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4 ESTADO E NEOLIBERALISMO NO CAPITALISMO:

4.3 ESTADO E PENSAMENTO NEOLIBERAL

O Estado, portanto, tem ampliado suas funções no regime capitalista de produção, destacando-se, desta vez, pelo aumento descomunal, em todas as economias ocidentais, dos gastos e do endividamento públicos. O crescimento da dívida pública na maioria dos países ricos tornou-se uma das principais saídas para o profundo desgaste da economia capitalista durante as últimas décadas. Em última instância, o Estado reforça suas condições de garantidor dos horizontes da expansão dos lucros capitalistas.63

Apesar de toda a retórica neoliberal em defesa de políticas que alcancem o equilíbrio fiscal e a gestão restritiva da moeda, fundamentos também essenciais, segundo a ortodoxia econômica, para o pleno funcionamento das economias de mercado, as principais economias centrais não seguem os princípios da boa responsabilidade macroeconômica. Entre as décadas de 1980 e 1990, os gastos públicos dos Estados Unidos não pararam de crescer, mesmo no governo dos democratas, a partir de 199364. Por exemplo, entre 1982 e 1989, o déficit do Tesouro norte-americano cresceu de US$ 134 bilhões para US$ 237 bilhões, enquanto, na

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“[...] o crescimento geométrico da intervenção financeiro-monetária do Estado não consagra o seu confinamento num setor secundário, mas a sua presença em níveis historicamente inéditos da coerção estatal no principal mercado de capital, cujo desenvolvimento evidencia justamente o grau de parasitismo e, sobre essa base, de crise do sistema capitalista em seu conjunto” (COGGIOLA, 1996, p. 198).

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Buscaremos trabalhar mais esses aspectos no último capítulo deste trabalho.

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Estudo recente de Serrano e Braga (2006) desmistifica os argumentos de que no governo de Bill Clinton tenha ocorrido ajustamento fiscal e que, por isso, a economia tenha alcançado taxas de crescimento elevadas, com base no equilíbrio orçamentário e na formação de poupança pública. Além de não ter ocorrido isto, os autores colocam que o crescimento econômico verificado no período esteve determinado por uma política monetária expansionista.

década de 1970, não ultrapassava a casa dos US$ 50 bilhões, em média. O resultado desse desequilíbrio orçamentário, como não poderia ser diferente, foi o crescimento da dívida pública, que passou de 32,6% para 65,1% do PIB, no período do governo de Ronald Reagan (1981/1989). (SANTOS, 2006, p. 25).

Apesar dos Estados Unidos usufruírem uma posição privilegiada, por diversas razões que envolvem, entre outros aspectos, o monopólio de emissão do padrão internacional e a sua potencialidade bélica, estas cifras já demonstram por si só como o Estado se reconverteu em parte integrante e necessária do funcionamento da economia capitalista mundial e do processo de acumulação dinâmica das estruturas monopolistas65. O processo de reapropriação do Estado e de suas estruturas vitais66 sob novas determinações do capital, com hegemonia das altas finanças, se cristalizou durante a década de 1990.

No caso das economias periféricas, este processo acompanhou a série política de abertura econômica e desregulamentação dos mercados. Se este processo conseguiu promover, nesses países, desequilíbrios nas contas externas e expôs as contas públicas e o orçamento fiscal às necessidades de ajustamento externo, via endividamento público, então por que os neoliberais, como, por exemplo, no Brasil, partiram de um diagnóstico ex-ante de que a crise econômica tinha como eixo central os desequilíbrios das contas públicas e o alto grau de endividamento, se este problema só veio a se agravar, profundamente, ex-post, quando as próprias políticas neoliberais passaram a ser adotadas mais sistematicamente no país?

A abertura econômica, como um imperativo à internacionalização dos espaços nacionais às redes de acumulação de capital, provocou, na verdade, o endividamento do setor público e jogou, definitivamente, o Estado nos circuitos de valorização financeira do capital. Desta forma, a tese da crise fiscal do Estado e as idéias neoliberais, que se apresentaram como soluções mágicas para os problemas dos países da América Latina, são faces de uma mesma moeda: estão a serviço do

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“[...] um deslocamento significativo na estrutura produtiva e distributiva do capital em prol de estruturas e processos monopolistas – deslocamento que se torna visível tanto no controle cada vez mais centralizado das unidades particulares da produção social total quanto na operação da rede cada vez mais globalmente interligada dos mercados comercial, de trabalho e financeiro – traz consigo uma implicação prática de longo alcance, segundo a qual as instituições do Estado devem ser ajustadas em consonância com as mesmas linhas para poderem enfrentar as exigências das novas condições” (MÉSZÁROS, 2004, p. 496, grifos do autor).

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Principalmente os centros de decisão responsáveis, em última instância, pela gestão orçamentária e do dinheiro.

processo de transformação estrutural das econo mias da região com o propósito de integrá-las, novamente, aos circuitos de acumulação de capital, sob a hegemonia das altas finanças.

Para chegar a este ponto e discutir os meandros das novas funcionalidades do Estado na dinâmica do capital financeiro, analisou-se anteriormente a relação entre o processo de expansão do capitalismo no plano internacional e o renascimento da ideologia neoliberal. Procurou-se, ainda, destacar algumas características do processo de reprodução capitalista contemporâneo, apresentando alguns aspectos políticos e econômicos responsáveis por mudanças importantes ocorridas no mundo anglo-saxão. Mudanças estas que foram determinadas, essencialmente, pela necessidade que o modo de produção tem de enfrentar seus graves problemas de realização, os quais vinham se agravando desde a ruptura do sistema de Bretton Woods, entre 1970 e 1973.

A decisão de Nixon de tornar o dólar inconversível no ouro, em 1971, tornou-se o fato mais marcante do início de uma série de medidas que os EUA iriam adotar no sentido da desregulamentação e descompartimentalização dos mercados financeiros e da redefinição do papel do dólar na economia internacional (SERFATI, 2006). Essas medidas buscavam rebater a crise econômica norte-americana que se traduzia em queda da produtividade das principais atividades econômicas, provocando a perda da competitividade do país diante do capitalismo alemão e japonês e de outras economias ocidentais. Em verdade, conforme Harvey (2005), o capitalismo se defrontou, neste período, com uma crise de sobreacumulação, e isto quer dizer, com a saturação do processo de expansão das forças produtivas do imediato pós-Segunda Guerra.

Não foi por acaso que as taxas de lucros, tanto nos Estados Unidos como no conjunto de três países da Europa (Alema nha, Reino Unido e França), estavam despencando, desde o início da década de 1960 estendendo-se até meados da década de 1980, como já foi assinalado. Isto provocou, por um lado,

sobreinvestimentos e elevada liquidez internacional e, por outro lado, como

conseqüência disto, o declínio das taxas de crescimento da economia mundial e o crescimento do desemprego, no âmbito das economias ocidentais desenvolvidas.

A dinâmica do euromercado, que funcionava impulsionado pela elevação dos preços do petróleo, em 1973, contribuiu, juntamente com o aumento dos gastos públicos dos Estados Unidos, para a queda do valor da moeda de referência

internacional, o dólar. É neste contexto que a economia capitalista passa a conviver com um fenômeno inteiramente desconhecido na ciência econômica: a

estaginflação. Como Brunhoff (1998, p. 50) sublinhou, a inflação, como uma das

manifestações diretas da crise de acumulação, nos anos 1970, tornou-se intolerável para os interesses das altas finanças internacionais. As taxas de juros apresentaram-se negativas e os ganhos rentistas foram, de certa maneira, seriamente comprometidos.

A explicação para a queda do crescimento nas principais economias capitalistas, segundo a ortodoxia econômica, residia na irresponsabilidade expansionista das políticas ditas keynesianas, com forte presença intervencionista do Estado, causando o atrofiamento dos mercados e elevações dos índices de preços, principalmente, no conjunto das economias desenvolvidas. O crescimento dos gastos públicos, o peso da carga tributária cada vez mais crescente e a inflação, decorrente da gestão expansiva da moeda foram os ingredientes necessários para que as idéias neoliberais começassem a ganhar espaço, novamente, no debate acadêmico e político.67

Para as correntes ortodoxas do pensamento econômico, aqueles problemas estavam criando distorções nas forças de mercado e tornando o ambiente econômico instável para a expansão dos negócios privados. Não foi difícil acusar, nesse sentido, o Estado, de ser o principal vilão da crise do capitalismo. Também foi mais fácil, a partir de um diagnóstico pragmático e reducionista da crise, para as idéias neoliberais alienar as mentes dos homens políticos. Conforme Anderson (1995) relata, as idéias neoliberais e conservadoras passaram do quase obscurantismo, do pós-Segunda Guerra Mundial (quando debatidas na Sociedade de Mont-Pélerin, liderada por Friedrich von Hayek e Milton Friedman68) para os principais gabinetes decisórios dos governos ocidentais, entre as décadas de 1970 e 1980.

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Não é por acaso que o Prêmio Nobel de Economia de 1974 e o de 1976 tenham sido outorgados aos principais representantes do pensamento liberal e monetarista: Friedrich August von Hayek e Milton Friedman, respectivamente. O primeiro, por desenvolver estudos relacionando à moeda e às flutuações econômicas e à interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais, enquanto Friedman contribuiu com a análise do comportamento do consumo, o desenvolvimento da teoria e da história monetária e da complexidade das políticas de estabilização.

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Faziam parte, ainda, desta Sociedade, Ludwing von Mises, Maurice Allais, Walter Lippman, Salvador de Madariaga, Michael Polanyi, Karl Popper, Wiliam Rampard, Wilhelm Ropke e Lionel Robbins.

A crise do capitalismo fordista, assim como também ficou conhecido o sistema produtor de mercadorias depois da Segunda Guerra Mundial, não se manifestou sem conseqüências sociais. O próprio processo acelerado de acumulação de capital, durante quase trinta anos, provocou intensas reações das classes operárias e de outros segmentos sociais identificados com outras causas como os movimentos contra a discriminação racial, os movimentos de naturezas distintas como o feminismo, o movimento hippie, de contestação da guerra do Vietnã etc., nos Estados Unidos, por exemplo.69

Apesar do aumento dos níveis de bem-estar nas principais economias desenvolvidas industrializadas do Ocidente, ao final da década de 1960, os vários movimentos de contracultura eclodiram e, de qualquer maneira, foram também responsáveis pelo início de um conjunto de reformas mais sistêmicas no próprio modo de produção. (HARDT; NEGRI, 2004; HARVEY, 2005, p. 11-76).

As reformas conservadoras, que buscavam conter os ímpetos sociais e os grupos mais radicais, foram introduzidas durante a década de 1970, quando fizeram parte da agenda das estratégias centrais dos países do centro capitalista desenvolvido, notadamente dos Estados Unidos e da Inglaterra. Portanto, uma crise sistêmica do capital, com todas as suas conseqüências no campo político, social e econômico, provocou importantes transformações guiadas próprias classes dominantes no sentido de reformar radicalmente o sistema e promover a “ordem” e o “progresso”.

É claro que o conjunto dessas reformas não foi, automaticamente, adotado nos países capitalistas desenvolvidos e na periferia do sistema. Pode-se admitir que o movimento de expansão e proliferação das idéias neoliberais, principalmente entre os países centrais, foi, em última instância, resultado de decisões nacionais de Estado e que essas decisões se irradiaram mediante o grau de interdependência entre eles, dentro do grupo de poder, o grupo das sete maiores

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Moniz Bandeira (2005, p. 275 ss.) narra que, por volta do final da década de 1960, a situação política doméstica nos EUA se deteriorava acentuadamente. Desde 1964, explodiam movimentos de discriminação racial em Los Angeles, Chicago e em outras cidades norte-americanas. Em 1967, na cidade de Washington, milhares de pessoas marcharam diante do Pentágono protestando contra a guerra do Vietnã. De todos os lados, vários movimentos sociais e políticos ameaçavam os interesses do establishment americano. Em julho de 1967, foi criada, por força de lei, a National Advisory Commission on Civil Disorders para investigar as causas dos movimentos civis e a influência ou não de organizações ou indivíduos nos conflitos sociais. Ainda conforme Bandeira, cursos no âmbito da Academia de Política Militar da Geórgia, nas forças de segurança do Exército e nas polícias locais, foram montados para colaborar com a implementação de planos de contingência de conflitos em todo o país. (Cf., também, NAVARRO, 1997, pp. 134-137).

economias mundiais, o G-770. Essas decisões foram responsáveis por um movimento em rede, em decorrência do peso da economia norte-americana na

economia mundial71. De 1980 em diante, observar-se-á a supremacia do

pensamento neoliberal-conservador em matéria de estratégias econômicas e de controle social.