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4 ESTADO E NEOLIBERALISMO NO CAPITALISMO:

4.1 NATUREZA DO ESTADO CAPITALISTA

Como foi abordado, através da adoção das políticas neoliberais, o Brasil inaugurou uma nova etapa de subordinação à economia capitalista mundial, com o Estado tendo um papel fundamental na própria constituição das estruturas de poder internas e na consolidação das estratégias de acumulação de riqueza que privilegiam o capital financeiro, subordinando as demais frações do capital à sua lógica de funcionamento.

Nesta nova etapa, o Estado nacional-desenvolvimentista foi submetido a um processo de reestruturação, que ainda continua em andamento, impondo novas configurações estatais com o objetivo de apoiar o desenvolviment o das forças econômicas que dão impulso à nova etapa de acumulação capitalista. Para tanto, o suporte ideológico que serviu de argumento para a promoção de mudanças estruturais na economia brasileira partiu da idéia, largamente difundida, de que a descontinuidade do crescimento econômico das sociedades latino-americanas, a partir da década de 1980, tinha como fundamento central a própria crise estatal, a partir de seus desequilíbrios orçamentários.

Como artifício ideológico, a tese da crise fiscal, portanto, tornou-se inquestionável e ponto de partida para uma parcela importante dos estudos

acadêmicos, da retórica política e das propostas de mudanças que contribuíram na defesa e adoção de políticas econômica e de reforma neoliberais. Entretanto, esta tese não se sustenta como principal argumento da crise econômica contemporânea na concepção neoliberal-ortodoxa, pois os déficits públicos, os orçamentos desequilibrados e o endividamento público passam a figurar, mais do que em qualquer outra época do capitalismo, como molas propulsoras da acumulação de capital e da sustentabilidade das economias ocidentais. Como adverte Santos (1998), Estado e finanças públicas estão completamente inseridos na dinâmica de acumulação, tanto nas esferas fiscal-financeira-monetária, quanto na determinação da demanda efetiva.

As reformas econômicas adotadas na América Latina promoveram a abertura comercial e financeira, na década de 1990. Juntamente com a política de abertura, empreendeu-se uma estratégia mais profunda de transformações estruturais que procuraram redefinir o papel do Estado, na sociedade. A reforma do Estado passou a ser um imperativo das economias latino-americanas e tiveram, como suporte ideológico, a tese da crise fiscal.

Os argumentos subjacentes à defesa da reforma do Estado se alinham, claramente, aos princípios da ortodoxia neoliberal a ao conservadorismo político, porque a sua compreensão da realidade contemporânea não é capaz de contextualizar as circunstâncias históricas do capitalismo contemporâneo. Essencialmente, não conseguem ou não estão interessadas em perceber as relações de poder que resultam das novas configurações da ordem do capital e as transformações produtivas na base de funcionamento da economia.

A explicação da ortodoxia liberal sobre a crise do Estado é, ao mesmo tempo, extremamente limitada e mistificadora. Seus argumentos pragmáticos são insuficientes para explicar o movimento mais sistêmico de transformações na ordem capitalista mundial e as novas relações internacionais, que têm incorporado, à lógica global de acumulação, os países subdesenvolvidos.

Diante dessas limitações, é mister fazer uma crítica aos argumentos da ortodoxia econômica que balizam a tese da crise fiscal, pois se compreende que seus pressupostos trabalham com a perspectiva de exterioridade das relações entre Estado e economia. O tratamento macroeconômico que dá suporte aos pressupostos da crise fiscal do Estado é insuficiente para desvendar as relações complexas que envolvem o Estado e a economia capitalista. Estão fora da análise,

essencialmente, outros aspectos e dimensões analíticas que são subjacentes às determinações do movimento de mudanças nas estruturas estatais determinadas pelas transformações na base de funcionamento dos sistemas capitalista.

É importante ter em conta que o Estado é uma instituição moderna que surge e se desenvolve na medida em que o sistema produtor de mercadorias evolui para estágios mais avançados. É um movimento, portanto, que parte das estruturas econômicas até as instituições e destas para a sociedade. Um movimento dialético determinante da continuidade do mecanismo sócio-metabólico do capital. (MÉSZÁROS, 2004). Como o capitalismo tem uma vocação para se expandir, quase que ilimitadamente, as pressões sobre suas instituições são cada vez mais complexas e intensas.

O que interessa, neste momento, é compreender essas relações orgânicas entre o capitalismo e suas instituições, especialmente, o Estado, e, ao mesmo tempo, a maneira pela qual essas relações mudaram, no Brasil, com a introdução mais sistemática das políticas neoliberais, na década de 1990, como exigência da integração do país à nova etapa de expansão do capitalismo mundial, iniciada no final da década de 1960.

Como será abordado adiante, a crise fiscal do Estado foi apontada por alguns autores, nas décadas de 1980 e 1990, como o verdadeiro problema da ineficiência estatal, da incapacidade de financiamento do setor público e, por conseqüência, da crise econômica experimentada pela América Latina, nos últimos decênios. Como de costume, os neoliberais têm dificuldade de interpretar as crises sistêmicas no capitalismo e a maneira pela qual elas influenciam no comportamento das estruturas estatais, porque, geralmente, tomam essas estruturas como algo circunstancial e externo à dinâmica capitalista. Trata-se da rejeição dos aspectos subjetivos e da valorização dos aspectos objetivos que envolvem as relações entre Estado e mercado, entre o público e o privado. Uma visão essencialmente binária de relações extremamente complexas que se construíram ao longo do processo histórico de desenvolvimento capitalista.

Essa perspectiva, ao privilegiar, apenas, essas dimensões, conclui que o mercado resume-se ao comportamento e às relações estabelecidas entre produtores e consumidores, bem como, por outro lado, interpretam o Estado como o sujeito político externo à sociedade e que tem por função buscar equilibrar as distorções provocadas pelas forças de mercado. Isto fica muito claro quando um dos mais

astutos construtores da ideologia da crise fiscal na América Latina admite que a Grande Depressão de 1930 foi uma crise que teve suas razões no mau funcionamento das leis de mercado, enquanto que a crise contemporânea do capitalismo tem na ineficiência estatal a sua razão de ser.54

Para se compreender a crise econômica que se instaurou na América Latina e se arrasta até os dias atuais, é preciso superar a falsa dicotomia Estado/mercado, tão difundida nos meios intelectuais e acadêmicos. No modo de produção capitalista, esta exterioridade não é possível55. Engels foi um dos autores que melhor compreendeu a relação dialética e orgânica entre o Estado e a sociedade, a partir do desenvolvimento das formas de propriedade no moderno sistema capitalista de produção.

O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é ‘a realidade da idéia moral’, nem ‘a imagem e realidade da razão’, como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas, para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortizar o choque e a mantê-la dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. (ENGELS, 1960, p. 160, grifos nossos).

Assim, também como Engels, Marx em Crítica ao programa de Gotha advertia sobre a natureza e caráter do Estado na sociedade burguesa.

[...] os diferentes Estados dos diferentes países civilizados, em que pese a confusa diversidade de suas formas, têm em comum o fato

54

Observe como Bresser-Pereira reduz a uma visão dicotômica, bem ao estilo da ortodoxia econômica, as razões das crises, nos dois períodos: “[...] enquanto a crise dos anos 30 foi uma crise keynesiana, definida por uma crônica insuficiência de demanda, a minha hipótese é que a crise dos anos 80 e 90 é uma crise do Estado” (BRESSER-PEREIRA, 1996a, p. 20).

55

Por exemplo, o professor da Universidade de Princeton, EUA, Robert Gilpin, transpõe para as relações internacionais esta exterioridade quando procura definir o objeto de estudo da economia política internacional: “É a existência paralela e a interação recíproca do Estado e do mercado que cria, no mundo moderno, a ‘economia política’; sem o Estado e o mercado essa disciplina não existiria”. E ainda: “nem o Estado e o mercado são causa primária; as relações causais entre eles são interativas, e na verdade cíclicas” (GILPIN, 2002, p. 25-36, grifo nosso).

Para Oliveira, por exemplo, “[...] considerar-se como um dado a existência de um Estado, quer seja inglês, francês ou brasileiro, pode representar uma abstração incômoda” (2004, p. 376).

de que todos eles repousam sobre as bases da moderna sociedade burguesa, ainda que em alguns lugares esta se ache mais desenvolvida do que em outros, no sentido capitalista. (MARX, 1977, p. 239).

Reforçando as bases do pensamento de Marx e Engels, Mészáros expõe, de maneira clara e concisa, a concepção materialista do Estado, buscando fazer a crítica à ideologia dominante que exalta o Estado como uma instituição superior, uma entidade quase misteriosa, mitológica, uma “encarnação do princípio da legitimidade”.

[O Estado] é apresentado como a encarnação do princípio da legitimidade, ao lado da pretensão de que esta legitimidade emana diretamente das interdeterminações dos interesses dos indivíduos ‘racionais’. A verdade prosaica de que o Estado na verdade não é a encarnação do ‘princípio da legitimidade’, mas das relações de poder prevalecentes, e que não é constituído a partir das decisões individuais soberanas, mas em resposta aos contínuos antagonismos de classe, permanece oculta sob o véu da impressionante fachada teórica da ideologia dominante. (MÉSZÁROS, 2004, p. 493, grifos do autor).

Assim como a relação historicamente primária entre o homem e a natureza é uma relação da natureza consigo mesma, a relação do capitalismo com o

Estado moderno é uma relação do capitalismo consigo mesmo56. O Estado é uma

parte específica, mas não menos importante, do modo de produção capitalista; logo, uma crise do modo de produção também pode significar uma crise do próprio Estado.

Se a sociedade capitalista promove, continuamente, o desenvolvimento dos mercados, é coerente admitir que o mercado é parte intrínseca do Estado. Este, por sua vez, está tão ligado àquele que sua natureza é defender as forças de mercado e construir as possibilidades de sua reprodução e a estrutura de classe em que estão calcadas. Assim, Bresser-Pereira não tem razão em diferenciar as crises econômicas de 1930 e a atual, tendo, a primeira, como causa o mau funcionamento

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Dentro da literatura marxista consultada, destacam-se as obras de Poulantzas (2000), Sweezy (1976), Miliband (1979) e Wright (1979). O livro de Farias (2000) é um interessante insight sobre a natureza do Estado capitalista, além de uma crítica à perspectiva regulacionista. Foi traduzido recentemente para o português um interessante texto sobre a teoria marxista do Estado de David Harvey (2006). Este texto faz parte de uma coletânea de outros trabalhos produzidos pelo autor entre 1975 e 2000.

dos mercados e a segunda sendo, exclusivamente, proporcionada por uma crise fiscal do Estado.

Não poderíamos supor as sociedades européias, entre os séculos XVI e XIX, por exemplo, sem as instituições que davam suporte à organização social e reproduzia as relações de poder, como a Igreja e o Estado absolutista. Assim, quando o sistema feudal veio abaixo, com a Revolução Burguesa, suas instituições sucumbiram como papéis ao vento.

Guardadas as devidas proporções, fica um pouco mais difícil compreender as mudanças econômicas na América Latina, no último quartil do século XX, sem se debruçar sobre os movimentos do capital, em escala internacional, e a constituição de novas relações de dependência no quadro da redefinição da divisão internacional do trabalho. Esta perspectiva pode nos aproximar de uma interpretação mais adequada dos imperativos às mudanças na ossatura do Estado, em países como o Brasil, escapando da visão simplista apresentada pela ortodoxia econômica. Além disto, é importante que se faça a crítica a esse campo do conhecimento para melhor compreender o sentido de como o Estado assume e tem cumprido seu desiderato histórico de integrar esses espaços às tendências e à dinâmica pós-moderna do capitalismo mundial.57