. No fi nal da tarde, eles ainda estão no carro. As luzes estão acesas, as lojas começam a fechar e Anísio cumprimenta alguns conhecidos. A estrutura de montagem é semelhante à anterior: fragmentada, construída em relação aos que estão no carro, de onde se estendem seus olhares. O espaço recortado é ilustrativo e a imagem, excessiva. Diante do que se vê, é possível afi rmar: isto não é a periferia de São Paulo, isto são imagens da periferia de São Paulo. Assim é que Marina simula naturalidade em relação ao que vê e Anísio não se integra, ainda que tente demonstrar alguma intimidade com os moradores do lugar.

Em um boteco, o casal é recebido com cordialidade. Anísio cumprimenta o dono do bar e faz o pedido: “O seguinte, pra ela uma Maria Mole, pra mim o de sempre”. Os que o servem sabem do que ele gosta. Marina, a que vem de fora, adota uma postura que tenta reproduzir os códigos do lugar, mas, pouco à vontade, ela evita olhar para as pessoas. Sua gestualidade é uma imitação imperfeita dos gestos que ela pressupõe serem os correntes ali.

A sensação de deslocamento se afi rma ainda mais pelo diálogo entre ela e Anísio: “Que pico, hein!”, diz para Anísio. “Tudo em casa”, ele responde. “Muito louco!”, é a réplica da moça. “Tudo nosso!”, conclui Anísio saindo em busca do vendedor de cocaína. Conversa paradigmática, estereotipando um diálogo marginal quase sem conteúdo. Uma câmera no ombro atenta à situação registra os cumprimentos se colocando em torno do grupo, mas ela também não está à vontade. Zhumtor,30 referindo-se ao que compõe

o ato locutório, para ele performático, distingue três elementos que fazem do que é enunciado uma comunicação.

– a “situação” imediata, prendendo-se ao fato de que se fala; e mediata, tendo em conta o envolvimento discursivo, às outras palavras precedentes, seguindo ou acompanhando aquilo que se enuncia; – a “região”, pela qual é preciso enten- der os três espaços – geográfi co, cultural ou social – em que os signos feitos obra são conhecidos e empregados;

– o “contexto”, que abarca toda a realidade ambiente, considerada como o fi sicamente presente na enunciação: a própria língua pano de fundo da palavra; o campo discursivo, próximo, longínquo, temático, em que ela se enraíza; o conjunto não lingüístico, natural e empírico, histórico e mental, entre cujos elementos se situa. (1993, p. 251)

O diálogo minimalista parece não consi- derar o primeiro elemento. As palavras não se estruturam no tempo da composi- ção formal da comunicação, formal não no aspecto protocolar, mas no sentido de uma construção que se dá em relação ao que se disse antes e a ao que vai ser dito depois, estrutura mínima necessária para a comunicação verbal, seja ela oral ou escrita. A tentativa de Marina de se apropriar da língua do lugar se evidencia por sua aproximação com o que considera características da cultura da região. Assim ela parece estar dialogando muito mais com o ambiente, ou com o que acredita ser este ambiente, do que com o próprio Anísio, ainda que para ela Anísio seja tudo isso. A periferia para Marina é uma comunidade imaginada (ANDERSON, 2005)

Essa seqüência pode ser encarada como um paradoxo: algo que apesar de não ter visibilidade não pode deixar de ser visto. E, desse modo, a periferia invade a tela violentando a câmera. Esses espaços podem ser considerados como vazios, segundo nomenclatura de Jerzy Kociatkiwicz e Mônica Kostera citados por Bauman. Lugares vazios são aqueles a quem não se atribui nenhum significado. Mesmo sem limitações físicas como cercas ou barreiras, mesmo não sendo proibidos,

esses espaços vazios são inacessíveis por serem invisíveis (apud BAUMAN, 2001, p. 120).

Na estrutura de O invasor ocorre uma inversão. Não são as zonas marginalizadas e empobrecidas os lugares vazios, mas a metrópole globalizada transformada em espaço de fl uxo. Sem afeto, sem memória, invisível, afogada por uma experiência sensorial que não a inclui, fechada cada vez mais aos estímulos externos, reduzida a espaços a serem transpostos destituídos de identidade e de signifi cado, ela enfraquece, deixando de ser um lugar habitado para tornar-se um lugar vazio. A porosidade e a indefi nição de suas imagens parecem não exigir contestação, até que a periferia, como o que não pode mais deixar de ser visto, se apresenta deixando clara essa ausência.

No documento Imagens da metrópole no cinema brasileiro (páginas 91-94)