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2. Questão ambiental e fontes renováveis de energia

2.3. Transição energética e as fontes renováveis de energia

O alerta sobre as mudanças climáticas globais colocou a produção de energia no centro do debate acerca da questão ambiental. Se todos os excessos cometidos contra o meio ambiente possuem algum grau de impacto sobre a vida humana, nunca algo colocou a sobrevivência da espécie tão em xeque quanto tais mudanças. Sendo de responsabilidade da intensificação da emissão de gases do efeito estufa (GEE), as MCGs conectam a produção de energia a partir de combustíveis fósseis, cujos resíduos são tais gases, ao cenário catastrófico que se desenha. Tais evidências dão sentido à necessidade de uma transição energética, uma mudança generalizada da matriz global de produtora de energia daquelas derivadas de combustíveis fósseis e nucleares, para aquelas derivadas de fontes renováveis.

O uso de energia é fundamental para a produção e reprodução da vida humana e, até a Revolução Industrial, as sociedades humanas dependiam de fontes renováveis de energia, como a própria força humana, a energia da tração animal, a água e os ventos (Vecchia, 2010). O dilema colocado é que a produção das sociedades atuais é baseada em energia de fontes não renováveis que, na presente proporção, deixam um rastro de problemas ecológicos graves. São chamadas não renováveis justamente em função de a natureza não ser capaz de repô-las senão em uma escala de tempo geológica que a vida humana não acompanha. Além disso, as fontes derivadas da queima de combustíveis fósseis, como é o caso do petróleo, liberam uma alta quantidade dos chamados gases do efeito estufa (GEE). Esses, por sua vez, seriam a fonte

da manutenção da temperatura da terra ou do seu aquecimento, como vem sendo noticiado pela comunidade científica há algum tempo.

A fonte de energia é o recurso que, transformado, será a energia utilizada para gerar movimento, aquecimento ou iluminação. A força humana pode ser a fonte para mover objetos, pois a potência muscular é transformada em energia cinética, mas é limitada para, por exemplo, gerar o movimento de um carro. Este precisa que algum combustível seja queimado e a própria combustão movimente seu maquinário. A geração de movimento também pode ser feita por tração animal, por força dos ventos ou das marés. A energia elétrica é uma forma de energia gerada pelo estabelecimento de uma corrente elétrica e pode ser obtida a partir da ação das formas mencionadas anteriormente.

Diz-se que uma energia é de fonte renovável quando provém de recursos que são renováveis, ou seja, renovam-se no ciclo da natureza em termos de tempo “humano”. Pelo alto grau de utilização de energia elétrica nas sociedades atuais, as fontes renováveis costumam ser fontes para a geração desta. As mais utilizadas fontes renováveis de energia, atualmente, são a biomassa e a hídrica. Além dessas, energia solar, eólica, geotérmica, maremotriz, e a partir do hidrogênio, são provenientes de fontes renováveis, que se contrapõem à queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão mineral e gás natural) e a geração a partir de fissão nuclear, oriundos de fontes não renováveis.

Há ainda hoje, como já foi apontado, uma grande dependência de energia vinda de fontes não renováveis. “O petróleo cru permanece como a mais importante fonte individual na produção mundial de energia primária, algo observado durante quase todo o século XX e que não deixou de influenciar vários processos de cunho econômico e político” (Lins, 2011, p. 6). Alguns dos problemas ambientais associados a isso já foram mencionados: a emissão massiva de gases do efeito estufa e consequente contribuição para o aquecimento global, poluição, consumo dos recursos a níveis catastróficos em direção a um esgotamento dessas fontes etc.

Como impacto social mais alarmante dessa condição no momento estão os refugiados climáticos. É possível, atualmente, identificar um crescimento das iniciativas em torno das energias renováveis, e, no entanto

a difícil verdade é que as renováveis começaram de uma base tão ínfima que até com um crescimento exponencial levará um longo tempo para que elas tomem controle de uma grande parte do trabalho agora feito pelo carvão, petróleo e gás natural (Ayres & Ayres, 2009, p. 1).

No que concerne à energia eólica, gerada a partir da força dos ventos, China, Estados Unidos e Índia despontam como grandes investidores, apesar do pioneirismo europeu. Oitenta países já possuem instalações para geração de energia eólica e há uma participação crescente da energia eólica na matriz mundial, cerca de 11% em 2011 (Lage & Processi, 2013). Nos países em que o uso dessa fonte mais cresce, caso da China, há um forte estímulo governamental (Lage & Processi, 2013).

Além dos aparatos para a geração de energia, a eficiência energética também emerge como uma grande aposta tecnológica para o combate dos impactos nocivos ao ambiente do amplo uso de energia. Entram nessa lógica a melhoria dos padrões de eficiência de aparelhos elétricos, veículos automotivos e maquinário industrial. “Neste sentido, a ‘eficiência energética’ é a grande aposta para reduzir as emissões de gases do efeito estufa em curto prazo, o que exige um intenso debate em torno das alterações na matriz energética mundial” (Silva, 2010, p. 106).

Tendo em vista tal centralidade da questão energética, intelectuais e gestores têm pensado a transição para uma sociedade cuja produção de energia aconteça a partir de matrizes renováveis. Parece consenso, então, que a transição deve acontecer e, como as demais transições energéticas da história humana, não será em função de esgotamento da fonte (Sachs, 2007). A grande questão é como se dará. O problema das fontes de energia é

uma inquietação para os próprios agentes econômicos, uma vez que a produção de energia (sob formas diferentes em cada época) é força motriz da história humana e, por suposto, do desenvolvimento capitalista. “As escolhas-chave envolvidas na transição energética não são tanto entre diferentes combustíveis, mas entre diferentes formas de arranjos sociais, econômicos e políticos construídos em combinação com as novas tecnologias energéticas” (Miller, Iles, & Jones, 2013, p. 139).

Nessa mesma lógica, como discutido no tópico anterior, as soluções tecnológicas possuem avanços, mas são limitadas por serem iniciativas do próprio processo de acumulação do capital. Se por um lado, a questão das matrizes energéticas é central para pensarmos a questão ambiental, a produção de energia é propulsora da acumulação capitalista (Lins, 2011). Levando em conta que nove das doze companhias mais capitalizadas do mundo são do setor energético (Miller, Iles, & Jones, 2013), e que os maiores saltos tecnológicos modernos se deram nas grandes guerras, mais por reorganização do próprio capitalismo do que por demanda realista por armamentos, o problema energético e seu fundamento no pensamento sustentável serão antes, sempre questões de reprodução do capital. Ou seja, é uma relação antagônica em si mesma.

Em função disso, a forma que a transição energética ganha na atualidade é a da ideologia do progresso técnico, ou seja

crença na onipotência da tecnologia, como instrumento capaz de solucionar o conjunto dos obstáculos com que se depara o sistema ao longo de sua trajetória. Tem como suposto uma ordem social imutável, a qual não pode ser desafiada, visto que se assenta em uma “racionalidade técnica”, sendo, portanto capaz de suprir as necessidades do conjunto da sociedade (Silva, 2010, p. 139).

Habita nessa perspectiva a crença na neutralidade das forças produtivas e o obscurecimento de sua contraposição, sob o capitalismo, ao trabalhador.

Após as crises do petróleo, que foram crises de mercado e não de produção, sabe-se que o potencial de utilização desse recurso ainda será altíssimo dentro de um futuro próximo. As consequências disso levam a pensar que o perigo que ameaça a humanidade não é o da falta de energia fóssil, mas a superabundância da mesma (Sachs, 2007). Sachs (2007) ressalta que “a história da humanidade pode ser sintetizada como a história da produção e alocação do excedente econômico, ritmada por revoluções energéticas” (p. 22), e que nenhuma dessas revoluções se deu por esgotamento das fontes. Ora, o que atribui aos recursos naturais um caráter mistificado, de abundância inesgotável e sempre disponível para o avanço da humanidade é justamente sua comoditização e consequente sujeição aos desígnios das leis de mercado. A ameaça da superabundância de combustíveis fósseis não é outra senão a ameaça da necessidade expansiva do capital. A energia fóssil é um meio e não um fim em si mesmo.

É por ser um processo fundamental da vida humana e não apenas um problema ambiental, que a temática energética passa pelos conflitos radicados na própria estrutura social. Sendo assim, os privilégios de classe, as relações de exploração e dominação - já tão característicos das sociedades que adotaram o petróleo - podem acabar por se reproduzir na transição para as energias renováveis. No caso das energias eólicas, a implementação dos parques tem chamado a atenção pela dimensão, mas também passa por decisões que raramente são debatidas com os principais grupos atingidos, além das práticas de exploração serem travestidas de um discurso ambientalmente positivo. Já vimos anteriormente o papel ideológico da “lavagem verde cosmética”. E, se por um lado alguns países do eixo central da acumulação capitalista estão sendo vendidos como exemplos de iniciativas ambientais tanto no âmbito das mudanças de comportamento como no investimento em fontes renováveis de energia, por outro, não o fazem sem custo para o restante do planeta, e “China, Índia e Paquistão estão se transformando em uma lata de lixo eletrônico [...] a África vem se transformando em uma espécie de ‘aterro sanitário’ do imperialismo” (Silva, 2010, p. 115).

Por terem de levar em conta os sistemas social e ambiental como interligados, as propostas em torno da transição para um sistema de energias renováveis deveriam abarcar a ideia de justiça energética, que inclui o acesso igualitário à energia, a distribuição justa dos custos e benefícios, e o direito de participação coletiva na escolha de se e como os sistemas energéticos irão mudar (Miller et al., 2013, p. 143). Nessa linha, deve-se inserir a questão energética no debate sobre os direitos fundamentais e da própria prática democrática. Contudo, sabe-se que a desigualdade radica nas estruturas fundamentais da propriedade privada dos meios de produção, o que implica dizer que a possibilidade de justiça energética substantiva está, como a de igualdade social substantiva, no enfrentamento a essas mesmas estruturas.

Há, sem dúvida, um papel crucial da capacidade de produção energética no conjunto das forças produtivas humanas, o que por sua vez também coloca a questão energética, tanto de sua produção quanto apropriação, no centro do conflito de classes, uma vez que a produção e consumo de energia, inseridos na estrutura de apropriação privada dos meios de produção, são base para reprodução da contradição capital-trabalho. A forma como a sociedade se organiza na produção e distribuição de energia diz da organização da sociedade capitalista.

Não é à toa que o petróleo esteve sempre associado a grandes disputas geopolíticas. “A centralidade dos recursos energéticos na acumulação do capital e a proeminência do petróleo na matriz energética em nível planetário outorgam a essa commodity um papel decisivo na geoeconomia e na geopolítica do capitalismo” (Lins, 2011, p. 9). Assim, o caráter fetichizado das tecnologias para a produção de energia “limpa” pode perpetrar uma transição energética que reproduza as mazelas sociais e geopolíticas da ordem burguesa sem evitar a destrutividade na natureza. Por outro lado, pelas características acima expostas, o tema da transição energética é tão fundamental para o entendimento e enfrentamento das contradições de classe quanto o contrário.

Esse aspecto da produção energética traz uma consideração fundamental: apesar de sabermos que o grande consumo – e, por isso, a grande demanda por energia – é um dos aspectos nocivos à natureza, ainda vivemos numa sociedade de consumo concentrado em uma pequena parcela da população mundial; 50% dos ativos mundiais estão concentrados nas mãos de 2% da população (Oxfam International, 2014).Ou seja, a questão ambiental se atrela com a ainda marcante produção de miséria social em todos os rincões do mundo.

A própria noção de “transição” é capciosa aqui. Falar em uma transição que tenha a perspectiva de toda a sociedade e, ao mesmo tempo, abordar a produção energética separada do complexo de reprodução social é desconsiderar uma conexão de base. É, como nas perspectivas criticadas anteriormente, tomar a sociedade como um bloco unitário que se distingue da natureza. Não há reprodução social – e com isso metabolismo sociedade-natureza – sem o investimento de alguma forma de energia. A energia elétrica é parte dos instrumentos que a humanidade desenvolveu para mediar tal processo, ela é, tal como outras ferramentas, extensão inorgânica do corpo humano (Marx, 1858/2011). Por isso, a forma de sua produção e utilização está conectada aos demais complexos sociais. Assim, não há a possibilidade concreta de alcançar os objetivos de uma transição energética sem uma transição social mais ampla. O fim da exploração deletéria da natureza deve ser íntimo do fim da exploração do ser humano pelo ser humano.

Contudo, o cenário de transferência da oferta de bens e serviços para a iniciativa privada também é verdadeiro para a produção e distribuição de energia elétrica, seja de fontes renováveis ou não, o que coloca nas “mãos invisíveis do mercado” as possibilidades de solução para as questões apontadas, o que não dá bases confiáveis para expectativas sobre tal tipo de solução (Young, 2008). A jornalista Naomi Klein (2014), em seu livro This changes everything: capitalism vs. Climate, argumenta que os processos de desregulamentação

absolutamente nocivos ao clima, e defende uma reviravolta no próprio capitalismo – retomada por comunidades do controle sobre a produção energética, por exemplo - para que seja possível pensar o enfrentamento às mudanças climáticas globais.

O avanço das corporações e do capital especulativo sobre as fontes renováveis de energia e o investimento no desenvolvimento de tecnologias mais eficientes energeticamente podem ser alardeados como alento aos anseios ambientalistas, mas são efeitos da própria mundialização desses capitais que buscam novos e mais eficientes meios de exploração da força de trabalho, da natureza, e garantia de sua valorização. Esse mesmo processo intensifica as relações de dependência dos países periféricos, a dominação das leis de mercado sobre os recursos naturais, o fosso da desigualdade social, a socialização dos impactos ambientais da produção capitalista e a falha metabólica, condição imanente da questão ambiental.

Pela urgência que impõe a questão ambiental, a produção de energia a partir de fontes renováveis - assim como o avanço tecnológico - certamente é um aliado fundamental.

As mudanças que vêm sendo operadas nos processos produtivos com a adoção de “tecnologias limpas”, a reciclagem e as alterações na base energética, entre outras, constituem respostas do capital à “questão ambiental” e cujos impactos devem ser incentivados e acompanhados (Silva, 2010, p. 143).

Por isso mesmo, essa produção deve ser tomada num contexto mais amplo em que possa realmente exercer sua potencialidade de mitigação das mudanças climáticas globais e não mascarar as raízes do problema.

Assim, a transição energética passa a ser um debate de interesse público e, como já foi salientado, é fundamental que não seja tomada como algo que o mercado pode resolver. Além disso, a difusão do debate parece ter como consequência, em parte, uma diluição do mesmo. Mesmo em termos ambientais, o rótulo de renovável não garante que não seja uma iniciativa nociva e, tem-se falado tão amplamente em transição – como se houvesse pressupostos já

definitivos – que se perdeu a dimensão dos impactos dessas propostas (Miller et al., 2013, p. 143). Alguma literatura já tem sido produzida sobre os impactos negativos dessas tecnologias (Mulvaney, 2013; Levidow, Papaioannou, & Borda-Rodriguez, 2013; Raman, 2013). Nesse sentido, a organização infraestrutural para os sistemas de energias renováveis pode ser tão danosa ambientalmente quanto aquelas que pretendem substituir. No Brasil, o impacto socioambiental das usinas hidrelétricas (que geram energia a partir de fonte renovável, a água) é enorme, inundando grandes áreas e deslocando populações, muitas delas indígenas (Magalhães, Silva, & Vidal, 2016).

Nessa direção, levando em conta o foco do presente trabalho, vale questionar os processos envolvidos na implementação dos parques eólicos. O importante neste momento é a inserção das energias renováveis no contexto político-social de que já venho tratando. Não é possível pensar as tecnologias de energias renováveis, nem mesmo a sustentabilidade, como já supostamente positivas. Em outros termos, a transição energética é sobre quem se beneficia e quem é colocado em risco (Miller et al., 2013, p. 140), e sobre quais são os mecanismos sociopolíticos em que se assenta o universo dos aerogeradores.

As políticas energéticas, problemática que será tratada a seguir, passam por essas dimensões da estrutura econômica em que se inserem, e também das lutas de classes que atravessam o tecido social, os modelos de produção e distribuição de energia, pois transformam cidades de um ponto de vista das macro-estruturas (gestão econômica, reorganização do mercado de trabalho, formação de um mercado mundial em torno das energias renováveis) e também das relações cotidianas (produção de modos de vida, apropriação dos discursos ambientais para manutenção ou produção de novas explorações, novas relações entre indivíduos e seus lugares de vida).