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A natureza dialética da rede urbana enquanto realidade espacial

A análise da rede urbana por meio das categorias estrutura, processo, função e forma somente se torna possível por ser a rede urbana parte integrante da dinâmica espacial. Dessa forma, falar da rede urbana é, antes de mais nada, tratar do espaço. Um espaço social, cuja realidade se estabelece no âmbito da sociedade como to- talidade. Um espaço entendido como dimensão da sociedade, diale- ticamente articulado com ela, sendo ao mesmo tempo, sua parte integrante e guardando certa especificidade no seu bojo. Assim, a apreensão da concepção de espaço se impõe como pré-requisito à compreensão da natureza da rede urbana.

O espaço geográfico é o espaço social e historicamente pro- duzido, onde o homem desenvolve sua vida, é a morada e lugar de trabalho do homem. Na visão de Santos (1996, p.122), deve ser entendido como “[...] um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que estão acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam através de processos e de funções”.

Desse modo, a definição de espaço não pode, de forma alguma, desconsiderar a imbricação que as formas possuem com o processo histórico e com a vida social, o que também é evidenciado em Souza (1997, p.22), quando argumenta que o espaço é o fruto da transfor- mação da natureza pelo trabalho social, construído e alterado em graus variados pela intervenção do homem, não sendo apenas um espaço abstrato, mas sim resultado de uma construção concreta nos marcos de uma dada sociedade.

Santos (1996, p.130) propõe que o espaço geográfico seja reco- nhecido enquanto um fato, um fator e uma instância social, pois ao mesmo tempo em que se define pelo conjunto, a sociedade também o define.

De um lado, o espaço é um fato social porque consiste em uma realidade objetiva, uma vez que se impõe aos indivíduos

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como um resultado das relações historicamente realizadas. De outro lado, é um fator social por possuir uma tendência ineren- te à organização espacial de se fazer reproduzir suas principais linhas de força.

Reside nessa constatação a explicação para o fato de que as redes urbanas mais densas tendem a aprofundar sua densidade e sua condição de centralidade em relação a outras redes urba- nas menos densas, com pouco dinamismo econômico e, portan- to, com menor diversidade de níveis hierárquicos de centros. As primeiras, enquanto espaços do mandar (SANTOS; SILVEIRA, 2002), tendem a se manter e a se adequar mais rapidamente às mudanças nas lógicas de produção, circulação e consumo, enquanto que as segundas, espaços do fazer, apresentam maior dificuldade de converter sua organização às novas lógicas do mercado e acabam, por isso, mantendo-se como espaços contro- lados por agentes externos.

Desse modo, o espaço é duradouro, suas formas apresentam resistência às mudanças, não se desfazendo de imediato diante das metamorfoses de processos, ocasionando, inclusive, a adequação de determinadas dinâmicas às formas preexistentes. Assim, o espaço é um registro, um testemunho de um momento do modo de produção, como destaca Santos (1996, p.139),

[...] quando um novo momento – momento do modo de produção – chega para substituir o que termina, ele encontra no mesmo lugar de sua determinação (espacial) formas preexistentes às quais ele deve adaptar-se para poder determinar-se. De logo, pode- -se falar do espaço como condição eficaz e ativa da realização concreta dos modos de produção e de seus momentos. Os objetos geográficos aparecem em loca- lizações, correspondendo aos objetivos da produção em um dado momento e, em seguida, por sua própria presença, eles influenciam os momentos subsequen- tes da produção.

O reconhecimento de toda essa relevância do espaço enquanto componente da realidade social dá suporte a sua caracterização,

segundo Santos (1996), como uma instância social. A persistente negação dessa condição pela literatura científica, até mesmo por aqueles que consideram a sociedade como uma estrutura ou um sistema, levou o autor a buscar a compreensão das características que definem uma instância social e a verificar se tais atributos também se identificam no espaço. Após fazer este paralelo entre os atributos inerentes a uma instância da sociedade e as carac- terísticas do espaço, Santos chega a constatação desse enquanto instância social, pois

[...] o espaço, como as outras instâncias sociais, ten- de a reproduzir-se, uma reprodução ampliada, que acentua os seus traços já dominantes. A estrutura espacial, isto é, o espaço organizado pelo homem é como as demais estruturas sociais, uma estrutura subordinada-subordinante. E como as outras ins- tâncias, o espaço embora submetido à lei da totalida- de, dispõe de uma certa autonomia que se manifesta por meio de leis próprias, específicas de sua própria evolução (p.145).

O espaço como uma instância social e a sociedade como con- junto, isto é, como totalidade, seriam, assim, fatores dialeticamente articulados, em permanente interação, ao mesmo tempo complemen- tares e contraditórios em sua tarefa de compor a realidade social. Por meio da dialética é possível interpretar a complexa dinâmica do espaço, pois esta engloba, necessariamente, a ideia de movimento na história, já que como resultado da “[...] confrontação entre tese e antítese, a síntese contém aspectos positivos da tensão anterior [...]” (SPOSITO, 2004, p.44). A dialética, numa perspectiva materialista, como evidencia Cheptulin (1982), tem suas preocupações voltadas para as “[...] formas gerais do ser, os aspectos e os laços gerais da realidade, as leis do reflexo desta última na consciência dos ho- mens” (p.1), o que claramente se aplica à análise do espaço.

Em outros termos, uma determinada estrutura espacial, ao ser colocada frente a frente com novos processos oriundos da socieda- de, cria uma tensão, que ao mesmo tempo em que se instaura como uma oposição, contradição, constitui-se como criadora de uma nova

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realidade e de uma nova estrutura espacial. Essa compreensão do espaço está inscrita numa interpretação dialética e, como bem enfa- tiza Sposito (2004, p.45), a dialética enquanto

[...] ciência das leis gerais do movimento e do desen- volvimento da natureza, da sociedade e do pensamen- to humanos, possui três leis, amplamente conheci- das por aqueles que têm um mínimo de familiaridade com o marxismo, que assim podem ser resumidas: (1) a transformação da quantidade em qualidade e vice-versa; (2) a unidade e interpenetração dos con- trários, e (3) a negação da negação.

Neste sentido, o surgimento de determinadas qualidades no corpo da sociedade pode resultar em transformações mais am- plas de sua organização, da mesma forma que o avolumar de determinados eventos pode gerar mudanças qualitativas em seu interior, o que demonstra o poder transformador das contradi- ções e negações.

Uma abordagem da concepção de espaço a partir de uma pers- pectiva dialética pode, também, ser encontrada em Soja (1993). Para o autor, o espaço não é nem uma estrutura separada nem um sim- ples reflexo da estrutura de classes que marca a sociedade, mas sim um componente articulado dialeticamente com as relações de produção gerais. Nas palavras de Soja (1993, p.99):

A estrutura do espaço organizado não é uma estru- tura separada, com suas leis autônomas de constru- ção e transformação, nem tampouco é simplesmente uma expressão da estrutura de classes que emerge das relações sociais (e, por isso, a-espaciais?) de pro- dução. Ela representa, ao contrário, um componente dialeticamente definido das relações de produção ge- rais, relações estas que são simultaneamente sociais e espaciais.

Da mesma forma, Santos (1996), como apresentado anterior- mente, já assumia essa postura dialética ao tratar da concepção de espaço. Contudo, em obra mais recente, essa compreensão aparece mais claramente desenvolvida. Para Santos (2009a, p.63) “o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contradi-

tório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”.

Na dialética assim delimitada, os sistemas de objetos e os siste- mas de ações só podem ser compreendidos se não forem considera- dos isoladamente, ou seja, só podem ser apreendidos se considera- dos enquanto formadores de uma totalidade, o espaço, já que vivem em uma interação constante, onde os sistemas de objetos condi- cionam a forma como se dão as ações. O sistema de ações, por ou- tro lado, leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes, conferindo a partir dessa interação a dinamicidade característica do espaço.

Segundo o autor, sistemas de objetos cada vez mais artificiais, dinamizados por sistemas de ações igualmente artificiais, e cada vez mais tendentes a fins estranhos ao lugar e a seus habitantes, pas- sam a ser a marca fundamental do conteúdo do espaço na atualida- de. Esses sistemas técnicos contemporâneos, que, segundo Santos (1994, p.91), criam “[...] sobre a face da terra uma área de combate que é, ao mesmo tempo, a base da dinâmica e o substrato da dialé- tica do espaço”; encontram no espaço urbano, ao mesmo tempo, um espaço essencial e resistente aos seus interesses, que se recusa à difusão rápida devido a materialização de tempos distintos, que dão vida a “[...] comportamentos econômicos e sociais diversos” (p.96).

Portanto, a rede urbana consiste numa realidade inegavelmen- te espacial, possuindo a mesma natureza do espaço do qual é parte indissociável. A rede urbana é, assim como o espaço em geral, com- posta por sistemas de objetos, ela em si é um grande sistema de obje- tos, se se considera os centros urbanos como tais; mas esse sistema de objetos somente ganha sentido ao ser dinamizado por sistemas de ações, ou seja, a rede de cidades existe por conta das funções de- sempenhadas pelos centros, pelas atividades que eles abrigam, pela ação de agentes concretos (empresas, órgãos estatais, movimentos sociais etc.), enfim, pela dinâmica social que os preenche.

Desse modo, a análise da rede urbana é, antes de mais nada, um estudo do espaço. Um espaço construído na dialética com a to-

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talidade social. Por isso, analisar a rede urbana é, necessariamente, falar de formas, mas é também falar de relações e de ações. A rede urbana é inseparável da noção de conexão, de articulação, daí resul- ta a indispensabilidade de se conhecer as formas de interação entre os centros urbanos para se apreender a sua natureza.