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necessariamente “apagar o brilho do maracatu”, e sim reconhecer seu potencial agregador

enquanto bem tombado.

Independente das motivações que perpassaram essa modificação, é importante atentarmos para a relação que as culturas populares possuem, e como estas se relacionam na forma de patrimônio imaterial. O destaque dado a partir da patrimonialização, que perpassa a seletividade realizada para eleger a manifestação que será salvaguardada a partir da institucionalização, vem acompanhado de um reconhecimento não apenas da população, dos organizadores e dos brincantes, mas também dos outros grupos que integram a cultura popular. Portanto, a interação das manifestações, bem como o prestígio e reconhecimento dado a mesma, colabora no seu fortalecimento.

No ano de 2016, em decorrência da alteração e consequente adiantamento da data para o dia anterior, foi possível perceber a interação dos trabalhadores com o cortejo realizado, pois a grande maioria dos estabelecimentos estavam abertos. Assim, mesclavam-se aplausos, reverências à rainha,

selfies

, fotografias e filmagens. À medida que os brincantes avançavam nas vias com suas fantasias e estandartes, tanto trabalhadores como consumidores paralisavam as atividades momentaneamente e acompanhavam a passagem do maracatu com bastante empolgação (ver figura 13).

Um aspecto interessante para percebermos é como as pessoas se relacionam com a sonoridade do batuque. Tanto na Rua Pedro Pereira como na Rua Floriano Peixoto, existem um número considerável de óticas, e algumas delas possuem a administração ligada a igrejas evangélicas. Assim, as caixas de som utilizadas para divulgação de produtos e promoções passaram a entoar, em volumes estrondosos, louvores gospel variados. Todas as óticas estavam com suas caixas tocando ao mesmo tempo, na tentativa de abafar o som do maracatu que estava

passando em cortejo. Além disso, nesses estabelecimentos, podiam-se observar poucas pessoas que observavam na porta, como ocorria nas demais.

Figura 13

Trabalhadores e consumidores assistindo ao cortejo.

Fonte: Acervo do autor, 2016.

O fato observado fortalece tanto o discurso como a representação que pode ser observada em notícias e relatos da ligação do maracatu cearense com as religiões de matriz africana, bem como o preconceito existente, que associa tais manifestações a práticas condenáveis. Apesar do maracatu cearense não ter ligações diretas com os rituais religiosos, e sim elementos que pertencem a estes, o preconceito passa a integrar a representação que algumas pessoas têm da manifestação por conta dos elementos simbólicos constituintes dos grupos.

Podemos perceber que, apesar da data ter uma representação institucional que demarca o pioneirismo do Estado do Ceará no processo abolicionista

fato questionado por muitos pesquisadores

, existem diferentes representações atribuídas a ela. O maracatu, que se associou a data com a comemoração do maracatu, apesar de considerar a importância da comemoração, reconhece que existe um enfraquecimento quanto ao evento devido a não visibilidade. Os afoxés, que apesar de não estarem incluídos na data festiva dos maracatus, sentem-se inseridos pelo contexto que é proporcionado pela luta negra, pela libertação e pelo papel da religião que faz parte da cultura negra carregada pelos escravos. Dessa forma, diferentes representações vão sendo formadas, mas um mesmo elemento é presente em todas elas: a invisibilidade. Sobre isso, o brincante O. D. A. F. afirma que:

Também foi uma conquista essa data do 25 de março, que hoje ela faz parte do calendário de fortaleza. 25 de março é feriado, onde também comemora a libertação dos escravos no ceará, duas datas. Foi no governo do Lucio Alcântar a que ele deu esse feriado para o dia do maracatu, aí juntou o dia do maracatu com a abolição dos escravos no ceará entendeu? Só que é uma data que não tem divulgação, as pessoas não sabem nem porque é feriado no dia 25 de março, a gente se apresenta para nós mesmos né? [...] lá é feita a coroação de todas as rainhas, só que não tem público, não tem divulgação, é nós para nós mesmos, mas foi uma conquista né?37

No mesmo sentido, o brincante S. B. J. F. afirma que:

Porque aquele [desfile] que faz ali na pra ça do ferreira, não tem a mínima condição. Quem é que vai ver aquilo? Só quem já ta lá mesmo que não tem como ir pra outro canto. É da comunidade, trabalha no maracatu. Você faz uma festa pra você e você mesmo, não tem sentido. Ta com mais de 30 anos que a contece, esse movimento de fazer as coisas na cidade.38

Apesar de estar evidenciando apenas os dois relatos acima, a frase

“nós nos

apresentamos para nós mesmos”

é bastante comum de ouvir em todos os grupos que foram visitados. É evidente que existe uma relevância cultural, patrimonial, e inclusive de resistência quanto ao acontecimento da comemoração, que possui múltiplos sentidos e representações por parte dos grupos. Mas também é significativa a necessidade de existir mecanismos que possam trazer maior visibilidade, contextualização e medidas que possam trazer uma agregação de valor por parte da própria cidade para com os grupos, visto que se tornaram patrimônio imaterial. Em sua fala, o brincante S. B. J. F enfatiza também que:

Não adianta você brigar por uma data que essa data ela não é trabalhada. Não é só colocar o maracatu na rua não, é para ter todo um suporte com relação a isso. Pedagógico, educacional, social, econômico e midiático. Não é para ser como tão fazendo. Da forma que está tão fazendo só mais um, mas um evento qualquer, para da satisfação ao gestor, ao prefeito, porque é uma lei aprovada né? Tem uma aprovação na câmara municipal, e eles tem que dar uma satisfação [...39] .

Mas uma vez a necessidade de uma contextualização midiática, social e educacional é chamada a atenção, para que haja um maior entendimento da manifestação enquanto bem

patrimonial, pois “

as manifestações devem ser devidamente contextualizadas, reconhecendo-se o papel que desempenham num sistema social mais amplo que ultrapassa largamente as