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NO INFERNO TERRESTRE

No documento HISTÓRIA DE UM HOMEM (páginas 142-158)

E então, uma dúvida atroz se apossou dele. Dúvida que o impeliu a engolfar-se em nova realidade da terra, antes negligenciada. Qual seria a lei que o condenava com tanta segurança e convicção? E, no dissídio entre ele e o mundo, não podia ser que fosse ele quem tivesse errado? Conheceria, em verdade, este mundo que sempre reprovara? Por que as coisas aconteciam de tal modo? Podia ser que o mundo tivesse boas razões e que houvesse nele uma lógica diferente, que ele não compreendia ainda, por não a conhecer. Que lógica seria essa, e por que seria assim? Havia ali em ação qualquer força ignorada, que escapara à conquista dos seus conhecimentos? Além das afirmações já experimentadas pela inteligência e pela bondade, poderiam existir afirmações diversas ainda não exploradas por ele? Quem teria razão: ele ou o mundo? Quem era superior? Se o mundo era sedento de prazeres materiais, não era ele sedento de prazeres espirituais? Se o mundo procurava fugir à dor com o gozo de seus sentidos, não procurava ele igualmente fugir à dor no gozo do espírito?

Começou, então, desde esse novo ponto de vista, a revisão de seus valores espirituais. O mundo cercara-o, assediara-o, penetrara-o, estava agora dentro dele e ele próprio continuava agora a obra do assalto, cumprindo a própria auto-destruição. Os fatos levavam-no a crer que toda a precedente direção de sua vida fora desbaratada e lhe era necessário, agora, uma direção inteiramente nova e que, uma vez começada, teria que seguir até o fundo. Como um culpado, seu espírito era chamado a prestar contas à razão prática, pelos seus sonhos e ideais. Queria ver que teria acontecido com estes, uma vez estraçalhados pelo inferno terrestre. As partes, se invertiam. Agora era o mundo, no qual ele tivera que cair, que com ele desafiava o Evangelho. Que teria este respondido? Que teria acontecido àqueles delicados sentimentos de bondade, perdão e amor transportados ao reino da força, onde o maior mérito está em saber rebelar-se e vencer. Se a lei do Evangelho, no céu,

subverte as leis da terra, estas, na terra, subvertem aquela. Tornava-se, assim, arruinado o motivo fundamental de sua vida. Já não se tratava de olhar, do alto do céu, as misérias da terra; mas, destas, ver quanto o céu estava intangível e longínquo.

Era a hora de pôr em contato com a crua realidade aqueles ares de super-homem do espírito, que vai à cátedra para julgar e condenar o homem comum. Era a hora de encolher-se às suas medidas, responsabilizando-se pelas próprias desgraças e misérias. Era a hora de se tornar vil e desgraçado, humilde nulidade dos caminhos, despindo o orgulho de passados superamentos, deixando a aristocracia do pensamento e do sentimento que se reduzia, a isenções de privilegiados, por uma realidade em que havia necessidade de olhar face a face. Eis o que o mundo lhe dizia, agora que se tornara um deles: oferecia-lhe uma rude lição, em cuja brutalidade devia encontrar salutar lição de humildade. "Fica sob o jugo, conosco, se, em verdade, como dizes, somos todos irmãos segundo o Evangelho". Era isto que o mundo lhe dizia. A experiência era importante. Num retrocesso involutivo, devia perder as vantagens da liberação e arrostar todos os gravames da matéria. Então o que é mais importante: aperfeiçoar-se para fugir do mundo, voltando-lhe as costas, ou esquecer-se de si próprio, para imergir no mundo, suportando com os seus semelhantes as sua penas? Não tinha ele, livrando-se da riqueza, e aceitando o trabalho comum como um dever, escolhido esse caminho? Provavelmente, a ascensão não pode ser completa sem a descida e o progresso se aprofunda e completa nos retrocessos.

A descida era terrível. Não tinha experimentado a lição da bondade e do ideal e não fora, pelo menos por agora, traído? Por que insistir na utopia do Evangelho, se tais eram os resultados? Talvez Cristo lhe tivesse sido grande ilusão de que o mundo não compartilhava e que insistia em reprová-lo, demonstrando-lhe a falsidade com seu oposto teor de vida. Aqui em baixo não tinha sentido o insensato amor por Cristo, a tola fé em Deus, o espírito de sacrifício na intenção de atingir, quem sabe quando, um céu longínquo e, por agora, inatingível. O mundo dava-lhe uma lição de senso prático e utilitário.

Por que andar em busca de resultados tão afastados, quando os havia mais próximos sobre a terra? Sem dúvida, pelo menos por

agora, a experiência da bondade fracassara para ele. Isto levava-o a mergulhar na experiência da bondade e da força, na esperança de que estas não o traíssem, como o fizera o ideal. É provável que estas eram igualmente falazes, mas ele não as experimentara e, talvez por esta única razão, não fora traído ainda. Já realizara a experiência da inteligência e do coração. Não lhe faltava senão a experiência puramente humana e viril da vontade e da força. E assim entrava em nova fase de vida. Superada a prova da dor como instrumento de redenção ( concessão altruísta feminil da vida), atirava-se agora à prova da luta como instrumento de conquista ( concessão egoísta masculina da vida). A velha experiência trocava de natureza e se completava na outra, que era inversa e complementar. A aceitação passiva se transformava em ação viril. Por um momento, desprezou o aspecto negativo e passivo do ideal feito de sacrifício, de piedade, de bondade, de força, de luta, de conquista. Era uma descida do céu à terra, talvez útil para assegurar a sua posição.

Tinha, agora, que fazer suas não as leis do céu, mas as da terra, e aguardar os resultados. Tinha que realizar nova experiência, sabendo bem que esta não se pode fazer por intermédio de outros, mas somente com meios, perigos e também resultados próprios. Precisava mudar. Não se tratava mais de ordem, de harmonia do divino, de amor ao próximo, de bondade e justiça; tinha que sair deste paradisíaco concerto e entrar num mundo caótico de luta e dissonâncias, de agressão e prepotências, onde o necessário não é coordenar-se, mas reagir e vencer impondo-se a tudo e a todos. Seria isto verdadeiramente diabólico e infernal, ou havia certa nobreza na ferocidade, certa justiça na força, certa respeitabilidade na baixeza?

Às vezes, parecia-lhe quase maravilhoso o novo ponto de vista. Havia, sem dúvida, admirável coragem no insignificante homem para ousar, sozinho, desafiar o caos e impor-se a ele, sem o conforto das harmonias divinas, de auxílio superior. Havia terrível coragem no franco reconhecimento de ser fera e de querer adaptar-se à lei das feras, com todos os riscos e perigos. Havia na inferioridade de grau evolutivo, na primitiva insensibilidade, na rudeza elementar - a potência do bloco de mármore ainda não esculpido e sempre, embora em germe e menos evidente, a mesma centelha de vida de Deus. Do ponto de vista da rude virilidade, a piedade e a bondade pareciam- lhe debilidade e incapacidade. Visto pelo homem da terra, atleta da força,

aquele outro homem do ideal parecia abandonado e inconsciente, embora fosse um atleta do pensamento.

No entanto, aquele tipo de homem comum que ele tanto condenara, era perfeitamente equilibrado no seu ambiente terrestre, ao passo que ele não o era. Via que a natureza premiava com o sucesso a prepotência e a astúcia, garantia a vida aos que sabem usar a força para vencer. Via que, na prática, o triunfo pertence àqueles que destroem o inimigo; os que não sabem se defender e oferecem a outra face têm um fim brutal. Agora via o que o mundo é, não o que será e deveria ser. A lei que os fatos lhe mostravam não mandava ser bom e altruísta, mas forte e egoísta. Via uma natureza desapiedada que não socorre os fracos, antes os condena, e persegue-os para liquidá-los. O tipo que o mundo exaltava, o modelo que se apresentava como ideal a se imitar, é completamente diferente do modelo evangélico que adotara, para imitar Cristo.

Quando de sua experiência neste sentido, não fora compreendido; ao contrário, fora condenado. O mundo tratara-o como um imbecil, porque estava convencido de que o era. Via no mundo completa indiferença para tudo aquilo que não significasse vantagens imediatas para o próprio egoísmo; completa indiferença para com o sacrifício e o altruísmo, que só interessavam quando podiam trazer vantagens pessoais. Que importava aos outros se ele pudesse ser mesmo um gênio, um santo ou um mártir? Os seus semelhantes não podiam se interessar senão pelo rendimento prático e o seu valor era avaliado pela medida em que pudesse ser utilizado para vantagens dos outros. O super-homem é um fraco no campo humano; o supernormal é, por compensação de equilíbrio, condenado à miséria do anormal. O caminho de ideal é caminho de sacrifício e de martírio. O gênio é um inepto para a prática da vida. Compreende, onde os outros nada compreendem; mas em compensação não compreende nada onde os outros tudo compreendem. É insignificante onde os outros são tão exuberantes. Tudo isto nada importa ao homem comum, que apenas se interessa em descobrir qual o ponto fraco do tipo de exceção, para aí o ferir, para desfrutá-lo ou destruí-lo.

Via que a lei altruísta do Evangelho não era nesse mundo sentida como verdade senão pelos fracos, os quais, procurando proteção no

altruísmo, dele esperam tudo. Não era sentida senão como mentira pelos fortes, para os quais o altruísmo dá prejuízos. Em suma, a terra não era lugar de paz, de segurança paradisíaca, como o Evangelho pregava, mas de grande miséria, onde urge a defesa e impera sem tréguas a lei desapiedada da luta de todos contra todos. Um ambiente em que se procura, se exalta, se adora a força. Bondade e justiça são refinamentos dos grandes senhores, são luxos criados para os anjos que estão no céu, não para os demônios que vivem na terra. Aqueles que dispõem de força usam-na para si mesmo; apenas os fracos em busca de auxílio se refugiam no Evangelho. E o Evangelho, feito para a ascensão humana em direção ao espírito, redunda em refúgio de inaptidões. O exército que o segue não passa de multidão à procura de acomodamentos parasitários e de evasão da inexorável e desapiedada justiça das leis biológicas. Se essa justiça é salutar para arrancar do refúgio todos os retardatários da evolução, todos os refratários ao trabalho que o progresso impõe, todos os preguiçosos e ineptos que resistem à lei de seleção do mais forte, ele se perguntava que resultados antibiológicos, que seleção às avessas a lei evangélica acabaria por produzir, de tal modo alterada em sua aplicação, e de tal modo transplantada para o ambiente terrestre. Não era esta adaptação uma terrível vingança da terra contra o céu, não era a demonstração do absurdo da prática do ideal, uma traição contínua ao martírio de Cristo? E, se sobre a terra o Evangelho não podia existir senão assim alterado, de que servia havê-lo proclamado? Se estes eram os resultados práticos, não era uma aberração insistir nesse caminho? No entanto, não se podia negar que sobre a terra também havia uma lógica, embora terrível. Mas as duas lógicas - do céu e da terra - não podiam se encontrar senão fatalmente se invertendo, traindo- se e destruindo-se mutuamente.

Ele, que vivera a experiência da vitória da lógica do céu sobre a da terra, deveria viver a experiência inversa. Ao menos, agora, no mundo, esta segunda era uma realidade. Duas posições exclusivistas, inconciliavelmente contrárias. Cada uma das duas afirmativas, no seu absolutismo, implicava a completa negação da outra. E ambas investiam profundamente sobre o homem, que, para viver uma, tinha que necessariamente renegar a outra. E ele era tão irredutivelmente honesto e leal que não mais podia se adaptar à aviltação de um acomodamento.

Aqui estava, então, a terceira posição, cuidadosamente elaborada nos séculos, aninhada agora no centro da fé e bem armada de defesas - uma posição na qual se triunfava jogando com palavras, à força de prudentes silêncios sobre os princípios mais profundos, sofismado a consciência, refugiando-se nas formas, até pôr de acordo, ao menos em aparência, a terra com o céu.

Tinha-se a doce ilusão de se poder conquistar o céu sem se incomodar o corpo. Isto se formou por tácito consenso, tão profundamente instintivo que todos estavam de acordo sem o saber: uma convenção tão estável que se fixara em costume. O instinto da vida animal, o impulso das leis biológicas adaptavam-se à subversão celeste, aceitando-a parcialmente, em parte repudiando-a e em parte reagindo contra ela. Resultava daí a formação de um tipo híbrido, nem animal nem anjo, em íntima contradição consigo mesmo. Compreendia como a medíocre natureza do homem comum podia se adaptar a essa vida de anfíbio. Talvez fosse a sua natural fase de transição na evolução. Revoltou-se contra isto. Queria continuar sendo ele mesmo, ainda na queda, e preferiu cair inteiramente, mantendo-se coerente. Detestava os sonolentos, os prudentes, os acomodatícios, as meias medidas. Queria um equilíbrio estável na terra, não um incerto esvoaçar sobre o pântano; queria afrontar com coragem o inferno terrestre, em vez de se colocar como indigno às portas do paraíso, Na terrível aventura, queria ser coerente e honesto. Seguia o seu instinto e a sua natureza. A fundamental retidão do seu caráter, a sua inadaptabilidade às combinações e à mentira, a sua revolta contra a vileza de pensar só no próprio interesse foram o fio que não se rompeu nunca e que ainda o mantém, mesmo nesta hora de trevas, ligado ao céu. O único fio que lhe permitiria, embora não previsse, tornar a subir.

XX

REVOLTA

Foi por este tempo que Nietzsche lhe falou no seu "Also Sprach Zarathustra12".

"Repara, ó meu amigo, na solidão!

Onde termina a solidão, aí começa o mercado.

Longe do mercado e da glória, tudo o que é grande se retrai.

Foge da solidão! Inumeráveis são os pequenos e os miseráveis. Salva-te da sua invisível vingança. Contra ti, todos eles desejam vingar-se.

Sim. Os vis são prudentes.

Pensam muito em ti na sua pequena alma - tu lhes deste motivo a suspeitas!

Punem-te por tua virtude. E no fundo não te perdoam senão teus erros.

O teu orgulho taciturno irrita-os. A sua miséria arde contra ti no desejo de uma vingança invisível.

Aquilo que em ti é grande não faz senão torná-los mais desejosos de fazer o mal".

Depois destes conselhos, Nietzsche punha a nu toda a sua revolta:

"Parece-me agora o mundo obra de um Deus sofredor e crucificado.

Aquele Deus que eu criara era a louca obra de um homem, como são todos os deuses.

Aquele outro mundo está muito bem fechado para os homens. Aquele mundo humano e desumano é um nada celeste; e o útero do ser não fala absolutamente ao homem.

Na verdade, é muito difícil provar que o Ser é; mais difícil fazê-lo falar.

Não escondas mais a cabeça na areia das coisas celestes, mas levanta-a com liberdade: uma cabeça terrestre que cria o sentido da terra.

A guerra e a coragem realizam coisas maiores que o amor do próximo".

Na sua descida involutiva, o nosso personagem ia-se habituando a esta outra orientação que lhe oferecia visão diferente e dava novo sabor às coisas.

Assim via os homens e a vida - não mais colocando-se no alto dos céus, mas da própria terra e, naturalmente, tudo lhe parecia diferente. No profundo de sua nova miséria, compreendeu que ia precisar de terrível coragem para viver assim sem Deus, sem a doce música espiritual do Evangelho, sem esperança, sem poder pedir auxílio, no meio de uma realidade impiedosa. Certamente, a figura de Lúcifer tinha sua grandeza e sua beleza, um Lúcifer revoltado que ousa, sozinho, desafiar o universo. Já não era o tempo dos doces sonhos. Era preciso dar-se aquela coragem amarga e terrível, de saber viver por si, entre cegos perdidos no universo. Não era homem para

apiedar-se de si mesmo e pedir socorro. Preferia ir até o fundo, enfrentando o problema sem acomodamentos. Precisava fazer, com urgência, para si mesmo, uma filosofia objetivamente sólida que o orientasse na realidade. Precisava fundar outras bases objetivas para nova verdade que explicasse este mundo, uma verdade mais resistente e concreta que a outra destruída, uma verdade que pudesse, afinal, não mais desmoronar. Fora desiludido; queria agora coisa segura, sólida - uma realidade de ferro, materializada em fatos, indiscutível, universal e sempre presente, sempre válida e aceita pelos seguidores de todas as verdades. E onde encontrá-la senão no mundo dos fatos, na realidade da vida? Só a verdade biológica representava, ao menos na terra, a linguagem universal, entendida por todos, permitindo entender-se, mesmo com os animais; uma verdade finalmente aceita por todos, verdadeira, sempre aplicada aos seres, vivida por todos, mesmo pelos que a ignoram, ou não crêem nela, ou a negam. Esta era, finalmente, a verdade do consenso unânime imposto pelas leis da vida. Era a indiscutível. Era preciso fazê-la contar pela voz dos fenômenos que a exprimem no ambiente terrestre. Só essa podia ter a solidez que apenas a aderência experimental à realidade pode dar. Só com esse método mais universal poderia medir tudo e explicar a conduta dos homens, religiosos ou ateus, de todos os homens, fossem quais fossem suas afirmações teóricas. Desejava compreender por quais razões biologicamente verdadeira tinha o homem, que ele agora observava, agido assim. As delicadas construções espirituais do céu não resistiram. E desta derrocada queria compensar-se com a conquista de solidez sobre a terra. Já que tinha de limitar seu campo, queria, ao menos, resultados seguros. E a terra tinha a ciência materialista, já orientada neste sentido, objetiva, experimental, concreta, utilitária. Sem mais imersões no imponderável, já agora negadas à sua cegueira, como à de seus semelhantes, a sua verdade não podia já ir além dos resultados oferecidos pela percepção dos sentidos. Tinha de se limitar a ouvir a voz dos fenômenos, para que estes lhe revelassem o próprio significado e com ele a verdade terrestre que continham, porque neles ela devia estar sempre presente. Devia agarrar-se às manifestações dos fenômenos e da vida, porque certamente elas exprimiam as suas leis. Podem existir, também, outras leis, mas esta é, sem dúvida, a lei do ambiente terrestre, a sua verdade. E encontrou a realidade biológica, impiedosa, bestial, lei de luta pela vida, de seleção dos mais fortes; encontrou-se diante dos instintos primordiais da animalidade, os motores elementares da existência: a fome, o amor, a evolução para a conservação individual, como para a conservação da espécie. Era uma

verdade bem magra, esquematicamente animalesca, mas indiscutível. Certamente, era triste esta mutilação de quem reduz todo o seu ser à sua própria estrutura animal. Mas, não era esta a realidade da vida? Não era vão tentar a superestrutura do ideal? Não era essa a hora da degradação involutiva?Ele poderia ter-se retraído e permanecer no centro morto de seu espírito, ali se deixando extinguir sem reagir, em triste depressão e renúncia à vida. E em verdade, foi esta a primeira tendência de seu espírito, logo depois dos casos descritos. Viveu, depois dos golpes recebidos, um período de anulação que o teria levado à morte se não tivesse sobrevindo um irresistível instinto de vida. Tinha de reviver, senão mais no céu, ao menos sobre a terra, não importa se diferente. E seguir um período de renovação, mesmo em sentido inverso. Ao abatimento da morte seguiu-se, então, a reação da vida; à resignação do vencido, a revolta de Lúcifer. Tudo era lícito, menos renunciar à vida. Não era hora das virtudes passivas da paciência, mas das virtudes ativas da força. "Quero viver!" gritou ele. E sua vida foi um grito de revolta. Aliás, não tinha escolha. Se desejava sobreviver, não lhe restava outro caminho. Não era esta a hora das trevas? Portanto, coragem! Precisava suportar até o fim a prova da animalização. Quem iniciara este suicídio espiritual? quem o provocara? Ele procurara-o, ou desejara-o? Tudo estava disperso, condenado, repelido - tudo o que era o melhor de sua alma e que ele

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