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Nasce um Homem e um Destino

No documento HISTÓRIA DE UM HOMEM (páginas 33-38)

Ele havia nascido na mística Úmbria4, em fins do século XIX, quase à sombra de São Francisco, figura que se agigantou no seu espírito. Penúltimo de numerosa série de filhos, não esperado viu-se no mundo como por engano e provocou atenções especiais. Nascera numa tarde de agosto, na simplicidade, de uma casa simples, num velho bairro de ruas

estreitas, enquanto a turma dos irmãos, para dar paz à casa, tinha saído a passear. E assim como nascera, viveu, longe das vãs complicações da riqueza, livre da escravidão de tantas exigências. Feliz de quem nasce na simplicidade, onde não falta o necessário mas não se é escravo do supérfluo, onde a vida, que em tudo sempre deseja crescer, partindo o humilde, tem espaço para subir. Que caminho resta a percorrer a quem já nasceu feito, rico e poderoso, senão decair? A vida é um vir-a-ser e não se pode parar. Um caminho é necessário. Se não se puder fazê-lo em ascensão, termina-se por faze-lo na descida. Essa é lei fatal da vida. Haveria um remédio: livrar-se logo o privilegiado da sua posição de privilégio, da injustiça que pesa sobre ele reclamando justiça, livrar-se logo do débito contraído para com os semelhantes ao nascer em posição favorecida, débito do qual as justas leis da natureza exigem o pagamento. Mas livrar-se é muito difícil, seja para o bem nascido, que cresce enfraquecido pelas facilidades da vida, que não lhes ensinam desde cedo a luta, seja pelos pais, que o amam. Essa desgraça de haver nascido já feito não merece, portanto, como se costuma fazer, a nossa estúpida inveja, mas antes direito à nossa benévola piedade e ao nosso auxílio. Feliz, pelo contrário, quem nasce com a riqueza do espírito, que mais facilmente se encontra e se desenvolve na pobreza das coisas humanas. Os tesouros da terra podem ser perdidos, mas não os do Céu. Em meio à barafunda das incertezas humanas, há aquela maneira incrivelmente segura de investirmos as nossas riquezas nos valores imperecíveis do espírito. Estas primeiras referências são feitas aqui, justamente por exprimirem o tom fundamental que dominará esta história, em todo o seu desenvolvimento. Desde o princípio, oposição absoluta entre espírito e matéria, luta dos princípios morais contra o utilitarismo do mundo. Desde o princípio é mostrada aqui, bem clara, a inversão evangélica dos valores humanos. Neste relato veremos desenvolverem-se os ásperos sucessos dessa trágica batalha, nem sempre vitoriosa. Essa história de um homem está, portanto, em perfeita harmonia com a substância do Cristianismo e com a revalorização das forças do espírito, hoje, sob certos aspectos, abertamente sustentada.

Como todos, ele trazia em si as notas da sua raça; a característica úmbrica, assinalando o tipo geral italiano. Diz-se que os antigos romanos possuíam o dom da vontade e do equilíbrio, os toscanos o da expressão e os umbros o da intuição. Assim, o lugar do nascimento e o tipo da sua gente, taciturna, sóbria, trabalhadora, já esboçavam um pouco o seu destino.

Também a hora, o dia, o mês, o ano, as constelações, diz- nos a astrologia, influem no destino de um homem. E seria absurdo negá-lo "a priori", por simplismo ou ignorância materialista. A radiestesia, ciência das vibrações de todas as coisas, inclusive o homem, transmitem e recebem, está apenas nascendo. E já está séria e cientificamente justificada a desconfiança de que existem muitas coisas sutis, no Céu e na Terra, inegavelmente reais, embora imponderáveis. Certamente, em meio a tudo isso que existe, o homem transmite, e sobretudo recebe, uma quantidade infinita de vibrações, das quais se ressente, mesmo que a sua atual insensibilidade não lhe permita percebê-las com clareza.

Não importa saber que nome o protagonista recebeu ao nascer. O leitor lhe dê um nome qualquer, o que mais lhe agrade. O verdadeiro nome do homem não é dado pelos registros sociais, mas pelo seu tipo, pelo seu destino, pelas suas obras. O nosso personagem aqui se encontra como um soldado anônimo da vida, no qual poderá encarnar-se quem o quiser. É um tipo a que só se poderá dar um nome, ao fim do seu caminho terreno.

Assim ele se encontrou a viver nesta terra, imenso campo de exploração, qual força progressiva num mar de forças em ação. Em torno dele vibraram efeitos de próximas e remotíssimas causas, de que não tinha conhecimento. Para esse recém-nato, o mundo apareceu como trevas, em que a centelha espiritual, concentrada no eu, deve, por si, aprender a ver. A infância se lhe mostrava incerta e temerária, e cada hora, cada passo, era uma conquista. Indagar, explorar, experimentar, é o seu desejo e a sua tarefa. Ele aprende primeiro as grandes palavras da vida: "mamãe", que é a gênese, "eu", o centro da consciência; "quero", expansão e concentração no eu; "por que", a grande pergunta a que nunca poderá dar a última resposta, mas que contém a busca sem fim de Deus. Aprende a caminhar, porque, materialmente e moralmente caminhará toda a vida. Mas sabe chorar desde que veio à luz, porque a dor já o tomou em suas garras e não o largará mais.

Mal nasce, começa, para a criança, a se desenrolar um fio, inicia-se a marcha que será batida, até a morte, pelo ritmo inexorável do tempo. Mas nem o fio se desenrola, nem a marcha avança ao acaso. A consciência da criança é semente que se desenvolve e se expande, mas é germe que traz em si todas as características fundamentais da futura personalidade. As notas centrais já estão dadas, e não se mudarão mais. Isso acontece com todos os germes vegetais e animais. Vem depois a educação a que a criança é

submetida, e a que se adapta ou reage, segundo os casos. Intervêm depois as forças externas, as exigências dos outros seres, as imposições da convivência social, os freios morais do dever e da virtude, que se sobrepõem ao instinto. E o tipo originário, qual o construíra a sua história biológica, para se adaptar, mais ou menos, enfrenta todas as pressões, um pouco se transforma, um pouco aprende a mentir e a esconder o seu verdadeiro eu; algumas forças externas se dobram ante a sua vontade, por outras termina dobrado. Com o seu eu originário, com as qualidades boas e más, com os recursos e as deficiências, ele deve saber chegar até o fim, abrindo caminho num mar de forças que o circundam, e que de todos os lados fazem pressão para o invadir. Cada uma, à sua própria semelhança, lhe diz: "eu" e "quero", e não encontra a paz enquanto não se realiza a si mesma. Assim começa a vida, que é luta, e, da maneira como está biologicamente implantada em nosso planeta, não pode ser senão luta sem tréguas para o forte e para o fraco, para o evoluído e para o involuído. Verdadeira escola, ai de quem a ela se exime. Ai dos jovens a quem os progenitores, por excessivo e muito prolongado afeto, que exagera as funções protetoras da criança além dos limites naturais, entregam os meios fáceis de se eximirem à luta. Certas educações cômodas e fáceis são pagas, depois, duramente. Não é possível eximir-se; é necessário exercitar-se cada um no seu plano, no seu nível, segundo o tipo fundamental dado pelo nascimento. A luta não é violência e subjugação senão embaixo. E em todos sabem subir. Nem leis nem religiões puderam agir tão profundamente para civilizar o fundo bestial da natureza humana. Mas, para quem quer e sabe, há formas superiores de luta viril e generosa, que não são a condenação à animalidade, mas a afirmação da mais alta potência no espírito. Neste campo é necessário aprender a lutar. A luta é lei da natureza, necessária, e não está no poder humano evitá-la. Mas aquilo por que somos responsáveis é a forma de luta, forma que nos cabe escolher, segundo aquilo que somos, sobretudo segundo aquilo que queremos e sabemos nos tornar. "Diz-me como lutas e por que lutas, e eu te direi quem és".

Temos falado do destino. Há realmente um destino, e em que sentido? A vida é um encadeamento de causas e de efeitos, que se pode perquirir, remontando muito aquém ao momento em que o indivíduo nasce. Assim os filhos são uma conseqüência dos pais. Mas, ao nascimento, aquele fio comum que se transmite de geração a geração torna-se particular, próprio de cada um, e se chama "eu". Destaca-se do "eu" anterior, do qual muito depende, e conserva-se distinto dos eus sucessivos, nos quais, aliás, continua e

quase sobrevive. Ora, naquele "eu" que é estritamente nosso, a parte que é conseqüência do passado, isto é, a constituição fundamental do germe, do qual deriva o tipo de personalidade está, já então, fora do nosso livre-arbítrio. Para nós, ao menos, que o possuímos na forma já cristalizada, definida na entidade germe, ela é qualquer coisa já então solidificada num tipo. E dessa forma, sem qualquer inquirição, o recebermos ao nascer. Não iremos mais fundo, neste trabalho. Algumas mentes se perturbam, ao ouvir falar de reencarnação, e não se tem o direito de perturbá-las. Certas salutares ignorâncias serão respeitadas. Salutares, porque a humanidade está ainda muito selvagem para ser posta a par de certos conhecimentos. E quem os possui faz bem de não divulgá-los, porque eles não podem e não devem ser concebidos senão por quem os mereceu, ou seja, por quem os conquistou através da maturação. Sem isso, eles não podem ser compreendidos nem admitidos. Aqui se fala, portanto, simplesmente do passado da hereditariedade fisiológica e psíquica, e esta não se pode negar, porque a ciência a toca com as mãos.

Há, indiscutivelmente, na nossa personalidade, uma zona de determinismo. Ela se encontra no fundo do nosso destino, é o instintivo, indiscutível subconsciente, que às vezes se impõe à nossa vontade, antes que a própria consciência desperte. Mas, sobre este fundo hereditário, em todos os sentidos possíveis, filho do passado, eleva-se uma zona de livre-arbítrio, um campo de novas e livres construções, porque o "eu" se forma e se reforma sempre, sem jamais se deter, e se constrói especialmente através de explorações e experiências que atravessamos neste ambiente terreno. E é justamente para a sua construção, ao menos no que respeita ao tempo da vida humana, que nós a atravessamos.

Por destino não devemos portanto entender um cego fatalismo, um fato inexoravelmente imposto, mas um impulso anterior, que se pode e que está em nós corrigir. Ao passado cristalizado podemos opor a força da nossa vontade presente, que pode retificar a trajetória daquela massa, que não caminha somente pela inércia, mas guiada pelo impulso da nossa atual, inteligente e livre vontade. Se isso implica uma zona de relativa, transitória irresponsabilidade, que só o é no presente, porque o subconsciente é filho do passado, não viola, entretanto, a zona muito vasta de responsabilidade consciente do presente, sempre livre nas suas correções e criações5. E se devemos admitir, sob pena de nada compreender ou de acusarmos de

injustiça o Criador, um passado nosso, livre e desejado, mesmo que ele hoje se apresente fixado em forma de determinismo, está claro que, na realidade, a responsabilidade abarca todo o nosso destino. O destino humano, momento do eterno e necessário vir-a-ser, é portanto o desenrolar de uma luta entre determinismo e livre-arbítrio, entre o passado que quer resistir e o presente que deve corrigi-lo. E a balança da justiça pende segundo uma responsabilidade no presente ligada a uma fatalidade, e segundo uma liberdade que, para vencer, deve, agora, quebrar a resistência do determinismo, que está no próprio destino

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No documento HISTÓRIA DE UM HOMEM (páginas 33-38)