• Nenhum resultado encontrado

O Problema da Riqueza, do Trabalho e do Evangelho

No documento HISTÓRIA DE UM HOMEM (páginas 75-82)

"Quem não trabalha, não come" (S. Paulo)

Não é a riqueza em si que merece condenação: porque ela é força que pode, quando bem empregada, ser um meio poderoso de realizar o melhor. Merece condenação a psicologia de avidez que é a sua auréola natural, a atmosfera sufocante que dela constantemente emana, o mal que, para conquistá-la, não se tem receio de praticar, as aberrações que provoca, a

horrível espécie de almas que atrai e de que se circunda, a escravidão, a asfixia, a abjeção espiritual que freqüentemente são o seu preço. Para libertar-se de tão triste companhia era preciso livrar-se da sua causa.

Não era fácil. Não é fácil no mundo moderno, onde tudo o que se refere à propriedade é exatamente regulado por meio de mil veículos jurídicos, complexa rede de interesses em equilíbrio. Não é tão simples resolver o problema, como no tempo de Cristo ou de São Francisco. Havia, pois, complicado conflito de deveres, em que se jogavam os direitos alheios, que não se podem lesar. Como resolver o caso entre tantos deveres voltados para direções contrárias, e todos autorizando, perante a consciência, pedidos de satisfação? Como cumprir uns sem lesar os outros? São Francisco, por exemplo, devia lesar o dever de obedecer ao pai, porque tinha de obedecer a um dever maior. E qual, no nosso caso, era o dever maior? Todos falam sempre de seus direitos; entre os seus deveres ele achava difícil a escolha. Não bastava esquecer os interesses e o egoísmo para resolver a questão.

Os seus bens eram hereditários, ou seja, obtidos gratuitamente. Não eram fruto do seu trabalho. A sociedade do seu tempo admitia essa forma de aquisição, que a consciência lhe declarava injusta. Não condenou os outros, mas apressou-se a corrigir-se a si mesmo. A aquisição gratuita de bens por hereditariedade era, "para ele", para a sua lei moral e pessoal, coisa ilícita, imoral, inadmissível. Cuidava de si e respeitava a lei dos outros. Mas devia viver conscientemente a sua lei.

E esta não era somente a lei instintiva da sua consciência, pois era também a Lei do Evangelho. Ouvia a voz longínqua a repetir-lhe:

"Bem-aventurados vós, que sois pobres, porque vosso é o Reino de Deus!

Mas, ai de vós, ó ricos, porque já tendes a vossa consolação!"

E ainda:

"Dá aos que te pedem, e se alguém te tirar o que é teu, não demandes com ele"

E por fim a máxima:

"É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus".

Ele sentia bastante o Evangelho no coração, para não tomar a sério estas palavras. E o aborrecia bastante a elasticidade de consciência e as acomodações, para não sentir o dever de tomar uma posição

bem definida, entre Cristo e o mundo. Preferiu Cristo, mas o mundo o condenou, e começou a luta.

Não pretendia, de fato, no seu coração, aplicar aos outros a sua lei. Não condenava, não julgava; perdoava, pensando que como medimos seremos medidos. Não podia deixar de sentir a injustiça originária que está na base de toda acumulação de riqueza, que muito raramente se pode formar apenas com o trabalho, sem ao menos um início de fortuna. Este injustiça originária se agravava com a gratuita transmissão hereditária.

Achava absolutamente anti-cristã, ainda que em parte, a vida à custa do que não fosse o fruto do próprio trabalho. Viver do trabalho alheio, isto é, daquele próximo que se deve amar, e sobre cujos ombros não é, portanto, lícito, a um cristão acomodar-se para se deixar levar. Achava absolutamente anti-cristã essa concepção egoísta da vida, base de explorações e causa de lutas, porque o pobre é por ela instigado, talvez mesmo constrangido a fazer justiça, com a esperteza, com o furto e a violência. As religiões preferiam acomodar-se, passando por cima deste ponto fundamental da eqüidade evangélica, mas ele quis estar inocente diante das condescendências anti-cristãs e das suas tristes conseqüências morais e sociais. São Paulo, falando de si mesmo, dizia-lhe que "trabalhava com as próprias mãos, para não ser pesado a ninguém" ( Atos, XX 33-34 ). Os sistemas do mundo representavam convenções, estavam consagrados pelos costumes, eram uma contradição admitida. Tudo aquilo era aceito, corrente, legal no mundo; a sua consciência, porém, não aceitava compromissos e definia claramente as suas posições. Não podia endossar tudo aquilo sem se tornar cúmplice; não podia aceitar os benefícios sem incorrer na responsabilidade.

A injusta distribuição da riqueza era o problema do seu tempo, e contra ela se batiam os homens, as classes sociais e os povos. O espírito do seu século insurgia-se contra aquela injustiça, que tanta luta custava. O mundo debatia-se para preparar o advento da justiça social. O instinto da ávida acumulação egoísta era biologicamente justo, mas correspondia a fases evolutivas do passado, que hoje devem ser superadas por outra fase, de mais justa coordenação orgânica coletiva. E se esta preparação tantos esforços e sacrifícios custava, podia ele, por interesses pessoais, lançar- se contra o futuro?

Sentia que a fundamental injustiça da exploração econômica devia ser corrigida pelo "Quod superest date pauperibus10", pois o

supérfluo é realmente roubado aos pobres, que dele necessitavam para viver. Além disto, um grande preceito lhe vinha de Cristo: "Ama o teu próximo como a ti mesmo". Devia cumprir também este dever. Não se tratava somente de livrar-se do peso, das ligações, da injustiça, da riqueza. Tratava-se, para amar o próximo, que na sua maioria é pobre ou quase pobre, de abraçar a sua vida, participar das suas fadigas, suportar as sua tribulações. Tratava-se de trabalhar com a maioria e de ganhar o próprio e justo pão cotidiano. Tratava- se de caminhar seriamente com o povo, começando por si mesmo e não pelos outros, pelos deveres e não pelos direitos, praticando antes de pregar. Sentia, na consciência, que só o fruto do seu trabalho podia ser honestamente seu. Sentia que essa era a forma da verdadeira fraternidade evangélica e a verdadeira realização da justiça social.

Considerava o trabalho não só como dever para com o próximo, mas como direito, na escola da sua formação individual. Segundo a velha concepção, os valores maiores são representados pela riqueza, ante a qual o homem é um meio. Segundo a sua concepção, que era a dos novos tempos, o maior valor é o homem, ante o qual a riqueza é um meio. Se antes se antepunha a riqueza ao homem, amanhã se deverá antepor o homem à riqueza. O trabalho, então, não é mais um meio de aquisição de bens econômicos, mas uma forma de exercício e aquisição de capacidades novas, a que cada um tem direito de ser admitido, porque isso representa a sua formação e a sua evolução. Assim concebido o trabalho, ele quis a sua parte, como dever e como direito.

O fato de haver tomado, espontaneamente, a parte que lhe cabia no peso da vida, proporcionava-lhe, por fim, implicitamente, maior estabilidade de posição social, que é sempre mais solidamente equilibrada quanto mais em baixo, quanto mais se aproxima da normalidade e se afasta da exceção. Mas tudo isso não era fácil realizar. Quem o haveria de ajudar?

Com a ação começarem as dificuldades. Toda a rede de interesses que se forma em torno de uma riqueza reagia. Tudo quanto já se formou e estabilizou, em qualquer posição, represente um equilíbrio que se defende e resiste. Em qualquer lugar e momento se formam prontamente estas coalizões, estes tácitos consensos, em que se harmonizam tão espontaneamente os homens, quando vêem nisso uma utilidade, e que são verdadeiros organismos armados contra tudo. Para se libertar a si mesmo, devia libertar também, muitos dos seus dependentes, ou seja, desalojá-los de suas posições, a que estavam bem agarrados, pois pensavam de maneira bem

diversa. Sucedia-lhe, em menor proporção, como a certos chefes que são os servos da casta, que os sustém na posição enquanto isso lhe convenha. Aprendeu assim, logo, a conhecer a verdadeira face do homem.

A sua particular experiência o levava à conclusão de que administrar pode ser sinônimo de roubar. Bastava deixar-se administrar para conseguir de pronto a libertação. Mas ele não era um inepto, que se deixa destruir por preguiça ou incapacidade, e não podia absolutamente fazê-lo em benefício do furto. Não poderia ser proprietário, sem se tornar cúmplice responsável. Assim percebeu que a libertação de um patrimônio, para atingir a pobreza franciscana, era problema moral e material muito complexo em nosso mundo moderno. A mesma humanidade que lhe pedia fraternidade o impedia de realizá-la, com a sua feroz avidez, demonstrando-lhe como o mundo é pouco disposto a compreender tais sacrifícios, que entretanto tem a coragem de pregar e de pedir. Percebeu quanto é difícil para o indivíduo, num mundo estruturado em sentido oposto, saber resolver o problema da exploração econômica, sem provocar qualquer prejuízo. Isso ainda porque cada qual quer compreender os motivos dos atos do próximo e desconfia sempre. Ora, os seus motivos ninguém conseguia compreender e se os compreendesse não os admitiria. Toda a sociedade era impulsionada por uma vontade em sentido contrário: pilhar, acumular, enriquecer. Todos os caminhos dirigiam-se naquele rumo e todos andavam naqueles caminhos. Todas as instituições, leis, costumes pressupunham aquelas motivações. Bem longe de admitir a possibilidade de existir um honesto, que afasta de si a riqueza por um senso de justiça, o mundo se arma de desconfiança contra o homem que, cheio de escrúpulos, tem muita pressa em se desfazer da riqueza. E tudo se volta contra quem vai contra a corrente.

Os seus deveres não eram egoístas, utilitários, dos que permitem fazer bela figura e dão, ao mesmo tempo bom rendimento. Eram deveres reais, de consciência; deveres estranhos ao mais longínquo rendimento, deveres incompreensíveis e, portanto inadmissíveis. Estes deveres escandalizavam os outros, que desejam resultados concretos para poderem avaliar. Os espertos do mundo julgaram-no mais esperto do que eles; acreditavam que, para fins de lucro, disfarçava-se em altruísta. Os homens de bom senso, ainda mais espertos, chegaram a descobrir, por meios muito complexos, os seus recônditos objetivos reais.

A luta foi longa e corpo a corpo, mas o fez conhecer o homem. Descobriu que era muito difícil saber dar sem fazer mal. Via que o

pobre não era, quase sempre, senão um rico frustado, muito diferente do pobre de espírito, cheio de toda cobiça, insaciável, de alma agarrada ao dinheiro, e cada ato magnânimo servia de estímulo àqueles sentimentos. Percebeu que o homem, freqüentemente, ao ato passivo de receber, preferia ser ativo no pilhar; preferia a conquista à esmola. E isso é biologicamente normal, mas tende a fazer do homem, em última instância, um malfeitor. O seu signo, porém, é positivo, e a ele a natureza confia o trabalho da seleção, e não o da conservação, que compete à mulher. Descobriu no homem o seu aspecto de mais ou menos cego executor das leis biológicas; espantou-se com a imensa, insuportável distância que o separava do Evangelho. Na luta corpo a corpo para a realização do seu plano, ele era o supremo utopista, escarnecido e incompreendido. Essa foi a resposta bem clara que o mundo francamente lhe deu, segundo a sua lógica natural. As leis biológicas, aplicadas ao homem por instinto, embora sem este as compreender, rebelam-se contra ele, precipitaram-se ao seu encontro, como enfrentando um violador. No mundo, ele estava errado. Por certo a sua forma de luta era muito diferente da que as leis da natureza impunham à terra; buscava uma seleção muito elevada, muito complexa e de muitos remotos resultados, para que as suas ações pudessem ser admitidas num mundo em que se desenvolvia outra luta, dirigida no sentido de outra seleção. De resto, aquele mundo estava bem solidamente situado e equilibrado e, na sua férrea lógica, no âmbito do seu plano, tinha razão. A grande maioria vivia aquela lei, enquanto ele estava só ou quase só; achava-se, portanto, deslocado. O nosso utopista, tinha consigo o Evangelho, e se havia lançado justamente na via da sua aplicação integral. Chocava-o a enorme dificuldade de realizá-lo na prática e o gritante antagonismo em que o mundo se encontra com o Evangelho e o Evangelho com o mundo. E se perguntava por que a lei biológica, destinada por Deus a reger a vida humana e gravada nos instintos do homem, tinha de estar nos antípodas da lei evangélica, igualmente destinada por Deus a reger aquela mesma vida humana.

Este livro quer antes relatar experiências do que formular teorias. Narremos, pois. Ele continuou inabalável, enquanto registrava em si mesmo essas observações. O nosso relato é breve, mas, para ele, a luta foi longa. Nós fazemos simplesmente um relato, enquanto ele construía um homem. Ele continuou. Havia jurado fé no Evangelho e com o Evangelho queria ir até o fim, se necessário, até os extremos da desesperação e da morte. Havia decidido dar agora à sua vida este conteúdo: a experiência suprema do

Evangelho, integralmente vivida. Que aconteceria? Observava e registrava. Nele se travava o grande duelo: quem teria razão, o Evangelho ou o mundo? Enquanto a sua vida prosseguia, observava os entrechoques da batalha. O mundo derrotaria nele o evangelho, ou o Evangelho venceria o mundo? Neste segundo caso, a sua vida não era mais uma utopia. Não era um louco, como se dizia; o triunfo do seu espírito estaria completo, a via excepcional que seguiria não era errada. O seu caminho, porém, era tão contrário às leis do mundo, pelo qual avançava, que seria necessário um contínuo milagre, a presença nunca suspeitada de uma Divina Providência, que o salvasse a cada passo de tudo e de todos. E olhava em torno para ver se o milagre se verificava e se poderia verificar-se. Tremia no mais íntimo de si mesmo, porque compreendera que a sua atitude, no fundo, era um desafio de obediência a Cristo. Mas sabia também que se entregava todo, jogando a cartada da vida, e quem assim procede talvez tenha algum direito mais do que os outros. E se, ao contrário, o mundo derrotasse o Evangelho, demonstrando-lhe, através de fatos, nesta experiência decisiva, a sua absurdidade prática? Se a Divina Providência, com a qual ele contava, o abandonasse; se esta força imponderável lhe escapasse na sombra, que meio teria para mantê-la presente e ativa, que direito teria de considerar-se um predileto, particularmente ajudado por Deus? A sua fé era grande: empenhava a vida em confiança, sob a palavra de Cristo. Era, então, assim terrivelmente forte, a voz de Cristo nele? E se este Evangelho, sobre o qual empenhava todo o seu ser e investia todas as ações e todo o capital da sua vida, o traísse, o que lhe restaria? Restar-lhe-ia uma simplicíssima; o direito de dizer em plena consciência, de alma nua diante de Deus e em nome da divina justiça que, seguindo o Evangelho, tinha errado, e que não é prudente acreditar sem ver. Na sua alma se teria dado um terrível abalo que teria sido a sua destruição. Mas que lhe importaria a sua alma, quando naquele abalo teriam caído também o seu Cristo e o seu Evangelho? O dilema era impiedoso e tremendo. O leitor não se

espante, porém, porque, quando uma consciência age retamente, nunca é abandonada por Deus.

XI

No documento HISTÓRIA DE UM HOMEM (páginas 75-82)