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Capítulo 1 Sobre o incógnito e o inculto: lastros históricos da frente de expansão

1.3 Nheengatu entre alianças complexas

Para além de suas diferenças culturais e conflitos, indígenas, negros e mestiços compartilhavam outras demandas. Não eram somente experiências de subalternização que os aproximavam, posto que havia entre eles conexões sociais que transcendiam os mundos do trabalho. Muitos desses personagens em suas vivências pelas vilas, rios e matas dividiam um idioma em comum, o Nheengatu, a língua geral da Amazônia. Tal língua não era nativa da calha norte, tendo sido forjada pelos Jesuítas, oriunda do Tupi, como ferramenta para enfrentar uma das primeiras e mais duras barreiras ao processo de exploração colonial, qual seja, a imensa diversidade linguística existente na floresta79.

79 FREIRE, José Ribamar Bessa. Da Língua Geral ao Português: para uma História do uso social das

línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado em Literatura Comparada, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003.

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Os pupilos de Inácio de Loyola aprenderam o Tupi, falado pelos Tupinambá e por outros povos que habitavam a costa, adaptando-o à gramática portuguesa. Os membros da Companhia de Jesus foram os primeiros que codificaram a chamada língua geral, como meio de facilitar o contato com indígenas. Muitos dos habitantes nativos alcançados por jesuítas, falantes de diversas outras línguas, foram sendo catequizados através do novo código, que se espalhou rapidamente – inclusive entre colonos brancos e seus filhos. Ao invés de um dialeto de contato, o Nheengatu tornou-se a principal língua falada no Grão-Pará por quase trezentos anos80.

Outras razões ajudaram a tornar a questão idiomática ainda mais complexa. Africanos escravizados começaram a aportar em São Luiz, Belém e em outras áreas do território amazônico trazendo outras tantas culturas, idiomas e experiências. Durante esse processo a língua geral recebeu influências de tais adventícios. Muitos escravos recém- chegados, convivendo com a sociedade local, também passaram a dominar e influenciar o Nheengatu.

Não por acaso, de acordo com José Ribamar Bessa Freire, existiu no território amazônico uma progressiva distinção entre o português, como idioma das elites, e o Nheengatu, língua dos extratos sociais mais baixos, falado especialmente por índios e negros. Embora existissem muitas pessoas bilíngues, havia diferenças entre o código considerado “oficial” e o “vulgar”. Nesse sentido, o autor não descarta a existência do bilinguismo, “mas sob fortes condições de dominação e opressão, num quadro onde a língua materna da elite econômica e política era uma, e a dos fornecedores de força de trabalho era outra”81.

Apesar das condições coercitivas, o Nheengatu ganhou mais espaço que a língua portuguesa nas vilas, rios e florestas alcançadas pelo avanço colonial. Não eram incomuns desentendimentos e dificuldades de comunicação vivenciadas por autoridades recém-chegadas do reino em Belém. Bessa Freire afirma que durante o período pombalino, quando Francisco Xavier de Mendonça Furtado chegou para tomar posse como dirigente do Estado Grão-Pará e Maranhão, teve dificuldades em se fazer entender em seu palácio. A razão era simples, seus auxiliares e demais servidores somente eram fluentes em Nheengatu. Nesse contexto, não tardou até o governador encetar medidas

80 Idem.

60 para fortalecer a língua portuguesa, mudando nomes de vilas e proibindo o ensino da língua codificada pelos jesuítas, como meio de fortalecer o domínio lusitano na floresta. Ironicamente, a língua geral, pensada para facilitar a conquista, acabou criando dificuldades para autoridades coloniais. Apesar de ajudar no processo de catequese, a língua acabou ganhando outros sentidos com o passar do tempo, fortalecendo conexões entre personagens subalternizados, que atribuíram novos usos e significados ao código. Talvez as primeiras alianças complexas tramadas entre habitantes da floresta tenham sido acordadas em Nheengatu, que se tornou um elo linguístico entre agentes de diversas ascendências82.

De acordo com Bessa Freire, o idioma atravessou o período colonial, sobreviveu ao processo de lusitanização da Amazônia, e conseguiu adentrar no século XIX sendo ainda falado por diversas populações. Durante a quadra oitocentista, após a disseminação da imprensa nas capitais amazônicas, os primeiros jornais deixaram índices analíticos que ajudam a identificar falantes do Nheengatu pós-1850, muitos dos quais localizados em anúncios de fuga de escravos.

Como apontou Vicente Salles, o contexto de fugas à época generalizava-se, especialmente no decorrer e logo após o movimento cabano, tornando-se “processo contínuo, rotineiro, incontrolável”, o que levou autoridades e senhores a publicarem regularmente seus reclames contra fugitivos, tomando muitos dos editoriais dos periódicos83. O processo de deslocamento de fronteiras também era um fator importante, que colocava diante de fugitivos a possibilidade da busca de autonomia nos altos rios, misturando-se ao crescente movimento de pessoas em demanda das cabeceiras. Talvez esta tenha sido a escolha do escravo mulato Geraldo, cujos signaes eram: “fala língua geral, estatura regular, cabelos pretos e um pouco frisados, muitas marcas de bexigas no corpo, e algum tanto barrigudo por já ter tido barriga d´água”. Ele escapou de Belém da casa de seu senhor, José da Silva Castro, em 1° de outubro de 1855.

82Dialogando com David Kreps, em seu estudo sobre sistemas complexos aplicados a dimensões históricas, considera-se que o tecido social da floresta oitocentista era composto por negociações assimétricas, abertas e mutáveis, que ajudavam a compor o que chamamos de alianças complexas entre os envolvidos na frente de expansão. Cf. KREPS, David. The Complexity of Social Systems: could hegemony emerge from the micro-politics of the individual? In. KREPS, David. Gramsci and Foucault: a reassessment. Burlington (VT): Ahsgate, 2015.

83 SALLES, Vicente. O negro no Pará. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/ Universidade Federal do

61 Cerca de duas semanas depois, Castro publicou um anúncio no jornal Treze de Maio, enfatizando que seu escravo era “filho do Amazonas” – pista de seu possível paradeiro84. O conhecimento do Nheengatu, explicitado no anúncio da fuga, não era tratado como um modesto ornamento cultural do escravo fugido. Tal conhecimento poderia facilitar a comunicação com indígenas, outros escravos fugidos ou desertores, que poderiam servir como interlocutores nas presumíveis rotas de Geraldo em busca de liberdade pela Província do Amazonas.

O Treze de Maio publicou em 10 de janeiro de 1854 um outro anúncio que guarda índices semelhantes. Dessa vez, o jornal apresentou referências sobre a captura de uma mãe negra, escrava fugida, que havia sido apanhada em Camutá juntamente com seus sete filhos. A mulher, escravizada por Pedro Lourenço da Costa, havia fugido dezenove anos antes, em 1835. Durante esse período, ela teria vivido junto com um “preto criminoso”, este fugitivo da cadeia pública de Belém durante o transcurso da rebelião cabana. O casal se refugiou junto aos índios Anambé, de língua Tupi (mesmo tronco da língua geral), que viviam nas proximidades do rio Tocantins. Todos os filhos capturados da escrava eram “menores”, nascidos em liberdade, tendo o mais velho a idade de dezesseis anos85.

A família negra capturada havia se constituído entre indígenas. Mesmo que não seja apontado que os “menores” tivessem pais índios, certamente guardavam traços culturais Anambé. Vários escravos fugidos aparecem nesse contexto como atapuiados, com maneiras mais tapuias que negras, ou puxando mais para tapuio. Existem exemplos nos jornais de Belém e Manaus de indivíduos descritos a partir dessas chaves analíticas que, ao que tudo indica, significavam mais que simples denominações físicas de cor de pele. Dialogando com reflexões de Mark Harris, é interessante salientar que os sentidos atribuídos à “gente de cor” guardavam características complexas86. Os “signaes” também passavam pelo crivo de outros jogos de sentido.

Para além da descrição física, os termos ligados a noção de atapuiado parecem revelar cruzamentos culturais derivados dos significados históricos da ideia do que era ser tapuio na Amazônia. Desde o período colonial tal categoria estava em uso,

84 HDBN – Treze de Maio, 13 de outubro de 1855. n.561, p.4. 85 HDBN – Treze de Maio, 10 de janeiro de 1858, n.277, p.8.

86 HARRIS, Mark. Rebellion on the Amazon: The Cabanagem, Race, and Popular Culture in the North of

62 descrevendo, em geral, os “contrários” de indígenas de ascendência tupi, que falavam idiomas de outros troncos linguísticos, descritos como inimigos mais agressivos e resistentes ao avanço lusitano87. Não obstante, dependendo da região e das relações tecidas entre indígenas e portugueses, outras camadas de sentido foram cobrindo os significados da categoria através dos séculos. No território amazônico, durante o século XIX, tapuio usualmente servia como qualificativo de indígenas supostamente destribalizados. Havia embutido o entendimento de que esses personagens estavam em vias de civilizar-se, suscetíveis à pesada legislação que receitava o trabalho como medida de disciplinarização, vivendo sob o jugo do labor coercitivo e compulsório.

Não por acaso, os tapuios eram vistos como potencialmente suspeitos. O Jornal do Pará, de 30 de julho de 1874, posicionou entre suas colunas referências bastante elucidativas dos porquês das referidas medidas ostensivas de controle.

Sabe-se o quanto é difícil fazer valer a autoridade da lei em todas as localidades de nossa vasta província, aqui onde o intrépido tapuio, nascido nas margens dos rios, aprende de criança a guiar uma igarité ou montaria sobre o abismo das águas, com a mesma facilidade com que o pássaro corta em voo a imensa amplidão dos ares (...)88.

Por trás das cruentas medidas de disciplinarização, estava embutido o receio diante das habilidades de tapuios que conheciam muito bem a ambiência da floresta e vinham utilizando seus saberes e conexões sociais clandestinas para encarar aparatos de controle oficiais. Portanto, tudo levar a crer que ao aproximar escravos negros do qualificativo tapuio, existia mais que a intenção de designar seus “signais” físicos, adjetivando outras características. É possível inferir que a categoria atapuiado, mais que descrever mestiços, era um outro modo de qualificar escravos ladinos na Amazônia89. Transgressores podiam tirar vantagem das trocas culturais imbuídas no aprendizado de línguas e nos diversos processos de mestiçagem, dificultando a identificação e perseguição dos que buscavam escapar da escravidão ou do trabalho compulsório. Todavia, senhores e autoridades, em contrapartida, também foram

87 Cf. MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de história indígena e do

Indigenísmo. Campinas, Tese de Livre Docência, 2001.

88 HDBN - Jornal do Pará, 30 de julho de 1874, n.169, p.1.

89 Ladino, grosso modo, era um antônimo de Bossal. A primeira categoria buscava qualificar escravos

nascidos no Brasil, conhecedores dos melindres sociais da terra, e a segunda, seu contrário, qualificava recém-chegados do continente africano. Cf. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo, Hucitec /História Social, 1998, p. 135.

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produzindo suas estratégias na tentativa de neutralizar as agências daqueles que transgrediam a ordem desejada.

Nesse direcionamento, Antonio José Pereira Carneiro publicou em Manaus, no Estrella do Amazonas, um anúncio de fuga de um casal de escravos. Ele suspeitava que os fugitivos tinham se dirigido para o rio Negro, onde um dos cativos havia vivido antes de ser vendido. O aviso da fuga veio a público em 30 de abril de 1856, na expectativa que senhores e autoridades da Província do Amazonas pudessem fornecer pistas. De acordo com o anúncio, os fugitivos eram: João mulato, “puxando mais para tapuio”, 34 anos mais ou menos, que tinha no rosto a palavra “escravo” marcada à ferro, “escrita em língua geral”; e Alexandrina, que possuía entre 26 e 28 anos, preta, alta e boa figura90.

O rosto marcado de João significava que aquela não era a primeira vez que ele desafiava o poderio senhorial. O fugitivo, mesmo descrito como mulato, “puxava para tapuio”, o que evidenciava mais que um qualificativo físico. A palavra “escravo” grafada em Nheengatu indicava a provável ambiência linguística vivenciada pelo escravo nos sertões amazônicos antes de ser vendido para seu senhor belenense. A marca podia simbolizar tanto a memória de uma punição, como um designativo para distingui-lo como escravo na floresta, evitando assim que se misturasse aos trabalhadores “livres” negros, indígenas e mestiços que também compunham os mundos do trabalho locais. É preciso salientar que além de traduzir a violência do regime escravista em terras amazônicas, o exemplo de João também demonstrava o alcance da língua geral durante o século XIX, ressignificada dentro de contraofensivas de senhores que podiam fazer uso do Nheengatu para literalmente “marcar” fugitivos.

À época da fuga de João e Alexandrina se avizinhava o boom da borracha, que traria ainda mais complexidade ao cenário em tela. Os fugitivos que tanto preocupavam senhores e administradores, enchendo as colunas dos jornais e páginas de documentos policiais, passariam a dividir com outros personagens as paisagens transgressoras da floresta. Naqueles tempos, índios, negros e mestiços iniciariam a tessitura de conflitos e

90 LHIA - Estrella do Amazonas, 30 de abril de 1856, n.141, p.4. (Digitalizado). Obs. Patrícia Sampaio

também analisou o caso de Alexandrina e João Mulato em interessante livro sobre a presença negra na Amazônia. A autora traduziu o termo que estava escrito à ferro no rosto do fugitivo, que seria “miaçua”, designativo de escravo em Nheengatu. Cf. SAMPAIO, Patrícia Melo (Org.) O fim do silêncio: presença negra na Amazônia. Belém: Açaí/CNPq, 2011. p.14

64 expectativas com os trabalhadores pobres livres migrantes, que vinham chegando crescentemente e se engajando nos trabalhos da borracha.

Segundo Bessa Freire, foi somente a partir da chegada desses agentes, vindos de outras províncias do Império, que finalmente a língua portuguesa se tornou hegemônica em terras amazônicas91. Contudo, experiências de resistência tramadas em Nheengatu não sumiram com a diminuição dos falantes da língua, posto que, ao contrário, parecem ter se conectado aos outros matizes de subalternização de adventícios e seus contra-teatros92.

Embarcados em vapores, migrantes passaram a se relacionar cotidianamente com as populações da floresta, com quem articulavam diálogos e também travaram encarniçadas rusgas. Vistos inicialmente como mais um vetor de avanço da conquista do território amazônico, os desejados trabalhadores nem sempre corresponderam às expectativas a contento. Dialogando com Mark Harris, estava em causa mais que uma simples “amalgamação” entre vivências de indígenas, negros e migrantes, que crescentemente circulavam pelo território amazônico93. Tratava-se de um processo de reconstituição de experiências e aspirações tecidas por novos protagonistas, que engrossariam a lista dos potencialmente suspeitos.