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A negligência e a recuperação da dimensão afetiva nas relações pessoa-ambiente

4. Afetividade e as relações pessoa-ambiente

4.1. A negligência e a recuperação da dimensão afetiva nas relações pessoa-ambiente

A temática da afetividade parece ter ganhado mais atenção nos últimos tempos por parte das ciências e, assim, da psicologia ambiental. Nessa disciplina, a presença de enfoques cognitivistas e comportamentalistas foi dominante ao longo da década de 1970 e as relações afetivas entre pessoas e seus ambientes só ganham força a partir da década de 1980, principalmente com o enfoque fenomenológico (Giuliani & Feldman, 1993).

Há diversas dificuldades no tocante à questão afetiva nesse campo de saber. Por se tratarem de conceitos oriundos da psicologia em sua maioria, além de certa diversidade de possíveis entendimentos a partir da teoria de origem, preservam características de tradições que não situavam o espaço físico como dimensão presente na afetividade humana. Ou, quando o fizeram, o ambiente esteve sempre em segundo plano em relação às demais dimensões dos construtos psicológicos. Ademais, as próprias teorias psicológicas que tentaram abarcar os afetos possuem especificidades na concepção de sujeito e da relação deste com o mundo (seja físico ou social) que acabam sendo pouco problematizadas quando incorporadas à temática das interações humano-ambientais.

É possível que uma das principais barreiras ao desenvolvimento da temática afetiva não seja privilégio da psicologia ambiental, mas da própria tradição de pensamento que se desenvolveu no ocidente. Explico-me: obviamente, comparada às demais ciências, inclusive às humanas, a psicologia teve uma grande disposição para esse tema, uma vez que busca as dimensões da subjetividade e do comportamento humanos, no entanto, ancorada na tradição cartesiana. A relação mente-corpo pensada de forma dualista, tal qual entroniza essa tradição, tem sido combatida em diversas abordagens, mas algumas de suas marcas teimam em permanecer. Dentre elas, o lugar dos afetos na vida e nas ciências. A visão hierárquica da relação corpo-mente consegue permanecer indelével do conjunto cultural ocidental, por mais que já se tenha fortalecido o entendimento da relação simbiótica dessas dimensões.

O grande problema de tal epistemologia é que se trata de uma das sustentações ideológicas de sociedades direcionadas ao domínio do corpo, ainda que esse domínio se dê de forma diferente e com determinações próprias em cada formação social. E pensar afetos é pensar o corpo.

A relativa autonomia da alma (ou o cogito) perdura em boa parte das tradições filosóficas subjacentes às teorias psicológicas. O que há de comum nessas tradições é justamente a relação hierárquica que coloca o corpo como o lugar em que se dão as relações com o mundo empírico e a alma/mente, relativamente autônoma, como aquela que consegue pensar e entender o mundo. Mais do que isso, no dualismo do cartesianismo, as paixões - aquilo que afeta a alma - se fundam no conflito entre ela e o corpo (Chauí, 2011). O resultado disso é a sobrelevação da mente que, dotada de vontade, poderia redirecionar o curso do que lhe acontece. Tem-se, então, o fundamento filosófico central da racionalidade e da moral modernas, qual seja, a razão entificada como timoneira da vida boa e plena, dissociada do mundo e do corpo que lhe determinam. O afeto é o pathos e foi, na tradição apontada, sempre que possível rechaçado. A afetividade, sob essa lógica, “quando não é desconsiderada, é olhada negativamente como obscurecedora, fonte de desordem, empecilho para a aprendizagem, fenômeno incontrolável e depreciado do ponto de vista moral” (Sawaia, 2001b, p. 98).

Isso não significa dizer que não se tenha dado lugar ao tema, mas que a base cultural sobre a qual se assentou a produção científica sobre os afetos não é diferente da tradição sacramentada por Descartes. Isso fica claro no desenvolvimento de tradições da psicologia que visaram sempre a descobrir as melhores formas de domínio do que pode o corpo e do que afeta a alma – toda uma pedagogia e uma psicopatologia têm seu fundamento no caldo cultural cartesiano. São mais que perspectivas, são conjuntos de práticas sociais ancoradas nos vícios clássicos presentes na análise psicossocial da afetividade. Trata-se, enfim, de “concebê-

la negativamente, como antagônica à razão e à ordem, ou de considerá-la um fenômeno contingente, produto da linguagem ou da cultura, ou ao contrário, um fenômeno biológico, uma substância dura que se manifesta ao ser provocado por estímulos exteriores” (Sawaia, 2001b, p. 100).

Na psicologia ambiental houve uma priorização da dimensão cognitiva até a década de 1970 e negligência sobre o impacto das emoções/afetos sobre o comportamento humano (Giuliani & Feldman, 1993; Kals & Maes, 2002). Apenas nos anos 1980 os psicólogos cognitivos “redescobriram” o afeto, “apesar de seu interesse ser principalmente circunscrito às emoções (‘hot’ emotions)” (Giuliani, 2003, p. 139). Nessa forma de abordar o tema, via de regra, sentimentos e emoções acabam por ser considerados como aspectos distintos da afetividade humana, com os sentimentos sendo considerados estruturas mais subjetivas e interiorizadas e as emoções como efeitos específicos e intensos da ação de algum estímulo.

Com algumas exceções, o tratamento dado à afetividade nas relações pessoa-ambiente está circunscrita a três tipos de abordagens: aqueles trabalhos para os quais a afetividade não é considerada como prioritária, ou mesmo ignorada; aqueles que consideram afetos parte importante das relações pessoa-ambiente, e os tomam como construtos separado das cognições, ainda que com formas de interação entre ambas as categorias e; os que consideram afetos importantes nas relações pessoa-ambiente e que não há cisão entre cognição e afeto, como as abordagens fenomenológicas.

Essas diferenças se fundam nas concepções de sujeito e da relação desses com a realidade. Ancoradas no cognitivismo dominante na psicologia e na psicologia ambiental dos anos 1970, a maioria dessas concepções possui em comum o olhar individualista, centrado em processos psicológicos desarticulados do contexto em que ocorrem. Quando relacionadas ao ambiente, a tendência é uma abordagem interacionista, que percebe pessoa e entorno como unidades separadas com interações entre elas, busca relações de causa e efeito entre ambos,

em que o tempo e a mudança não são intrínsecos ao fenômeno (Valera, 1996). As consequências das relações estariam, então, nas características mesmas dos objetos.

A questão essencial apontada pelos trabalhos sobre as chamadas emoções ambientais (e.g. conectividade com a natureza) é a de que as diversas emoções presentes na vida dos indivíduos possuem um impacto forte, da mesma maneira que as cognições, que podem explicar as diferenças no que diz respeito aos comportamentos relativos ao ambiente, sustentáveis ou não (Hinds & Sparks, 2007; Kals & Maes, 2002, Kals, Schumacher, & Montada, 1999).

Em alguns casos pensa-se uma conexão emocional inata com a natureza, mas, fragilizada pela modernidade (Wilson, 1993). As correntes que pensam a afetividade nesses termos de resgate de um mundo prenhe de sensações autênticas que se ruiu para dar lugar a um mundo racionalista e frio, em sua maioria, recebem influência, direta ou indireta, do pensamento sociológico de Max Weber (1982) e sua tese do Desencantamento do Mundo. O problema de tais concepções reside em ignorar as determinações concretas das relações histórico-sociais, adotando um olhar idealista sobre a realidade e sobre os próprios valores. Se é verdade que há um distanciamento de valores positivos em relação à natureza na constituição da modernidade, isso não significa que seu oposto seja uma conexão afetiva positiva intrínseca. Essa relação sempre se dá de acordo com as formas históricas de organização e reprodução social. O que se tem na incorporação do afetivo aos modelos explicativos do comportamento, além da aposta ética como resposta à questão ambiental, são abordagens psicologistas dos fenômenos afetivos, que acabam tratados como entidades psíquicas deslocadas de qualquer contexto social e histórico.

Além dos estudos sobre emoções direcionadas aos ambientes, outro tipo de abordagem da questão afetiva nas relações pessoa-ambiente se dá em torno da vinculação entre indivíduos e seus contextos. São várias as perspectivas que abordam esse tema e numa grande

variedade conceitual, que apresenta dificuldade de ser resolvida no campo empírico. Conceitos como Topophilia, rootedeness, belongingness, insideness, embeddedness, affiliation, appropriation, commitment, investment, place dependence, place identity, urban

identity, place attachment, sense of place, sense of community, community attachment etc,

buscam qualificar formas de relação que indiquem um sentimento mais intenso (como a conexão emocional com a natureza, citada mais acima) e prenhe de significados pessoais ou de grupo com relação a lugares variados.

Essas propostas conceituais possuem em comum o fato de trazerem o ambiente físico e suas características como parte dos laços formados ao longo da vida humana, porém diferindo em relação ao conteúdo desses laços - afetivo, cognitivo e/ou simbólico -, a valência do laço - positivo ou negativo -, e a especificidade do laço - se caracterizam um afeto específico ou um sistema amplo de afetos relacionados aos lugares (Giulliani & Feldman, 1992).

Dois dos conceitos mais tradicionais para lidar com tais vínculos são o de apego ao lugar (place attachment) e identidade de lugar (plce identity). Williams (2013) sugeriu duas formas mais gerais sob as quais o conceito de apego ao lugar vem sendo tratado:

uma se refere a um construto operacional designado a medir a intensidade emocional ou força do apego ao lugar descrito como um locus de apego. A outra se refere a processos psicológicos mais amplos de formação de vínculo e produção de significado (lugar descrito como um centro de significado) (Williams, 2013, p.91).

Há, nessa conceituação, dois polos conceituais que podemos opor em termos de fundamentos ontoepistemológicos. No primeiro caso, “lugar como locus de apego”, o vínculo é um dado que pode ser identificado, medido, articulado a outros construtos e variáveis de forma a desenvolver modelos explicativos. Em outras palavras, calca-se numa concepção positivista da afetividade. No segundo caso, “lugar como um centro de significados”, em que

pese um leque de perspectivas possíveis, a orientação é de um paradigma interpretativo, que pode ser mais ou menos relativista. Nesse sentido, busca-se entender o domínio dos significados guiando a ação humana.

As características dos estudos sob o primeiro paradigma (que incluem os estudos sobre emoções mencionados no início deste tópico) são o caráter experimental (ou de campo com controle rígido de variáveis), empirismo (o dado fala por si mesmo), a busca pela representatividade da amostra e generalização dos resultados, criando modelos explicativos universais ou parcialmente universais para fenômenos com intuito de predição, além da consideração do caráter objetivo e neutro da investigação. No tema da afetividade e dos vínculos entre pessoas e ambientes, isso se traduz na busca por bons preditores dos fenômenos afetivos ou os fenômenos afetivos como preditores de outros fenômenos em temos de variáveis, dimensões ou fatores (Hernández, Hidalgo & Salazar-Laplace, 2007; Hidalgo & Hernández, 2001; Kyle, Grafe, Menning, & Bacon, 2004; Lewicka, 2008; 2010; Williams & Vaske, 2003). Há ainda estudos orientados pelo mesmo paradigma ontoepistemológico que identificam variadas formas de apego (Lewicka, 2011), ou visam à elaboração de modelos explicativos, como o modelo tripartite de Scannel e Gifford (2010), ou o modelo dinâmico de Devine-Wright (2013).

Um elemento importante a ser destacado desses estudos e modelos desenvolvidos é o foco no debate metodológico. Nesse sentido, o método ganha uma responsabilidade profética de revelar a verdade sobre o fenômeno, donde as diferentes concepções sobre que construto é dimensão do qual outro. Esse debate se desprende de seus pressupostos ontoepistemológicos e, recorrentemente, é reduzido à oposição qualitativo-quantitativo, quando o que poderia/deveria estar em jogo é a própria natureza do fenômeno e da produção de conhecimento. No paradigma discutido no momento, se traduz a evidência empírica imediata como a natureza mesma ou probabilística do fenômeno. Assim, afetividade, aqui, é a coleção

de sentimentos e emoções mensuráveis e identificáveis a partir de relações entre variáveis, sejam físicas, sociais, ou individuais.

Se o primeiro paradigma é predominante na área, o segundo paradigma sugerido acima vem crescendo na direção dos estudos discursivos (Di Masso, 2012; Di Masso, Dixon, & Durrheim, 2013; Di Masso, Dixon, & Pol, 2011; Dixon & Durrheim, 2000; Dixon, Levine & McAuley, 2006). As investigações sob o domínio interpretativo criticam o tratamento dado ao apego ao lugar na maioria das pesquisas que o tomam como um fenômeno intrapsíquico, “algo que reflete pensamentos e sentimentos ocorrendo dentro da mente do indivíduo como resultado de suas experiências pessoais com ambientes físicos particulares” (Di Masso, Dixon & Durrhein, 2013, p. 81), não entendendo esses afetos como práticas sociais, formulação cotidiana dos significados nas interações pessoa-ambiente. Ou seja, sob um ponto de vista discursivo, o apego ao lugar precisa ser apreendido nas práticas discursivas que, a sua vez, interacionalmente constroem realidade. Assim, os sentimentos em relação aos lugares podem ser entendidos como empreendimentos discursivos que são atualizados nas práticas cotidianas que reproduzem ou contestam o ordenamento socioespacial (Di Masso, Dixon, & Durrheim, 2013).

Uma tradição nos estudos dos vínculos entre pessoas e ambientes que ainda subsidia muitos estudos na área é aquela calcada na fenomenologia (Relph, 1976; Seamon, 1984; Tuan, 1983). Essa concepção bebe no caldo conceitual de Heidegger (1962), que considera os sujeitos a partir de uma “inescapável imersão no mundo”. Assim, o sentido se vincula à experiência vivencial nos lugares e “laços emocionais com o mundo podem estar relacionados ao tipo de entendimento que uma pessoa ganha daquele mundo ou com o modo de encontro da pessoa com aquele mundo” (Seamon, 1984, p. 757). Sense of place (Hummon, 1992; Jorgensen & Stedman, 2001) é um dos conceitos que busca sugerir de forma mais ampla a experiência vital entre indivíduos e ambientes. Dando centralidade à experiência, além do

leque de possibilidades de experiências afetivas, a perspectiva fenomenológica abre outro para os espaços físicos nos quais tais experiências se desenvolvem (Manzo, 2003; 2005).

Apesar de dar um sentido bastante amplo para os diversos sentimentos que podemos desenvolver nos espaços físicos, a vertente fenomenológica tem um foco experiencial que não permite um aprofundamento no entendimento da produção histórico-social dos lugares e da relação com os mesmos, ainda que não a ignore. Além disso, o enfoque individualista não favorece o reconhecimento de relações sociais diferentes e as próprias contradições internas às sociedades e experiências circunscritas contextualmente em termos de classe, organização geopolítica etc. Os conflitos étnicos, disputas de territórios nas cidades e em seus bairros, a divisão social do trabalho expressa urbanamente, os espaços de circulação de diferentes identidades sociais, e a própria predisposição a uma vinculação entre pessoas e determinados ambientes se dão num contexto cultural amplo, em que economia, política, costumes e fluxos sociais concorrem na construção de determinados sentidos que, em larga medida, determinam os usos dos espaços. Não é em qualquer lugar, nem a qualquer pessoa/grupo e, menos ainda de qualquer maneira que acontecem tais atribuições de sentimentos.

Além da vinculação afetiva entre pessoas e ambientes, traduzida geralmente pelo construto do apego ao lugar, a identidade de lugar é outro conceito recorrentemente estudado no campo das interações humano-ambientais. É interessante notar que, costumeiramente, é tratada como uma dimensão cognitiva (Proshansky, 1978; Proshansky, Fabian & Kaninoff, 1983), como uma subestrutura cognitiva da identidade pessoal que diz respeito às cognições sobre o mundo físico no qual o indivíduo vive, enquanto outros fenômenos psicológicos, como apego, dependência, corresponderiam à dimensão afetiva da vinculação. Isso implica uma distinção substancial entre conhecimento, representação, e afeto. Essa fissura é rechaçada sob a perspectiva espinosana, mas a relevância do construto e sua relação íntima com a

dinâmica afetiva humano-ambiental na literatura da área implicam a necessidade de abordar a questão.

Da mesma maneira que os trabalhos sobre o apego ao lugar, alguns problemas vêm sendo apontados no que diz respeito ao construto da identidade de lugar, muitos deles em função da orientação cognitivista e o substrato do paradigma ontoepistemológico positivista. Sob o referencial da psicologia social discursiva, e a partir da constatação de que os trabalhos sobre a identidade de lugar focaram essencialmente em cognições e sentimentos individuais, Dixon e Durrhein (2000) recomendaram o tratamento desse construto como algo que as pessoas criam cotidianamente ao falar de tais sentimentos, que serve como base para suas próprias práticas discursivas e sociais, além de estar prenhe de tradições ideológicas que regulam relações humano-ambientais.

Sobretudo no que concerne a uma interpretação positivista, aspectos tão fundamentais da vida parecem acontecer sem tempo nem espaço, como entidades que existem aprioristicamente como faculdades da mente humana. O mesmo se dá com a categoria dos afetos: são tratados como variáveis intrínsecas ao sujeito, sem conexão com a processualidade histórica da humanidade, e a dinâmica dos sujeitos no mundo. O que é ontologicamente constitutivo dos sujeitos (história, relações afetivas) é tratado, quando muito, como variável.

Talvez o exemplo do “social” na psicologia ambiental seja bastante emblemático. Não é possível afirmar que haja negligencia com o social, mas quando abordado, geralmente, é tomado como variável externa aos indivíduos, como influência de grupos sociais em tal ou qual dado da subjetividade ou do comportamento. A condição social e, mais especificamente, a condição de classe, não é tomada como produto histórico, constitutivo do sujeito e de sua história, que diz respeito ao seu próprio lugar de fala.

Como consequência, a afetividade não possui tempo nem espaço, os sujeitos são igualmente dotados da mesma faculdade afetiva, ainda que com diferenças individuais, que

não possuem especificidades em função de classe social, contexto e momento histórico. Em geral, essas perspectivas também tratam como faculdade relativamente estática, perdendo de vista a dinâmica cotidiana e relacional da vida afetiva.

Assim, as concepções de afetividade que traduzem tais concepções de sujeito não são competentes em tratar o afeto em nível ontológico, ou seja, como imanente à relação sujeito- mundo e à própria constituição da subjetividade. Mais do que isso, as perspectivas que lidam com os afetos a partir de uma visão psicologista, como “faculdades da alma”, a partir das emoções e sentimentos, reafirmam a cisão mente-corpo da tradição cartesiana. Por tradições diferentes, temos um quadro em que a afetividade é relegada ora ao antigo pathos que interfere, pra bem ou pra mal, na possibilidade de conhecer objetivamente o mundo (razão e emoção são apartadas mesmo nas abordagens que as colocam como complementares), ora ao resgate romântico de uma essência perdida. Tradições essas que esvaziam a potência ético- política dos afetos e, por isso, seu caráter transformador. Para um campo de saber que nasce com a transformação como norte, isso é uma lacuna teórica fundamental.

4.2. Afetividade como categoria ético-política

Tendo problematizado as concepções de afetividade predominantes nos estudos das relações pessoa-ambiente, pretendo agora desenvolver a perspectiva da afetividade de Espinosa. Acredito que essa concepção permite enfrentar, se não superar, grande parte dos problemas que apontei anteriormente nas teorias tratadas, como as orientações individualistas, o subjetivismo, a abordagem estática dada ao fenômeno, sua oposição à racionalidade e, sobretudo, a ausência do caráter político dos afetos. A presente discussão será apresentada em dois tópicos. Neste tópico desenvolvo a teoria dos afetos de Espinosa em sua dimensão ético- política, tal qual concebida pelo pensador holandês, na intenção de evidenciar como a

dinâmica afetiva pode nos levar a uma vida de servidão ou de liberdade. No tópico seguinte, busco inserir a dimensão dos afetos, pensada especialmente em termos do desejo, nas relações do modo de produção capitalista.

Entendo, assim, que será possível traçar um quadro da própria indissociabilidade de nossa vida afetiva dos processos históricos, sociais e políticos. O desenvolvimento dessa argumentação tem por fim considerar que todos esses processos articulados à dinâmica afetiva devem ser levados em conta ao pensarmos a afetividade nas relações pessoa-ambiente. Mais do que isso, dar essa dimensão aos afetos é colocar a afetividade como central para qualquer concepção dessas relações, desde as interações humano-ambientais domésticas ao quadro mais geral de insustentabilidade da vida humana no planeta.

Marx e Espinosa, apartados por dois séculos, compartilham algo fundamental que lhes garante atualidade e pertinência de pensamentos, a força explicativa de seus trabalhos e a ideia de que conhecer é conhecer pela causa (Paula, 2014). E aqui já situo uma distinção fundamental entre causalidade tal qual concebida por esses pensadores e as relações causais buscadas no positivismo: “a causa, em Espinosa como em Marx, é ela mesma uma ação