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Apesar da inegável divergência doutrinária sobre o tema, os Tratados da União Européia têm sido considerados, em seu conjunto, a sua Constituição.90 Deles constam o

enunciado dos objetivos fundamentais, a definição da estrutura institucional, as bases essenciais do direito econômico, financeiro e social das Comunidades, as disposições relativas à salvaguarda da ordem jurídica que os Tratados instituíram.91

Para Dagtoglou92

As características principais desta ordem jurídica nova são, designadamente: a) as instituições comunitárias específicas e independentes, que, mesmo sem uma competência legislativa geral, são dotadas pelos Tratados de poderes muito amplos, alargando continuamente a competência comunitária; b) os particulares enquanto sujeitos titulares de direitos ao lado dos Estados- membros; c) a aplicabilidade directa de certas regras de direito comunitário; d) o primado do direito comunitário sobre os direitos nacionais, incluindo o direito constitucional e mesmo a protecção constitucional dos direitos individuais; e) a criação, não somente de direitos e obrigações, mas também de processos obrigatoriamente prescritos para a verificação de violações e a aplicação de sanções, nomeadamente, a consagração da jurisdição obrigatória do Tribunal de Justiça, e do carácter obrigatório das suas decisões e f)

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Como o tribunal teve oportunidade de decidir, em seu acórdão de 30 de abril de 1974. E, ainda: os Atos de 30 de setembro de 1987, processo n.º 12/86, Col. 3720 e de 20 de setembro de 1990, processo n.º 192/89, Sevince, Col. p. 3461. Apud: CAMPOS, João Mota de. Direito Comunitário. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, v. II, 1997, p. 310-312.

90

Cf. o Parecer n.º 1/91, de 15 de dezembro de 1991, do TJCE, n.º 21.

91 CAMPOS, João Mota de. Direito Comunitário. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, v. II, 1997, p. 25.

92 DAGTOGLOU, Prodromos D. Apud BERNHARDT, Rudolf et al. Trinta anos de Direito Comunitário.

Luxemburgo: Serviço das publicações oficiais das Comunidades Européias, Coleção Perspectivas Européias, 1984, p. 42-43

a responsabilidade da Comunidade por infracções ao direito comunitário que causem um prejuízo.

Não são recentes93 as decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão,

conferindo aos Tratados da União Européia, de certa forma, status de Constituição da Comunidade, e, nessa condição, base para toda a ordem jurídica comunitária.94

Dagtoglou95 já apontava como elemento característico da Comunidade a

produção de uma ordem jurídica nova que “resulta da limitação pelos Estados-membros dos seus direitos soberanos.” Para ele, os Tratados, bem como os princípios gerais de Direito Comunitário, evoluíam rumo a uma espécie de constituição que incluía “igualmente a salvaguarda dos direitos individuais.” No mesmo sentido, é o pensamento de Franca Filho.96

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Esse reconhecimento foi feito pelo Tribunal Constitucional alemão, em decisão de 18 de outubro de 1967. 94 CAMPOS, João Mota de. Direito Comunitário. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, v. II, 1997, p. 22.

95 DAGTOGLOU, Prodromos D. Apud BERNHARDT, Rudolf et al. Trinta anos de Direito Comunitário.

Luxemburgo: Serviço das publicações oficiais das Comunidades Européias, Coleção Perspectivas Européias, 1984, p. 42.

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FRANCA FILHO, Marcílio Toscano. As diretivas da Comunidade Européia: elementos para uma teoria geral.

Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n.º 37, p. 7-26, out./dez. 2001,

4. UNIÃO EUROPÉIA E PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS 4.1 Da Constituição e do Direito Constitucional: Conceito e Histórico

Historicamente, a primeira Constituição escrita de que se tem notícia foi a Declaração de Direitos do Estado de Virgínia, de 1776. Em seguida, vieram as Constituições de outros Estados americanos; em 1781, a Constituição da Confederação dos Estados Americanos e, em 1787, a Constituição dos Estados Unidos da América. Em 1789, nasce a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão e, em 1791, a primeira Constituição francesa, reforçando, assim, os contornos do Estado Constitucional.97

A Constituição não é uma ordem sócio-territorial, nem uma unidade sistemática acabada, seja do ponto de vista lógico sistemático ou do hierárquico de valores. Os elementos que a integram interagem entre si, e somente sua total harmonia é que se aproxima da real vontade popular. A unidade é, assim, imprescindível à compreensão e interpretação da Constituição, cabendo ao Direito Constitucional ordenar esse conjunto, visando superar os conflitos, em vez de demarcá-los ou excluí-los.98

Para Canotilho,99 Constituição “é uma ordenação sistemática e racional da

comunidade política, plasmada num documento escrito, mediante o qual se garantem os direitos fundamentais e se organiza, de acordo com o princípio da divisão de poderes, o poder político”.

Rawls100 entende “que sob um ponto de vista ideal, uma constituição justa será

um processo justo disposto de forma a assegurar um resultado justo.” E conclui: “Só tendo como background,101 uma estrutura social básica justa que inclua uma constituição

pública justa e uma justa configuração das instituições econômicas e sociais, pode dizer-se que existe o processo justo exigido.”

Nas últimas décadas, a idéia de Constituição sofreu uma profunda alteração: ela deixou de ser considerada o centro de um conjunto ativo e finalístico, para ser vista como

97 SILVA, Maria Manuela Magalhães e ALVES, Dora Resende. Noções de Direito Constitucional e Ciência Política, Lisboa: Rei dos Livros, 2000, p. 14.

98

KRÜGER, Hild. Verfassungswandlung und Verfassungsgerichtsbarkeit. Apud: CANOTILHO, José Joaquim Gomes.

Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Almedina, 1994, p. 109-113.

99

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 12. 100 RAWLS, John. A theory of justice. New York: London, 1973, p. 87.

reflexiva e autolimitada. Na linha de pensamento dos juristas pós-modernos, Teubner, citado por Canotilho,102 fala da Constituição como um estatuto que proporciona a

multiplicidade de opções políticas e uma concomitante compatibilização com as respectivas extensões e resultados.

De acordo com Moraes,103 Constituição, no sentido material, consiste no

conjunto de regras materialmente constitucionais, independente de essas estarem ou não codificadas em um único documento. Já Constituição formal é aquela que possui uma forma escrita, de documento solene, a ser estabelecida pelo poder constituinte originário.

Bonavides,104 ao conceituar Constituição em sentido material, refere-se a ela como

o conjunto de normas que definem a organização e a competência do poder, da autoridade e dos direitos humanos em geral. Assim, tem como conteúdo material a composição e o funcionamento da ordem pública.

Partindo do sentido material, pode-se afirmar que não existe Estado sem constituição. Ainda sob esse prisma, conclui-se que qualquer estrutura social, por mais primitiva que seja, possui uma constituição.

Modernamente, a Constituição deve ser compreendida em uma perspectiva diferente dos sentimentos empregados no passado. Ao contrário do que pensa Burke, não se pode observar a Constituição de forma religiosa e entusiástica para temperar a adoração fanática e renovar a barbárie na forma de um reino de terror. Também não se pode adotá-la com a fervente complacência defendida por Hallam, quando as reformas estrangeiras de liberdade individuais terminaram em ruínas. Nos dias atuais, deve-se considerar que o Direito Constitucional é uma performance de duas partes – ambas críticas e elogiáveis –, com o objetivo de não atacar ou defender as Constituições, mas, do contrário, explicar, de forma simples, as suas normas.105

Jacques106 ensina que o Direito Constitucional “é o ramo do Direito Público que

estuda os princípios e normas estruturadoras do Estado e garantidoras dos direitos e

101

A palavra background é empregada no texto no sentido de fonte, base ou experiência de fundo. 102

TEUBNER, G. Apud CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Almedina, 1994, p. 9-25.

103 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 35 104

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 63. 105

DICEY, A. V. Introduction to the study of the law of the Constitution. Indianapolis: Liberty Classics, 1982, p. 126-127. 106

liberdades individuais.” Enquanto isso, Silva107 refere-se ao Direito Constitucional como

ramo do Direito Público que sistematiza princípios e normas fundamentais do Estado e interpreta-os, concluindo: “o Direito Constitucional é a ciência positiva das Constituições.” Para esse autor, Direito Constitucional é o ramo do Direito Público voltado, sobretudo, para o estudo da Constituição. E Constituição é o conjunto de normas jurídicas que definem a estrutura, fins e funções do Estado, bem como a organização, titularidade, exercício e controle do poder político.

Segundo Miranda,108o Direito Constitucional é uma parte da ordem jurídica que

disciplina o Estado como comunidade e poder. É o conjunto de normas (disposições e princípios) que retrata o contexto jurídico correspondente à comunidade política como um todo, pondo os “indivíduos e os grupos uns em face dos outros e frente ao Estado- poder e que, ao mesmo tempo, define a titularidade do poder, os modos de formação e manifestação da vontade política, os órgãos de que esta carece e os actos em que se concretiza”.

A base do Direito Constitucional moderno é a sujeição do Estado ao Direito, especialmente, a seu próprio Direito positivo.109 É o direito dos cidadãos frente ao poder

do Estado. Tomando como parâmetro o modelo da Constituição portuguesa de 1976, o Constituinte brasileiro de 1988 procurou criar, para o País, uma constituição dirigente,110

com a finalidade de não só organizar o poder, mas também inserir um bloco programático-dirigente. Isso estabeleceria uma direção política permanente à atividade estatal, por meio de atuação vinculada e passível de controle judicial. Uma das

107 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo, 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 36. 108

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Coimbra, v. 1, 1997, p. 13. 109 Idem, ibidem.

110

Em sua tese de doutoramento, Canotilho aborda o problema das relações entre a Constituição e a lei. O núcleo central de seu trabalho procura resposta para a seguinte indagação: “O que deve (e pode) uma Constituição ordenar aos órgãos legiferantes e o que deve (como e quando deve) fazer o legislador para cumprir, de forma regular, adequada e oportuna, as imposições constitucionais?” Em resposta, ele sustenta que a Constituição dirigente procura a mudança social através do Direito, tendo como pressuposto uma filosofia de ação

(accionalismo e activismo) incompatível com qualquer teoria positivista (jurídica, sociológica ou científica). Esse

ativismo constitucional pode ser encontrado tanto num simples modelo de mudança social por meio do Direito, como num modelo de praxis revolucionária. Canotilho também propõe que a prática de uma Constituição dirigente, democraticamente fixada e comprometidamente aceita, deve representar um projeto comum de direção justa. Ele conclui afirmando que o ponto central de uma Constituição dirigente reside na prática e na estratégia dos critérios que foram institucionalizados constitucionalmente como justos e comum a todos. Em resumo, a diferença fundamental entre Constituição-garantia e Constituição-dirigente é o fato de a segunda, além de englobar os objetivos da primeira, vincular a atividade do estatal a critérios jurídicos — constitucionais de justiça e bem comum. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Almedina, 1994, p. 22 e 488).

conseqüências da constituição dirigente é a multiplicação de programas visando à transformação política, econômica e social e à previsão de meios judiciais de proteção ao cidadão frente a essas mudanças.111