• Nenhum resultado encontrado

Um fi lme disruptivo

No documento Imagens da metrópole no cinema brasileiro (páginas 162-167)

O Recife é uma cidade passional em Amarelo manga, passional e em ruínas. Talvez uma seja conseqüência da outra: a paixão não se preocupa com o amanhã, não tem projeto. É intensa e urgente e arruína a si mesma seguindo em direção à morte ou transfi gurando-se em outro, sempre deixando de ser. A dor dessa passagem pode ser tão intensa que a ela não sobram palavras e o silêncio se instaura.

A representação fílmica desta metrópole se coloca, da mesma maneira, em uma situação de passagem entre o fi ccional e o documental. As cenas documentais são dadas por um enquadramento frontal, quase um retrato posado. É importante considerar que o cinema documentário é dotado de regras e princípios que resultam em uma narrativa particular sobre a realidade apreendida, mesmo que esta narrativa seja montada sobre a intenção de se conseguir o menor grau de intervenção possível ou, quando se entende a impossibilidade desta empreitada e deixa-se claro no próprio fi lme esta impossibilidade. Ana Luiza Carvalho da Rocha, refl etindo especifi camente sobre o fi lme etnográfi co afi rma que este

comporta um ato de remontar o tempo da ação que obedece a natureza dos juízos estéticos do autor em seu esforço de fazer operar, através dos recursos estruturas da narrativa, o relato etnográfi co. (In ECKERT; MONTE-MÓR (Orgs.). 1999, p.62)

No fi lme de Cláudio Assis, esses quadros documentais ou que assumem esta linguagem – talvez fosse melhor dizer – e que se apresentam com uma duração mínima indispensável para se perceber e identifi car o que acontece são a sua base de sustentação, tanto pelo aspecto da montagem em si quanto pela estruturação de um discurso sobre a cidade que se vale de uma câmera à deriva para adquirir materialidade.

A ausência de relação entre os personagens que formam os dois principais focos dramáticos encontra nessa ligação (fi cção/ documentário) uma maneira de ir de uma situação a outra sem prejuízo narrativo ou estético. Dentro desse esquema, o documental contextualiza e dá força ao fi ccional que se apresenta como disrupção de uma pseudopassividade que toma conta dos moradores da cidade. Outro ponto a justifi car, de alguma forma, a presença dessas imagens vem da crença de que “la verdade es el pueblo, las gentes comunes”, como dito por Pierre Sorlin.1

O realismo de Amarelo manga se coloca, fundamentalmente, apoiado naquilo que ele traz das ruas, conferindo um peso maior à diegese, composta de modo coerente e verossímil, ainda que não totalmente naturalista. A teatralidade de sua estrutura dramática provoca, de certa forma, um ruído nessa “espontaneidade”. Em entrevista à revista Cinemais, Assis relata que cada um de seus dramas foi inspirado em fatos reais, alguns vividos por ele próprio, outros tirados de notícias de jornais. A circularidade do fi lme, baseado na repetição do mesmo a cada manhã, também deve a sua estrutura a esses encontros do cineasta com a realidade. A seqüência do adultério e seu fl agrante foi notícia publicada em um jornal do interior da Bahia, mas havia acontecido com um homem que a equipe encontrou em pesquisa de locação e que, coincidentemente, trabalhava em um açougue como Wellington canibal (Chico Diaz).

Outra marca de realidade, também relatada por Assis,2 se refere à cena de Chico Diaz na Igreja evangélica. “A gente entrou fi lmando lá sem pedir autorização. Ele vinha vindo pela calçada e fomos entrando fi lmando. Não estava previsto não. Aconteceu de improviso. Aquela reação no templo, com o povo gritando ‘sai satanás, fora capeta’, aconteceu de verdade”. O quanto um fi lme tem de realista é algo que se defi ne, segundo Sorlin, muito mais

1 Sorlin está direcionando seu olhar para Obsessão, fi lme de 1942, dirigido por Luchino Visconti. 2 Disponível em: <http://www.contracampo.com.br/52/entrevistaclaudioassis.htm>. Acesso em: 20 jun.

pela disposição dos espectadores em crer nas imagens do que naquilo que elas trazem.

Todas las épocas, en una época todos los grupos, tienen sus reglas para organizar el mundo exterior – mundo de los objetos y de las relaciones sociales – de manera que encuentren alli uma coherencia y puedan aplicar sus reglas de conducta; poseen, en particular, categorias de análisis por medio de las cuales tal manera de designar verbal o iconográfi camente los objetos es considerada estilizada, falsa, caricaturesta, humorística o fi el a la realidad. (1977, p. 157)

Está, portanto, nesse diálogo entre fi lme e recepção o índice de realidade, ainda que haja uma tendência reconhecida pela crítica cinematográfi ca, representada particularmente por André Bazin, de que um fi lme realista deva privilegiar a fi lmagem de externas, os temas sociais e interferir o menos possível no processo de construção da imagem.3 Bazin era um entusiasta da

objetividade da câmera e do neo-realismo italiano. Para ele, era fundamental poder afi rmar que a matéria-prima do fi lme era autêntica, a despeito de ser cinema. Se o que se vê na tela é também o que está em nossa imaginação, dizia Bazin, “é preciso que o imaginário tenha na tela a densidade espacial do real” (1991, p. 60). Essas

“marcas de realidade” postas no fi lme podem ser produzidas em estúdio, e de modo algum estão livre das convenções estéticas, o que relativiza esse seu caráter realista.

O realismo de Amarelo manga está construído sobre a idéia de que o Nordeste brasileiro vive uma pobreza infinita, concepção compartilhada e amplamente difundida pelos meios de comunicação de massa e pelo próprio cinema,4 onde

o sofrimento dos moradores da região assume traços de fatalidade como uma força quase mítica. No entanto, como foi dito por Sorlin, a aceitação desse discurso como realista depende muito mais da disposição de recebê-las como tal – tanto as imagens fílmicas quanto as dos noticiários. O que vai ao encontro de nossas crenças é aceito muito mais facilmente do que o que a coloca em xeque. Faz parte de um processo de afirmação social e psicológica a nos tranqüilizar. Segundo Francastel, “em qualquer imagem, há simultaneamente o encontro e os vestígios de um fenômeno e de uma consciência; ora mesmo o fenômeno só existe ligado ao que o precede, ao que vem depois e ao que o rodeia” (1998, p. 99). Esse conteúdo e o modo agressivo como foi posto em cena gerou debates calorosos nos circuitos de discussão de cinema e nos

cadernos de cultura dos jornais diários. Para Maria do Rosário Caetano,5 da Revista de

Cinema,

Amarelo manga é um fi lme corajoso. Mostra, sem censura, a vida de um grupo de personagens marginalizados de alguma forma, inclusive no amor, na periferia de Recife. Assis é uma das maiores surpresas no cinema brasileiro, um diretor que está chegando cheio de projetos e que promete tomar parte no cenário dos cineastas com sua performance de contestador. 6

José Geraldo Couto, na Folha de S. Paulo,7 o

descreve como “um fi lme de uma vitalidade à fl or da tela. Sua característica mais marcante é a sensualidade – no sentido mais amplo da palavra, que implica a abertura dos sentidos para tudo o que é vivo. (…) Alguns dos achados estilísticos do curta [Texas Hotel8],

como a câmera que esquadrinha (e acentua) a solidão dos personagens, enxergando-os a partir do teto, estão presentes de novo. Não há como separar o poético do sórdido. Ao

5 Jornalista e pesquisadora do cinema. Autora dos livros Cinema latino-americano – entrevistas e fi lmes e Alguma

solidão e muitas histórias: A trajetória de um cineasta brasileiro, sobre João Batista de Andrade e Cangaço – o nordestern no cinema brasileiro.

6 Disponível em: <http://www2.uol.com.br/revistadecinema/edicao40/entrevista/index.shtml>. Acesso em:

20 jun. 2005.

7 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u35382.shtml>. Acesso em: 20

jun. 2005.

8 Curta-metragem dirigido por Cláudio Assis em 1999 a partir de uma temática semelhante à de Amarelo

manga.

9 Disponível em: <http://www.pernambuco.com/diario/2003/08/14/viver1_0.html>. Acesso em: 20 jun.

2005.

10 Disponível em: <http://www.contracampo.com.br/52/entrevistaclaudioassis.htm>. Acesso em: 20 jun.

2005.

entrar para ver ‘Amarelo Manga’, compra- se o pacote todo. É pegar ou largar.” Para a jornalista Luciana Veras, em resenha escrita no Diário de Pernambuco9 sob o título

“Amarelo manga é a cor dos excluídos”, o fi lme, ambientado no Recife, “é uma crônica contundente e impactante sobre a periferia e seus personagens”.

Em todas essas falas há algo em comum, o tom de exaltação sobre a sua radicalidade, seu caráter vibrante e autoral expresso pela ousadia de trazer para as telas personagens marginalizados e periféricos. De certa forma, estas falas se aliaram à do próprio Assis em entrevista à revista Contracampo10

quando informou que o seu projeto é fazer fi lmes nos quais acredita:

Quero ser verdadeiro. Tenho de acreditar em meus fi lmes. Mas tenho uma tendência a tratar as questões de frente, de cara, mostrar como a vida é, de preferência com questões ligadas ao povo, com as minhas idéias. Esse é

meu universo, o meu caminho, isso é que bate na minha cabeça, sem visões românticas e idealizadas. Isso dá samba, dá maracatu, dá festa.

De outro lado, a presença desse povo e dessa intenção radical de mostrar o que não se vê no cinema nacional contemporâneo levantou questões sobre o que afi nal choca no fi lme e como o povo está representado. Eduardo Valente, na mesma revista Contracampo,11 aponta o modo distanciado

como ocorre essa representação do povo que, afi nal, se mantém sem “o direito a uma existência individual fora dos limites da dramaturgia teatral e distante” que dá o tom à encenação. Sobre o que causa impacto, ele encontra na seqüência da morte do boi o “grande momento de choque”, uma vez que, ainda segundo o crítico, o uso de palavrão, os tiros em um cadáver ou o primeiro plano de uma vagina são imagens que há muito se tornaram comuns na cinematografi a não só nacional como na de autores como Todd Solondz e Larry Clark.

Também sobre a representação do povo, Pedro Butcher, em seu artigo “Assis faz quase-grande fi lme”, publicado na edição de 15/8/2003 do caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo, chama atenção para o retrato fetichizado construído pelo

diretor pernambucano, o que, segundo ele, não permite que se pense no fi lme como revolucionário.

O debate deu visibilidade ao fi lme e ao cineasta agregando a ambos um tipo de interpretação e de recepção construída em grande parte sobre o que foi dito pela imprensa e pela crítica. “Las reacciones inmediatas al estreno del fi lme case siempre tienen gran importancia; prejuzgan las interpretaciones ulteriores y se integran a la historia del fi lme”, nos diz Sorlin. Em 2007, Assis lançou seu segundo longa- metragem, Baixio das bestas, mantendo a mesma chave realista do primeiro, mas agora encontrando seus personagens no interior de Pernambuco.

Amarelo manga estreou em agosto de 2003 em circuito comercial, um ano após ter se apresentado no festival de cinema Rio BR em 2002. Um fi lme de baixo orçamento,12

realizado fora do eixo de concentração de produção do país – Rio de Janeiro e São Paulo –, com uma temática suja, baseada em um realismo cru, conseguiu levar em torno de 130 mil pessoas aos cinemas no Brasil inteiro, depois dos vinte prêmios recebidos em festivais nacionais e internacionais. No fi lme estão personagens, espaços e tempos representados a partir de escolhas

resultantes de uma prática cultural, ou melhor, da tradução por parte do cineasta daquilo que o afeta, na medida do que é exigido pela narrativa e pelas condições de produção. Assim, buscar uma locação real pode ser mais apropriado do que construir um cenário. Neste caso, a cidade estará apresentada a partir da de si mesma como algo que se tornou imagem.

Essa tendência no Brasil se apresentou de modo radical naquilo que se denominou cinema marginal: uma produção caracterizada por decisões estéticas que buscavam essencialmente a liberdade em relação a todas as regras da gramática clássica, adotando procedimentos originados das condições de fi lmagem. Segundo Rogério Saganzerla, nessas condições não há o “‘ângulo absoluto’ impossível na vida real”, mas a busca do “‘melhor ângulo possível dentro de uma situação dada.’… não há a idealização da realidade, mas uma integração com o real” (2001, p. 18). Essa integração é descrita por ele como uma “busca do concreto”, com fi lmagens em espaços reais, dentro de condições possíveis e não ideais. Cláudio Assis em Amarelo manga explicitamente se coloca partidário dessa proposta não só por eleger a cidade do Recife – como uma cidade que fascina a câmera e se transforma por ela mesma em imagem, com

toda a força que se origina da vida que a anima – mas também por exagerar no modo como a apresenta, seja nas seqüências fi ccionais seja nas documentais, quebrando qualquer possibilidade de construção de qualquer tipo de identifi cação com o espectador.

No fi lme há uma espécie de artifi cialização das encenações provocadas por um trânsito entre uma dramaturgia verborrágica – como a do padre que aparece como uma espécie de comentador – e um exagero no modo como constrói um cotidiano promíscuo e quase fétido para os moradores das periferias e do centro velho da cidade, particularmente para os que vivem no Texas Hotel. Esse procedimento reforça a narrativa de Amarelo manga que está construída sobre uma idéia original de pobreza infi nita.

No documento Imagens da metrópole no cinema brasileiro (páginas 162-167)