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5 IDEOLOGIA E CRISE FISCAL

5.1 SOBRE IDEOLOGIA

O filósofo húngaro István Mészáros, em seu grandioso livro O poder da

ideologia (2004), tem como eixo central a preocupação de situar a ideologia no seu

contexto histórico específico, combatendo os mitos da neutralidade ideológica e da pureza científica que vêm predominando no pensamento social, principalmente no século XX.

O materialismo dialético é a compreensão das contradições que se dão, no plano concreto das relações sociais de produção e de poder, no contexto da evolução do sistema capitalista de produção. Não é por acaso que Mészáros consegue, com densidade e muita força intelectual, transitar do concreto ao abstrato, do local ao global, do passado ao presente, com habilidade insofismável. O real é tomado como ponto de referência para a construção de categorias abstratas que possam explicar, com maior capacidade analítica, as condições concretas.

Neste sentido, Mészáros tece uma crítica abrangente às ciências sociais e a seus principais expoentes que se distanciam das condições concretas e tentam explicar e compreender os fenômenos de natureza social, do ponto de vista de uma

transcendentalidade formal. Também, destila críticas àqueles que buscam reforçar

as estruturas de pensamento em defesa da legitimação da estrutura sócio- metabólica capitalista. Não é por acaso que ele enfrenta, criticamente, alguns

importantes ícones do pensamento do século XX, tais como Weber, Adorno e Habermas, por exemplo.

Assim, é mais fácil compreender, com Mészáros, que a construção científica, em vários campos do conhecimento, desde a física às ciências sociais passando pela subjetividade, tudo isto é inerente ao processo de desenvolvimento das idéias. Por mais que as ciências sociais defendam uma neutralidade epistemológica em relação ao conjunto de valores e ideologias de uma dada época e de um sistema social e econômico, de qualquer maneira, o desenvolvimento científico expressa, de forma indireta ou direta, as diversas visões de mundo e interesses materiais. A “verdade é que em nossas sociedades tudo está ‘impregnado de ideologia’, quer a percebamos, quer não” (MÉSZÁROS, 2004, p. 57).82

O sistema ideológico é um dos pilares de sua sustentação da sociedade liberal-conservadora burguesa. A idéia de que não existem mais alternativas ao capitalismo e que a sociedade deve seguir seu trilho normal de obediência ao conjunto de leis burguesas, sem grandes rupturas, em um processo evolutivo que, inexoravelmente, sempre adia a esperança de uma vida melhor para todos, faz parte da construção ideológica permanente.

Nas sociedades capitalistas liberal-conservadoras do Ocidente, o discurso ideológico domina a tal ponto a determinação de todos os valores que muito freqüentemente não temos a mais leve suspeita de que fomos levados a aceitar, sem questionamento, um determinado conjunto de valores ao qual se poderia opor uma posição alternativa bem fundamentada, juntamente com seus comprometimentos mais ou menos implícitos. (MÉSZÁROS, 2004, p. 58).

Na ordem econômica global, depois da desintegração do mundo soviético, a carga ideológica neoliberal-conservadora se fez presente com muito mais intensidade e amplitude. Como Mészáros comenta acima, a sociedade mundial foi aceitando a idéia de que a alternativa capitalista ocidental tinha sido vitoriosa, e que aquelas sociedades que optassem por embarcar na história “final” teriam que absorver as idéias e valores que sopravam do mundo anglo-saxão, adotando um conjunto de reformas pró-mercado, liberalizando o comércio e deixando os mercados desregulados e privatizados.83

82

Cf. Löwy (1985, 2003).

83

Na nova linguagem mundial da globalização, temas antes vistos com certa preocupação e apreensão, pelos defensores da ordem burguesa, tais como imperialismo, exploração, dependência, entre outras categorias do pensamento crítico, perderam espaço e importância semântica, pois foram relegados àqueles estudiosos considerados, por ironia do destino, como “ideológicos”.

Bóron (2001) aponta para uma questão extremamente importante que merece atenção, neste contexto. Diz o autor que, na agenda pública e nos principais fóruns que discutem a economia internacional, o tema capitalismo saiu completamente da agenda, nas últimas duas décadas do século passado. O autor confirma, ainda, que um dos maiores triunfos do neoliberalismo foi apontar o capitalismo como um “fenômeno natural”, buscando cristalizar as tendências “inatas aquisitivas e possessivas da espécie humana”.

A história, portanto, perde sua centralidade explicativa, pois, quando o sistema de produção é perpetuado, torna-se a-histórico. Assim, o sistema produtor de mercadorias não é compreendido a partir de uma construção “histórica de classes e agentes sociais concretos movidos pelos seus interesses fundamentais” (BÓRON, 2001, p. 40-41). Pelo contrário, reforçam-se as relações de produção e os instrumentos de alienação, procurando naturalizar o capitalismo, tornando-o praticamente invisível ao homem comum e as suas conseqüências, algo discutível apenas do ponto de vista reformista.

Não é por acaso que Mészáros afirma que jamais foi tão necessário um exame crítico dos estratagemas da ideologia dominante. Mas, essa necessidade encontra obstáculos, porque existem dificuldades de se encontrar referências, dado que o sistema capitalista e seu metabolismo põem todas as estruturas burguesas em funcionamento no sentido da destruição do pensamento alternativo. As dificuldades são muito mais complexas hoje, pois:

[...] os antigos instrumentos para tratar algumas de nossas dificuldades – ainda que fossem limitados, mesmo no passado – estão hoje sistematicamente abalados e destruídos pela força inexorável do Estado, em nome do interesse na perpetuação do domínio do capital, com a ajuda da conformidade ideológica e política imposta. Os sinais dessa tendência para a garantia de uniformidade exigida pela necessidade do capital de impor o Estado de ideologia única são muito perigosos (MÉSZÁROS, 2004, p. 13).

Com base nessas colocações, podemos, resumidamente, compreender a ideologia como sendo um conjunto de idéias e representações, coerentes ou não, que buscam legitimar certos procedimentos e comportamentos sociais, políticos e econômicos, com o objetivo de alcançar determinadas posições de vantagem em detrimento de uma maioria de agentes, indivíduos etc., que se comportam acriticamente diante do plano das idéias e das relações de exploração.

Para Chauí (1981), a ideologia tem como função apagar as diferenças e servir como instrumento de persuasão dos indivíduos para que os mesmos aceitem sua condição social e, ao mesmo tempo, se sintam partícipes da experiência dos bens sucedidos econômica e socialmente, ou seja, que os indivíduos tenham identidade social. Esta identidade pode se expressar na defesa dos interesses nacionais, na religião, no futebol etc. Na tradição marxiana, portanto, a ideologia tem como função primordial reforçar as condições de dominação e obscurecer a natureza de classe do sistema.84

Se a ideologia é um instrumento de dominação, podemos deduzir, então, que o conceito de hegemonia, como Gramsci tão bem definiu, também inclui a força das idéias como um dos elos do exercício do poder, aliado à coerção ou à ameaça de uso da força física ou material. Então, uma classe social pode ser hegemônica porque manipula as idéias e os valores que influenciam e mantém sob domínio uma parte da sociedade, que é explorada nas relações de produção.85

Um corpo doutrinário e científico pode assumir uma posição hegemônica quando a sociedade o aceita como um princípio dado, ex-ante. Qualquer tentativa ou esforço de interpretação e explicação de algum fenômeno, com base em uma racionalidade lógica, partindo-se desse suposto conjunto doutrinário, estará fadado ao malogro porque, possivelmente, o alcance da compreensão do movimento dinâmico da sociedade, suas bases materiais em funcionamento, será muito menor.

É conhecido o valor que Marx atribui ao movimento real da sociedade, às relações sociais que os homens estabelecem entre si, enquanto classes sociais.

Marx e Engels destilam suas críticas aos jovens hegelianos86 por estes

84

“Nascida por causa da luta de classes e nascida da luta de classes, a ideologia é um corpo teórico (religioso, filosófico ou científico) que não pode pensar realmente a luta de classes que lhe deu origem” (CHAUÍ, 1981, p. 114).

85

Sobre Gramsci e o conceito de hegemonia, ver o excelente trabalho de Coutinho (2003).

86

O sistema hegeliano, principal base da filosofia alemã, compreendia que o determinante da vida dos homens e suas relações com a natureza e entre si, eram as idéias, os pensamentos e os conceitos produzidos pelos próprios homens. “O tipo de ideologia idealista censurado em A

desconsiderarem a atividade real, objetiva dos homens, como o verdadeiro edifício em que se erguem as estruturas da sociedade.87

Alguns dos principais filósofos iluministas buscaram interpretar o mundo no plano da abstração ou então sob a influência de uma carga ideológica inerente às

suas condições de classe social, a qual servia muito mais para obscurecer o

processo de dominação e exploração do que para desmistificar a crueldade da realidade, porque a maioria deles tinha suas raízes no mundo burguês. É neste sentido que se interpreta a visão de Marx e Engels sobre a ideologia, mais pelo lado pejorativo, negativo.88

A superação das dificuldades em compreender a práxis humana em uma sociedade estratificada em classes sociais foi, também, um dos objetivos importantes dos dois autores em A ideologia alemã e em Teses sobre Feuerbach. Então, retirar o véu que encobria a verdade e realizar a crítica do

transcendentalismo do pensamento que, de certa maneira, predominava na tradição

filosófica iluminista, foi uma das grandes contribuições da crítica à ideologia na tradição marxiana.89

Assim, tomando consciência de como o resultado de situações sociais é historicamente determinado, a ideologia – como um sistema de idéias, conceitos e representações – também é sujeita às determinações econômicas e políticas definidas na sociedade estratificada em classes sociais e em contradição contínua. Isto não significa, entretanto, que é apenas a classe dominante que constrói o conjunto de crenças e pensamento que constitui o sistema de poder e o perpetua. A ideologia alemã é vergastado por Marx e Engels precisamente por causa de sua impraticabilidade,

de seu distanciamento arrogante do mundo real” (EAGLETON, 1997, p. 53), de seu misticismo.

87

“A história é a verdadeira história natural do homem” (MARX, 2004, p. 183).

88

Em Marx, a “ideologia é um conceito pejorativo, um conceito crítico que implica ilusão ou se refere à consciência deformada da realidade que se dá através da ideologia dominante; as idéias das classes sociais dominantes são as ideologias dominantes na sociedade” (LÖWY, 1985, p.12). Cf. também Eagleton (1997, p. 40).

89

Vale, aqui, repetir a clássica passagem encontrada na A Ideologia Alemã: “Totalmente ao contrário do que ocorre na filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se ascende da terra ao céu. Ou, em outras palavras: não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens em carne e osso; parte-se de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida [...] não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX e ENGELS, 1996, p. 37). Para Mészáros, “a superioridade radical de Marx sobre todos os que o precederam é evidente na historicidade dialética coerente de sua teoria, em contraste com as debilidades de seus predecessores, que, em um ou outro momento, foram todos obrigados a abandonar o terreno

real da história em favor de alguma solução imaginária das contradições que possam ter

percebido, mas que não podiam dominar ideologicamente e intelectualmente” (MÉSZÁROS, 2006, p. 45, grifos nossos).

ideologia pode, também, servir como importante instrumento de persuasão por parte de outros grupos ou classes sociais que se mantém no poder sem, necessariamente, ter origem na base social.90

Por outro lado, como apontaram de maneira distinta Eagleton (1997, p. 50) e Löwy (1985), Lênin deu um novo significado à ideologia, superando, relativamente, a carga pejorativa que tinha em Marx e Engels a sua razão de ser. Para ele, não eram apenas as classes dominantes as responsáveis por esquemas ideológicos, pela construção de sistemas de idéias com base na realidade concreta.

Conforme Eagleton e Löwy, para o revolucionário russo, o termo ideologia foi

ampliado e passou a significar qualquer doutrina sobre a realidade social que tenha vínculo com uma posição de classe. Pode ser, portanto, também, um conjunto de idéias e crenças que são responsáveis pela união de indivíduos em classe, com o propósito específico de perseguir seus interesses e objetivos políticos particulares, independentemente das estruturas de poder.

É evidente que não se deve correr o risco de simplificar esta questão, mas as classes subordinadas também são capazes de influenciar na determinação do sistema de crenças. Isto amplia o escopo de análise sobre a ideologia e talvez seja nesse sentido que Mészáros (2004) define três posições distintas em que a ideologia pode ser compreendida para além de um sistema de poder, mas, também, como uma prática consciente de transformação das estruturas sociais.

Numa primeira perspectiva, a ideologia pode apoiar a ordem estabelecida, sustentando-se em argumentos teóricos a-críticos que exaltam a estrutura vigente do sistema dominante como “o horizonte absoluto, própria vida social”. Numa posição mais crítica, um conjunto de idéias pode revelar as imperfeições e anacronismo de determinado sistema social, suas contradições e como se formam as assimetrias de poder e riqueza dentro dos marcos de uma sociedade dividida em classes sociais. Mészáros sublinha que a própria crítica, também no campo progressista, pode estar viciada pelos valores e ética inerentes às classes sociais que dominam e mantém relações de subordinação e exploração.

90

“Mesmo as formas de consciência que têm raízes na experiência das classes oprimidas podem ser apropriadas por seus senhores. Quando Marx e Engels (1996) comentam (A ideologia alemã), que as idéias governantes de cada época são as idéias das classes dominantes, é provável que tivessem em mente aqui uma observação ‘genética’, significando que essas são as idéias

verdadeiramente produzidas pela classe dominante; mas é possível que sejam idéias que apenas

estejam em poder dos governantes, sem importar de onde provêm” (EAGLETON, 1997, p. 50, grifos do autor).

A terceira posição ideológica é aquela que se contrapõe radicalmente às duas primeiras, questionando a validade e as condições sociais que viabilizam, historicamente ou não, a sociedade capitalista. Ela é radical porque propõe uma práxis política como intervenção consciente, no sentido da superação de todas as formas de antagonismo de classe. (MÉSZÁROS, 2004, p. 67; cf. EAGLETON, 1997, p. 38-40).

Como se observou, a ideologia é parte constituinte do conjunto de instrumentos a serviço dos interesses de classes. O capitalismo, emvárias esferas da vida social, transforma o que puder em valor material; até a ciência não escapa à sua lógica de mercantilização. Também a “fabricação” de idéias é um dos elementos vitais da continuidade do sócio-metabolismo do capital.

Longe de um positivismo acrítico, os sistemas científicos nas ciências sociais podem ser contra-argumentados, desde que se compreenda, e isto é muito importante, seu contexto histórico e os interesses materiais que os envolvem. Em uma das frases que serve de epígrafe ao capítulo, Eagleton foi muito feliz em colocar que as “ideologias existem porque há coisas sobre as quais, a todo custo, não se deve pensar, muito menos falar” (1997, p. 62). Uma dessas ideologias é a crença na crise fiscal do Estado na América Latina.

Não menos feliz foi Santos em admitir que no caso da tese da crise fiscal trata-se da “sublimação moral e ideológica do capitalismo” contemporâneo (2004, p. 92). Uma ideologia – porque se espraiou como um conjunto de argumentos, relativamente sofisticados – que buscou desviar as atenções das verdadeiras funções que o Estado deveria assumir, “aqui e alhures” para “adequar [o Estado] às relações vigentes e tradicionais de produção” (MARX, 1982, p. 198) e às próprias práticas do capitalismo contemporâneo e suas relações de exploração na periferia do sistema.

A ideologia neoliberal da crise fiscal do Estado na América Latina, portanto, nada mais é do que um sistema de idéias conservadoras, mesmo que seus argumentos estejam baseados numa crítica ao desenvolvimento capitalista liderado pelo Estado, na região. Busca, ao mesmo tempo, resgatar, novamente, o papel do Estado sob novas configurações e papéis, nos marcos estabelecidos pelo sistema capitalista sob a supremacia do capital financeiro e das novas redes de interdependência determinadas pelas necessidades de expansão mundial das atividades comerciais, produtivas e, sobretudo, financeiras. O capital, mais do que

em qualquer outro momento da história, tem operado nas mais diversas dimensões, comprovando a tese de Marx do processo global de produção de capital.

Na próxima seção, o objetivo é resenhar, criticamente, uma literatura selecionada que trabalha com o tema da crise fiscal do Estado. Primeiramente, buscar-se-á compreender melhor como a ortodoxia econômica subsidiou as teses neoliberais sobre as necessidades de transformação dos aparelhos estatais, principalmente, na América Latina. Após isto, observaremos como, no campo heterodoxo, alguns autores não avançam muito sobre a discussão, apesar de suas importantes contribuições. Por fim, apresentaremos uma perspectiva que julgamos mais adequada para demonstrar a falácia dos argumentos neoliberais e qual o contexto em que a tese da crise fiscal se apresenta como uma necessidade intrínseca às forças impositivas do capital à uma ordem econômica mais liberal.