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Sobre a terra, a justiça é o triunfo do mais forte Os perseguidos, enquanto não se revoltam e vencem, estão sempre errados Na

No documento HISTÓRIA DE UM HOMEM (páginas 177-184)

O EVANGELHO E O MUNDO

7. Sobre a terra, a justiça é o triunfo do mais forte Os perseguidos, enquanto não se revoltam e vencem, estão sempre errados Na

terra não existe respeito pelo céu. Não se respeita aquilo que está fora de nossa experiência e da possibilidade da nossa ação".

Assim responde o mundo. E poderia ainda ajuntar: não fomos nós que fizemos a lei que impera sobre a terra. Está escrita em nossos instintos, que nasceram conosco; está escrita sobre toda a vida em nosso planeta. Portanto, pelo menos em nosso plano, esta lei não exprime a vontade e o pensamento de Deus?

Quem tem razão? Por que o céu desmente a terra e a terra continuamente desmente o céu? E Evangelho diz: "Ama o próximo como a ti mesmo". Mas o mundo, na realidade, aplica este outro princípio: "Destrói o teu próximo, se não queres que ele te destrua". Como será possível conciliar sistemas tão opostos? Não é apenas um problema do Evangelho e do mundo, mas o problema do destino do nosso personagem, que empenhara sua vida na aplicação integral do Evangelho. Ele procurava uma solução para o problema que se lhe apresentara assim que enfrentara a psicologia do mundo. Estava neste contraste a grande batalha de sua vida, assim como nele estava a trágica luta entre Cristo e a realidade biológica, as duas grandes verdades contrárias. Bem sentia as titânicas dimensões, a vastidão apocalíptica da batalha. Ousar contra a lei suprema da terra, desafiar as leis da vida do planeta - afigurou-se- lhe a mais gigantesca aventura que um homem poderia empreender. E assim vivia o maior drama já concebido pela mente humana - o de Cristo em sua paixão, o de Dante na Divina Comédia, o de Goethe no Fausto; um drama cujo epílogo estava no céu, o desenvolvimento sobre a terra como um desafio e

a substância era a humana destruição de si mesmo, para elevar mais alto a própria ressurreição.

Ele tudo ousara e jogara na palavra de Cristo. Se fosse derrotado, aquela palavra seria desmentida, ao menos no seu caso.

E agora revivia plenamente aquele motivo central do seu destino, na hora trágica e intensa em que era disputado pelas duas vidas, cada uma delas ansiosa por chegar às suas conclusões.

Quando Cristo e Pilatos se encontraram, as duas verdades se fitaram em silêncio, desafiando-se. Pilatos perguntou a Cristo o que era a Sua Verdade15, porque a sua própria ele a conhecia. Era a verdade biológica, prática e concreta, que lhe dizia: "O teu chefe é o imperador, o vencedor pela força, aquele que manda, o único que tem sempre razão. Obedece-lhe, e conserva teu posto. Além disso, há uma ordem social e tu, que a representas, não a podes subverter. Não tem sentido a verdade de quem vive fora do mundo". Pilatos era, simplesmente, um homem prático, e teria compreendido Cristo se Ele lhe tivesse falado com a linguagem do mundo. Naturalmente, nem mesmo esperava pela resposta, que Cristo não deu. Nem um nem outro falou e a verdade não passou desta pergunta. Mas os dois responderam com fatos e conclusões diversas. Os fatos e não as discussões são as respostas mais sérias; uma vez determinados, temos que lhes assumir a responsabilidade e suportar as conseqüências. Cada um seguiu o seu próprio caminho, alcançando sua meta diferente. Era inútil explicar, mesmo porque não seria possível compreender. Assim situadas nos antípodas, as duas verdades se acusavam mutuamente de extrema ignorância. Pilatos não pretendia, realmente, dar fim ao mártir, coisa sem importância, embora com o pior dos significados para ele e seu ambiente. Pilatos é o verdadeiro símbolo do mundo que se baseia no cálculo utilitário, não admite o ideal, considerando-o loucura. E o ideal não tem outra resposta senão o silêncio e o martírio.

Ante estas afirmativas mudas e terríveis, a terra continua a exprobar ao Evangelho a ignorância das condições de fato, tão adversas ao homem que, se este quiser sobreviver deverá saber dobrá-las ao seu próprio domínio. Em tal ambiente, uma bondade que vá além da função feminina da

proteção de sua prole - é antivital. A direção da vida está confiada ao homem - conquistador sem escrúpulos e sem piedade. O martírio, conclusão lógica da vida do pioneiro evangélico, é um absurdo, antibiológico e anti-humano. A verdade é vencer. Seu eu for generoso, o meu vizinho me arruinará; a minha bondade será tomada como fraqueza e a minha derrota será o seu triunfo. Sobre a terra não se admitem outras verdades senão as que são úteis para viver e vencer. E o Evangelho, de início, desarma o homem e manda-o combater na terra sem armas. E isto, tendo pela frente lutadores violentos, sem escrúpulos e que espezinham seus próprios deveres - significa morrer. O ideal evangélico poderia ser realizado se, durante alguns anos, fosse mantido em condições especiais, à custa de uma contínua tensão espiritual, com o alimento de um grande sacrifício. Mas, não podendo se reger continuamente por leis opostas, depressa cairia, arrastando consigo o seu primeiro autor ou intérprete. Esta é a verdade dos falidos e a terra não a aceita.

Eis o mais rude ponto do drama do Getsêmani. Talvez, naquele momento, Cristo sentiu todo o absurdo biológico de sua lei sublime, a sua imensa distância da verdadeira natureza humana, a sua inaplicabilidade à terra, tal como esta é. O supremo martírio não seria, séculos afora, uma suprema derrota? A realidade da vida não terá neutralizado muitos sacrifícios; não terá sido vão o esforço para levar o homem ao alto, através de impossíveis superamentos? Havia fartos motivos para a dúvida, a dúvida humana mais atroz, que pode assaltar o gênio, o herói, o santo - justamente às portas do holocausto supremo. Porque tal é, em verdade, a realidade da vida que eles contam superar. E depois de tanta dor, em lugar de recompensa, eles receberão indiferença e condenação. Mas de quem é a culpa por ser a lógica da terra tão diferente da lógica do céu? Chegou o momento de enfrentar o problema e resolvê-lo.

A lógica da terra se exerce através de "três leis" que todos vivem, inclusive os que as ignoram e as negam, e que se encontram presentes sempre e em qualquer lugar como linguagem universal da vida. Essas leis não são somente uma norma; são uma imposição concreta que fala e obriga à obediência através dos três instintos fundamentais: a "fome, o amor, a evolução".

A "fome" é a lei fundamental que preside à conservação individual, que implica, impõe e justifica o egoísmo a que está confiada a função básica da vida: proteger-se contra tudo e sobreviver a qualquer preço. A vida funciona por unidades egocêntricas que jamais abdicam. Aumentando, a fome se torna o centro de todos os outros apetites e o egoísmo o centro de todas as aspirações. Esta é a primeira, irrevogável e fundamental posição da vida, que é egocêntrica e afirma: "eu sou".

O "amor" é a segunda lei, continuação e complemento da primeira. O egoísmo cinde-se e se prolonga em outro instinto, que preside à conservação da espécie. Aqui, o indivíduo não luta para proteger a si mesmo, mas para proteger seus filhos. É a segunda posição da vida, já não individual mas social, nascendo a família como primeiro núcleo, e partindo do menos para o mais - família, cidade natal, região, nação, raça, humanidade. E a coletividade humana, posição egocêntrica mais vasta, afirma: "nós somos".

A "evolução" é a terceira lei. Como a segunda não aparece depois de satisfeita a primeira, também a evolução não pode atuar senão depois de satisfeitas as duas primeiras. Esta lei, a última a aparecer, continua, completa e coroa as duas precedentes. Segundo ela, o indivíduo não luta pela sua conservação, nem pela da espécie. Superando o problema da proteção, trava-se a batalha da seleção do melhor, para que a espécie atinja formas de vida sempre mais altas. É a terceira posição da vida, posição coletiva, dinâmica, que diz: "nós avançamos". É, portanto, a lei da evolução, seleção e expansão e por meio dela a humanidade se mantém em marcha pelos caminhos do progresso.

Estas três leis correspondem às três dimensões do espaço - linha, superfície e volume. São como os três planos de um edifício: não se podem edificar os andares superiores sem ter edificado primeiro os de baixo. Os três instintos correspondentes surgem e agem sucessivamente, sempre após a satisfação dos precedentes que são a base. O primeiro é mais importante que o segundo e este mais que o terceiro. Com isto, a natureza demonstra a solidez de seu sistema de construção. Assim o instinto mais alto desponta após a saciedade do precedente. Atendido o imperativo inferior, passa-se ao superior. Satisfeita a fome, satisfeitas todas as necessidades egoístas da conservação do indivíduo, obtido o bem estar, passa-se à procriação. Então a exuberância

demográfica faz pressão, nasce a necessidade de expansão material e se fazem as guerras e as revoluções. Logo, o homem, que é tão impiedoso e ávido na conquista da riqueza que lhe custa tanto trabalho, tudo desperdiça durante a guerra, tornando fundamental pagar tributo em benefício da seleção. Assim progride e a ascensão se completa na expansão espiritual representada por novas formas de convivência, de pensamento, de civilização. Satisfeitas as necessidades de conservação do indivíduo e da espécie, levanta-se, exigindo satisfação, o instinto de progredir para servir a uma necessidade mais alta, situada no ápice do edifício, onde impera a lei da evolução.

O instinto do progresso, sendo o último aparecido, ou seja, biologicamente de formação mais recente, é, naturalmente, o menos radicado em profundidade e, por ser menos sólido, é o que mais depressa cai às primeiras dificuldades. É quando a vida se apressa por reequilibrar-se mais em baixo, na posição mais elementar e mais estável das leis inferiores, pois que a natureza antepõe a segurança da conservação ao risco da seleção.

A essas três leis correspondem três formas de luta: pela defesa pessoal; pela defesa da família e pela expansão material e espiritual. Correspondem ainda a essas leis três principais órgãos do corpo humano: o estômago, o sexo e o cérebro, com suas funções - digestão, sentimento e pensamento. A cada função corresponde um instinto e uma voluptuosidade específica que pode levar ao excesso e criar um vício.

O cérebro, com o sistema nervoso, é realmente o órgão da evolução, o órgão condutor que, como antena sensibilizada, escruta em torno e se atira adiante tentando novas experiências. Ao espírito pertence o poder, a conquista, o futuro, mas igualmente o risco e o cansaço de vencer a resistência do passado conservador.

A atuação destas leis depende de um impulso que se manifesta como instintivo desejo de satisfação e de um contra-impulso que é o sofrimento causado pela insatisfação. Alegria de um lado, dor do outro. E por este sistema, a natureza consegue fazer-se obedecida por todos. Ela premia com a alegria a obediência ao impulso que leva à vida e pune com a dor a desobediência, os abusos, os excessos e tudo quanto põe em perigo a vida. Alegria e dor, refinando-se, afastam-se da animalidade. E para cada ser são

fundamentais e instintivas as funções do plano onde, segundo a sua fase de evolução, se equilibra o centro de sua vida.

As três leis correspondem ainda três egoísmos de amplitude diversa, igualmente sagrados, imperiosos e importantes em seu próprio plano, porque presidem à defesa de um dado tipo de trabalho e à consecução de uma diversa função biológica. O homem preso à primeira lei, nada percebe além da defesa de si mesmo; está encerrado numa casca de pequeno egoísmo pessoal. E isto é necessário para que ele possa viver. É um direito que se respeita.

Quando o homem se eleva à segunda lei, o seu egoísmo dilata-se até abranger a sua família de tal modo que, diante do egoísmo mais restrito da primeira lei, parece altruísmo mas é uma ampliação capaz de cobrir um campo mais vasto. Quando, afinal, o homem passa a viver no plano da terceira lei, o seu egoísmo se dilata ainda até abranger o próprio grupo; depois, a nação, a raça, e finalmente toda a humanidade. Cada tipo de egoísmo é, em confronto com o precedente, uma dilatação, e como altruísmo é visto pelos homens dos planos inferiores.

Eis porque o altruísmo se considera virtude. Porque é superação, dilatação da consciência individual, ascensão evolutiva. É um processo de expansão e liberação daquela casca do egoísmo restrito onde ainda o homem superior vê confinado o homem inferior. A passagem de um tipo de egoísmo para um mais vasto, isto é, a sua dilatação no seu relativo altruísmo, é cansativa. Nessa fadiga está o valor da virtude da qual o conceito, o valor construtivo, a lenta graduação são exigências da lei ao longo do eixo central da vida que é a evolução. O cansaço do retorno de Deus pelos caminhos do progresso tem de ser nosso. É o sacrifício do eu quando rompe a casca do egoísmo individual, que dolorosamente se abre e se dilata em altruísmo. O retorno a Deus é conquista de felicidade que não se pode alcançar senão através de renúncia e sacrifício, ou seja, a demolição do separatismo egoísta para a comunhão evangélica. Os homens da primeira lei já tentam, identificar-se no egoísmo familiar que supera o individual. Eles amam egoisticamente, sem elevações altruísticas. Ao contrário, o homem da terceira lei se vê em toda a humanidade, sente o seu eu nos seus semelhantes, em cuja defesa e bem-estar encontra a própria defesa e bem-estar. A essa

defesa ele se entrega com a mesma espontaneidade e energia com que o faz o homem da primeira lei na defesa de si mesmo, pois que seu semelhante é ele próprio e, por isso, merecedor de proteção a todo custo.

Por aqui se vê que compacto organismo de interdependência é a vida. Quando uma criatura se eleva, separando-se dos seus irmãos que ficaram, a lei o impele, pelo instinto, a voltar-se para eles, para ajudá-los a elevar-se consigo. As três leis são como três fases, três etapas contíguas de evolução, que o homem tem de percorrer na trabalhosa ascensão. E quanto está mais próximo de Deus e da realização em si do pensamento de Deus, o homem da terceira lei! E aí está a profunda significação do conceito evangélico: "Ama o próximo como a ti mesmo". É uma ordem dada ao homem para que alcance e viva na terceira lei, difícil e cansativa, porém mais vizinha da ordem e do amor, que é Deus. E isto é suficiente para se formar a moral na qual é virtude o poder evolutivo e vício a tendência para regredir, afastando-se de Deus, em direção involutiva.

Da gradação de fases e de leis se deduz e conclui que o ideal e o Evangelho não podem encontrar campo senão no ápice da evolução, ou seja, nas mais recentes conquistas biológicas, menos consolidadas na assimilação humana especialmente nas zonas de maior risco e maior incerteza, aquelas em que o misoneísmo dá segurança. É um plano verdadeiramente nobre e excelso. Mas sobre a terra dominam pelo número os homens da primeira e da segunda lei. O domínio da maioria que procura se realizar não tolera o homem da terceira lei - um rival que lhe disputa o campo da vida. É natural que este seja incompreendido e perseguido, porque sua missão é soberba e suprema. Mas o seu destino é o martírio e ele terá que correr todos os riscos. Se fracassar em seu ideal, ninguém o lamentará.

Se isto for verdadeiramente útil ao progresso, então o sangue do mártir se espalhará no mundo como chuva fecundadora e a luz do espírito iluminará a terra e a seu tempo a sementeira germinará. Eis a posição do Evangelho na terra. Que fio frágil sustenta essa vida! Não é ainda senão fraca semente caída dos céus sobre a terra nua e exposta a todos as intempéries.

No entanto, essa semente é uma realidade futura e nenhum centro dinâmico luta com maior energia pela sua realização. Cada ação deve ser seguida por uma luta que tem função de eliminar os incapazes, exigindo a resistência que é a garantia do valor íntimo. E enquanto o céu e a terra lutam como inimigos, o fio da evolução liga-os e uma lei de complementariedade os atrai e, afinal, mesmo se combatendo, um cairá nos braços do outro.

Este foi o nó fatal do Getsêmani: amor e dor. Os que superam a terra só podem esperar a morte na cruz, mas a sua suprema função biológica é a exploração do futuro e sua obrigação a de ditar ao mundo a nova norma de vida. Sua missão é inderrogável. A superioridade implica, pela lei do equilíbrio, tremendos deveres. Entre as lutas da terra, a que se supera a todas é essa entre o divino e o humano, pela qual o céu quer e deve imiscuir-se e fundir-se na terra rebelde. A terra revolta-se. Mas trata-se de sublime e irresistível violação. Na descida violenta do espírito sobre a matéria há qualquer coisa do mecanismo da fecundação. O gênio e o santo descem das inacessíveis alturas para atirar-se ao lodo, ao mar de dor e de miséria; o divino se abaixa até o humano; o absoluto vem chorar no relativo. É esta fatalidade que esmaga e oprime o escolhido, até à cruz.

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