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Os párias somos nós que vivemos em ruínas…

No documento Imagens da metrópole no cinema brasileiro (páginas 188-198)

A primeira imagem do Texas Hotel são os pés de Dunga, que varre o salão de entrada, enquanto canta “amarelou, mangou de mim, não vai fi car de graça, dentro dessa caixa um corpo indigente, um corpo que não fala, um corpo que não sente”. A composição do músico pernambucano Otto pode ser tomada como descrição do lugar e dos seus moradores: uma caixa entregue aos efeitos do tempo, ruínas habitadas por pessoas que passam grande parte do dia sem fazer nada, corpos autistas, voltados para si mesmos, indiferentes ao que lhes rodeia.

Extrapolando os limites do hotel, essa mesma descrição pode se estender para aqueles que ocupam a cidade e que aparecem sem nomeação, transfi gurados pela força da natureza, vagabundos ou improvisadores de formas de sobrevivência. A metrópole é como o hotel, uma caixa ocupada por uma gente que não fala e, se sente, não revela. Esta foi a opção de representação encontrada por Cláudio Assis para ocupar a sua cidade do Recife: encontrar

uma gente sem voz nas ruas e becos da cidade. Essa gente, se considerarmos a fala do diretor, representa o povo brasileiro. No entanto, essa presença adquire uma feição simplifi cada que pretende associá-lo às camadas empobrecidas (no campo do documental) e a modos de agir violentos (no campo do fi ccional) Sobre essa violência inerente aos personagens, Assis afi rma: “Todo mundo quer acabar com todo mundo. A burguesia quer acabar com os pobres. E os pobres, por sua vez, querem acabar com a burguesia. Então, eu não sou paternalista. E detesto quem vê o povo como coisa ‘folclórica.”24

A presença do povo no cinema brasileiro é um assunto polêmico.25 Uma das imagens mais

marcantes dessa presença está em Terra em transe, fi lme de 1968, dirigido por Glauber Rocha, quando Paulo Martins, personagem vivido por Jardel Filho, tapa a boca de Jerônimo, o líder sindical identifi cado como representante do povo. Ao fazer isto, Martins olha diretamente para a câmera e, desafi ando quem o assiste, pergunta: “Está vendo quem é o povo? Um analfabeto, um imbecil, um despolitizado”.

Em seguida, um homem com aparência miserável (Flávio Migliaccio) se sobrepõe à cena e se apresenta como o verdadeiro povo em contraposição àquele que seria o representante legitimado pelos núcleos de representação política. Como discute Ismail Xavier, “fora da representação política o povo ‘verdadeiro’ só pode ser nomeado pela condição de miséria” (1993, p. 49). O mesmo ocorre em Amarelo manga, onde esse povo, assim nomeado por Assis, se mostra a partir de uma espécie de indigência, como o que sobra e não consegue fazer parte da organização social produtiva, restando, para ele, a informalidade e as sombras como espaço de atuação.

O conceito de povo, por sua generalidade e amplo espectro, parece afi nal dar conta de tudo e de nada ao mesmo tempo, na medida em que pode ser um conjunto de pessoas que falam a mesma língua, compartilham os mesmos costumes e tradições, ocupam o mesmo território ou, de outra forma, estão submetidas às mesmas leis, com direito a se expressar nas eleições etc. etc. O povo é o povo e dele emana o poder, mas a ele também se ignora ou a ele se direcionam medidas repressoras que visam por um fi m ao que não se conhece e não se confi a.

24 Disponível em <http://www2.uol.com.br/revistadecinema/edicao40/entrevista/index.shtml>. acesso em:

20 jun 2006.

25 Esse é um tema caro para cineastas, estudiosos e críticos do cinema brasileiro, estando muito fortemente

presente nas discussões do cinema produzido na década de 1960. Algumas dessas referências são: XAVIER Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983; BERNARDET, Jean- Claude. Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; XAVIER Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993. Cinema de Novo: um balanço crítico da retomada. ORIC- CHIO, Luiz Zanin. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, entre outros.

Mais que sujeito de um movimento histórico, mais que ator social, o “povo” designa no discurso ilustrado aquela generalidade que é a condição de possibilidade de uma verdadeira sociedade. (…) A racionalidade que inaugura o pensamento ilustrado se condensa inteira nesse circuito e na contradição que encobre: está contra a tirania em nome da vontade popular mas está contra o povo em nome da razão. (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 24)

Ao discutir a afi rmação e negação do povo como sujeito, Jesús Martín-Barbero (1997) considera que a origem do debate está localizada em dois grandes movimentos26

que tratam o povo a partir de dois campos distintos: o da política e o da cultura. Os Ilustrados, no primeiro campo, consideravam que no povo estava tudo o que deveria ser combatido – a superstição, a ignorância e a desordem – em nome da constituição de um mundo estruturado sobre a razão como valor universal. Esse banimento, no entanto, resvalava em um problema

sério de representação e legitimação do poder, quando era desse mesmo povo que este poder emanava.27 Então como

desqualifi car aquele que, mesmo sendo a fonte de tudo o que é obscuro é também quem legitima os governos civis? Era esse o dilema dos Ilustrados, pôr-se contra a tirania representando o desejo popular, mas também estar em posição de alerta diante do povo que deveria se render à ciência e ao conhecimento racional.

No segundo campo estavam os Românticos, para quem o povo adquire uma outra dimensão a partir de três eixos principais. O primeiro deles relacionado com a sua essência coletiva que o torna capaz de, heroicamente, se contrapor às forças do mal; o segundo que o considera com a alma de uma nação e o terceiro, divergindo mais diretamente dos Ilustrados, se coloca em termos políticos e estéticos como uma “reação política contra a fé racionalista e o utilitarismo burguês que em nome do progresso têm convertido o presente em um caos, em uma sociedade desorganizada. (…) rebelião

26 Ambos aconteceram na segunda metade do século XVIII.

27 “A nova Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (de 1794) apresentou-se então como sendo

feita diretamente em nome do ‘povo francês’, e não de seus representantes (como a de 1789).) O artigo 25 proclamava, incisivamente: ‘A soberania reside no povo; ela é una e indivisível, imprescritível e inalienável’. E o artigo 7 do ‘Ato Constitucional’ esclarecia: ‘O povo soberano é a universalidade dos cidadãos franceses’. ‘Ele nomeia imediatamente seus deputados’ (art. 8); ‘delega a eleitores a escolha dos administradores,árbitros

estética,28 contra a arte real e o classicista

princípio de autoridade, revalorizando o sentimento e a experiência do espontâneo como espaço de emergência e subjetividade”, diz Martín-Barbero, concluindo que, dessa forma, pela primeira vez na história, o que vem do povo passa a ser considerado cultura. (1997, p. 26 e 27)29

Em Amarelo manga o “povo” se tornou refugo humano, mais próximo do que Marx e Engels nomearem no Manifesto Comunista de lupem-proletariado, “produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade”30 (p. 10). Seu sustento é

retirado da natureza – eles comercializam frutas, verduras e caranguejos –, da indústria de bugigangas de materiais descartáveis – provavelmente de origem asiática como as que ocupam as bancas de camelôs de todo o país – e da venda de comida. Todos vivem em uma situação de precariedade, um tipo de instabilidade que se tornou estável, quando não mais existem possibilidades reais de que possam sair dessa condição, a não ser, talvez, para outra ainda mais difícil.

A fala de Isaac para descrever a apatia dos moradores do Texas Hotel, quando os encontra pela manhã apertados no sofá assistindo a um programa na TV – “O que mais pode se esperar da vida” –, pode estar se referindo a todos que compartilham dessa paralisia, incluindo os que não estão ali. Eles parecem aprisionados dentro de um mundo próprio e indecifrável, que não traz nenhum indício que explique por que vivem no mesmo lugar e na mesma situação índios e caboclos empobrecidos e sem perspectiva.

Como se não tivessem nem passado nem futuro, só um presente vivido de uma forma arranjada, eles se assemelham a párias sociais por quem ninguém se interessa. Se essa

28Itálicos do autor.

29Ainda é desse debate sobre o povo que, de acordo com Martín-Barbero, surgem dois outros conceitos,

o de classe social e o de massa. O primeiro defi ne-se a partir dos papéis desempenhados dentro do ciclo de produção da mercadoria, onde, numa perspectiva marxista, o povo trabalhador vai se tornar o proletariado. A massa, por sua vez, é um termo que nomeia aqueles que trabalhavam na indústrias e que tomavam conta das ruas das metrópoles. Uma gente desconhecida, sem nome próprio, perigosa e que colocava em pauta o valor cobrado pelo progresso. O mesmo sujeito, o trabalhador, defi nido de modos completamente diferen- tes, um pelo reconhecimento, outro pelo desconhecimento.

é a visão do povo trazida pelo fi lme, ela é estereotipada e preconceituosa. Assis na sua vontade de se distanciar do que ele denomina de uma visão folclórica do nordeste opta pelo contraponto radical, assumindo todas as excrescências da humanidade, atribuindo- as aos seus personagens e aos moradores do Recife representados no fi lme.

Um paria,31 na sociedade hindu, explica

Zygmunt Bauman, é uma pessoa impura que por esta condição está fora do sistema de castas, o que o torna um intocável. Como na modernidade nada poderia ser mantido dessa forma, foi preciso uma nova ordem que os incluísse de alguma maneira. A saída encontrada teria sido deixar de ser pária e passar a arrivista, tornando-se, dessa forma, um sujeito nômade, “alguém já no lugar, mas não inteiramente do32 lugar, um aspirante a

residente sem permissão de residência”. O arrivista, por não fazer parte de nenhum lugar e por não contar com a proteção de ninguém se torna a nova feição do pária. “De fato a quintessência da existência de um pária era não poder contar com proteção” (BAUMAN, 1998, p. 100). Os párias não participam, e, se insistem, ninguém os ouve. Os arrivistas ou os párias/ arrivistas se expressam, mas como vão embora podem ser esquecidos, levando a

inquietação que possam ter provocado. As pessoas que moram no hotel de seu Bianor vivem como párias, exilados dentro de seu próprio país.

O momento do velório do dono do hotel é também um dos únicos de aproximação desses rostos que parecem ilhados, distantes da sua infância, de um lugar de origem, defi nitivamente perdidos, sem memória, sem nada que valha um relato. A situação se agrava ainda mais quando se considera que nem o compartilhamento da língua os aproxima. Nas duas únicas tentativas de expressão são, peremptoriamente, re- chaçados por seus interlocutores. Uma brincadeira com Isaac é imediatamente respondida com um insulto; a intenção de aliviar o sofrimento de Dunga pela morte de seu Bianor é também repudiada como um peso a mais. O homem explica o que é necessário para o enterro, enumerando o que deve ser feito. Seu tom é paciente e solidário, contudo, Dunga não reconhece a intenção.

Edward Said identifi ca quatro formas de uma pessoa estar fora de casa impedida de retornar. Seriam elas: por exílio, refúgio, expatriação ou por emigração. O exílio está relacionado com o banimento, portanto, com a expulsão. É o sujeito que foi posto para fora. O exilado, por essa condição, leva

uma vida anômala e infeliz, estigmatizado como forasteiro. Os refugiados são uma criação do século passado, uma palavra que caracteriza pessoas que precisam de ajuda internacional em caráter de urgência. Os expatriados se mudam, por vontade própria, e podem compartilhar o mesmo sentimento do exilado, mas não são proibidos de retornar. Por último, os emigrados, que tecnicamente são aqueles que emigram. Estar fora de casa, nestes casos, é estar fora de seu país (SAID, 2003, p. 54).

Estar fora de casa, mesmo estando dentro, sem poder voltar ao seu lugar de origem, não por ter sido banido por alguém, mas por ter vislumbrado uma vida melhor na cidade grande, muitas vezes a única possibilidade de fugir da fome e da morte é a condição de um outro sujeito: o retirante. Essa gente é expulsa pelas intempéries climáticas que tornam suas vidas impossíveis e, quase invariavelmente, são esmagados pela e na metrópole que os excluiu sem a menor dor ou piedade, sentimentos que eles, na verdade, não precisam.

Em artigo publicado no jornal O Povo de Fortaleza em 3/12/2005, o pesquisador Gilmar de Carvalho chama atenção para o modo como os moradores das capitais (Fortaleza mais especifi camente) receberam os retirantes das secas de 1932, 1942 e

1958 e do período entre 1979 e 1983. Os sertanejos, diz,

trouxeram seus valores, suas visões de mundo, suas expectativas e seus sonhos. Deixaram sítios, fazendas e pequenas cidades pela ilusão da metrópole e a maioria terminou favelizada, ainda mais excluída, e com muitos de seus valores (Inclusive éticos) esgarçados pelas tensões, pela violência (simbólica ou não) e pela perda de referenciais sem ter tempo nem condições para a elaboração de outros. Não tivemos sensibilidade para ouvi-los, não soubemos respeitar o que eles trouxeram na bagagem, imediatamente tratamos de substituir folguedos, relatos e festas pelas “bugingangas” que pressupomos índices civilizatórios.

A expressão de tristeza e vazio que os anônimos de Amarelo manga trazem no rosto talvez seja a feição desse processo de exclusão, dessa ausência de reconhecimento social que o poeta sertanejo Patativa do Assaré cantava tão tristemente em sua poesia lamento A triste partida (1986, p. 89-90):

Meu Deus, meu Deus Mas nada de chuva Tá tudo sem jeito Lhe foge do peito O resto da fé Ai, ai, ai, ai

Agora pensando Ele segue outra tria Chamando a famia Começa a dizer Meu Deus, meu Deus Eu vendo meu burro Meu jegue e o cavalo Nóis vamo a São Paulo Viver ou morrer

(…)

Chegaram em São Paulo Sem cobre quebrado E o pobre acanhado Percura um patrão Meu Deus, meu Deus Só vê cara estranha De estranha gente Tudo é diferente Do caro torrão Ai, ai, ai, ai Trabaia dois ano, Três ano e mais ano E sempre nos prano De um dia vortar Meu Deus, meu Deus Mas nunca ele pode Só vive devendo E assim vai sofrendo É sofrer sem parar

O quadro descrito por Patativa e musicado por Luiz Gonzaga é o retrato desse retirante, seja ele qual for, de onde venha ou para onde vá; uma categoria social engendrada na região Nordeste do Brasil para um sujeito que deixou a sua terra, os seus amigos e a sua miséria, mas que, sem poder se livrar de verdade de

tudo isso e sem conseguir conquistar outra realidade, carrega com ele, para a vida inteira, essas marcas que, se depender dos cosmopolitas moradores das grandes cidades e dos seus preconceitos, nunca o deixarão. Segundo Oliveira Jr. (In CARVALHO, 2003), quando a palavra retirante aparece pela primeira na imprensa durante a seca de 187733 já vinha carregada de uma carga

semântica de conotação sinistra, um sentido que se faz presente no imaginário popular e na indústria cultural. De acordo com ele,

Uma ambigüidade marca essencial- mente a construção histórica e, sim, política da fi gura do retirante. Caráter que emana, é certo, do modo como o retirante se vê a si mesmo e é visto por aquele com quem se defronta na retirada, mas que não se perfaz só aí. Apropriados, reelaborado por acréscimos, supressões, reduções, ampliações, essa fi gura pode ser instrumentalizada para fi ns e por motivações os mais diversos: do econômico ao religioso, do político ao científi co, do artístico ao humanitário. (…) O padrão repete-se ao infi nito, impõe-se como presença teimosa, reitera-se, até que, absolutizado, seja tomado como ícone do que representa. (OLIVEIRA JR. in CARVALHO, 2003, p. 296)

O que autoriza Isaac a se manifestar em relação a essas pessoas em tom depreciativo é algo a ser considerado, na medida em que ele também é um pária social, um sujeito marginal sem identidade e sem futuro tanto quanto elas. Estabelecidos e outsiders (2000), livro de Norbert Elias publicado pela primeira vez em 1965, traz a descrição das relações entre moradores de uma região situada na periferia de uma cidade industrial inglesa, permeadas por um estado de animosidade que não se explica por nenhum elemento facilmente identifi cável por um observador menos atento. As condições materiais são as mesmas: tipo de moradia, ocupação, renda, nível educacional. Todos são trabalhadores, vivendo a mesma situação, e nada, aparen- temente, justifi caria a discriminação de um grupo em relação ao outro.

No entanto, ela existe e Elias encontra explicação para o preconceito em uma disputa de legitimidade imposta pelos moradores mais antigos,34 que atribuíam ao

grupo cuja ocupação da área era mais recente um “valor humano inferior” (2000, p.24). O que explicava a discriminação era o fato de um grupo ter chegado à região antes do outro e um sentido de coesão entre estes moradores mais antigos, o que lhes conferia o poder de considerar os que não faziam parte do grupo original como outsiders, sujeitos inferiores a serem

mantidos no seu lugar, tanto geográfico quanto social.

A fala de Isaac, referindo-se à imobilidade daqueles que no fi lme seriam representantes do “povo brasileiro”, traz o peso do julgamento em relação a essas pessoas que, dentro da narrativa, são apresentadas como símbolo de uma passividade mórbida a disfarçar suas intenções e segredos, como o seu Bianor, que guarda o dinheiro entre os genitais, ou dona Aurora, que se masturba com o inalador. Como alguém que se afi rma por suas ações, ainda que marginais, proprietário do único automóvel do fi lme, podendo, dessa forma, transitar pela cidade com certa liberdade, o que lhe confere uma visão privilegiada dessa realidade, Isaac é esse sujeito que tem o poder – em bases extremamente frágeis, mas o que não é frágil em Amarelo manga? –, como aquele que observa, de expor a sua opinião sobre seus companheiros de moradia.

Todos habitam ruínas, uma espécie de cortiço localizado no centro antigo da cidade do Recife, um lugar que se recusa a olhar para a frente, não por teimosia, mas por ter ainda alguma utilidade no presente, ou melhor, por ser necessário a esse presente. Onde estaria Isaac e as demais pessoas sem o Texas Hotel? Do que eles se escondem, o que eles recusam ou o que não conseguem mais ter de volta?

34 “O grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as características ‘ruins’ de sua

porção ‘pior’ – de sua minoria anômica. Em contraste, a auto-imagem do grupo estabelecido tende a se modelar em seu setor exemplar…” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 23).

O homem que tenta se esconder vive numa grande cidade. Num quarto de hotel, sem amigos, sem ninguém. Completamente anônimo (… ). Concentrando todos aqueles que foram arruinados, as vítimas de um sonho irrealizado, os perdidos, a cidade se converte numa selva, onde vale tudo e cada um está por si. (PEIXOTO, 1987, p. 37)

Em algum momento da história desses homens e dessas mulheres a possibilidade de escolha entre ir ou fi car, como esperança e situação transitória, se transformou em fi car como espera e situação fi xa. A metrópole que um dia deve ter se apresentado como promessa de liberdade se tornou, no fi nal de tudo, um cativeiro do qual eles não conseguem ou não querem mais se livrar. Toda ruína, segundo Simmel, em texto escrito em 1919, está envolta “en las sombras de la melancolia” (1988, p. 117) Melancolia que não está somente nas paredes desgastadas e nos corredores estreitos, mas também nas pessoas. Está no marasmo do fi nal da tarde após a descoberta da morte de seu Bianor, quando o cotidiano do lugar toma forma sob o som da música tocada tristemente pelo morador sanfoneiro sentado em uma área descoberta do hotel, acompanhado por outro homem que tamborila levemente sobre a coxa. Em outro cômodo uma mulher

estende roupas em um varal, enquanto um velho lê Nietzsche sentado ao lado de uma cabra presa pelo pescoço. Nos banheiros, um homem folheia uma revista de nu feminino enquanto outro se equilibra sobre o vaso sanitário para, através da meia-parede, espionar a mulher que toma banho sem se saber observada. Há uma lentidão no testemunho da câmera e tudo, aparentemente, é um pouco do mesmo. Dona Aurora, que se recusa a acompanhar o velório de seu Bianor, chora o medo de fi car sozinha enquanto manipula fotos

No documento Imagens da metrópole no cinema brasileiro (páginas 188-198)