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Capítulo 1 Sobre o incógnito e o inculto: lastros históricos da frente de expansão

1.5 Tramas da devassa

O Vapor Marajó foi o primeiro de sua tecnologia a subir o rio Solimões em 1853. O signo da velocidade e os ares de novidade da embarcação carregavam consigo olhares escrutinadores, que objetivavam mapear terras e populações sob o crivo atento de seus emissários. O navio partiu da Cidade da Barra do Rio Negro no dia 22 de setembro às 4 horas da manhã e chegou ao seu destino, na povoação de Nauta, no Peru, na tarde do dia 16 de outubro. Ao todo a viagem de ida e volta venceu cerca de quatro mil quilômetros em 36 dias e 18 horas, incluindo os tempos de parada e estudos, abrindo um novo ritmo de explorações da floresta. O vapor foi capitaneado pelo Conde Florestan de Rozwadowski, engenheiro polonês nomeado Inspetor Geral das Medições de Terras Públicas do Amazonas, responsável por levantar a primeira carta topográfica do imenso Solimões123.

Aproveitando as informações já levantadas pelo engenheiro estrangeiro, em 1854 foi a vez do Vapor Monarcha fazer o mesmo itinerário, dirigido por autoridades locais, como o deputado João Wilkens de Mattos. A embarcação partiu da Cidade da Barra na manhã do dia 11 de março e chegou em Nauta no dia 29 do mesmo mês, apanhando um meticuloso panorama de todas as paradas e lugares visitados no percurso, com atenção especial aos locais de abastecimento de lenha e povoações indígenas. A viagem teve o desígnio de aprofundar os conhecimentos sobre o alto Solimões e suas

123 Falla do Presidente da Província Herculano Ferreira Penna, 1854.

Sobre o trabalho do engenheiro Rozwadowski como Inspetor Geral das Medições de Terras Públicas do Amazonas, ver: LHIA, Estrella do Amazonas, 10 de abril de 1855. n.114 p.4

78 possibilidades de navegação em escala comercial, que se concretizaria meses depois na inauguração de uma linha regular entre a Cidade da Barra e Nauta124.

Mesmo diante do caráter técnico das duas empreitadas, a primeira dedicada à elaboração de cartas topográficas e a segunda debruçada sobre as possibilidades da navegação capitalista, é possível entrever em seus relatórios preocupações que extrapolavam conteúdos eminentemente científicos e/ou econômicos. Entre os variados detalhamentos e observações físicas foram inseridas uma série de informações sobre hábitos e costumes das populações locais, que foram quantificadas e qualificadas em narrativas pretensamente neutras. Considera-se que esses testemunhos, ao lado de outros esforços da época, podem ser auscultados como empreendimentos de conquista, pois tinham um duplo papel de decodificar os segredos de caminhos fluviais e aumentar o alcance das explorações e do controle dos habitantes locais.

Existiam nessas elaborações relações de força permeadas por várias formas de violência (físicas e/ou simbólicas), situadas entre discursos de assimilação e/ou aniquilação dos “Outros”. Entre observações sobre distâncias, correntezas, limites, ventos, troncos flutuantes, havia espaço, por exemplo, no entendimento de João Wilkens de Mattos, para classificar a indolência de alguns índios como “proverbial”, vistos como auxiliares do atraso do Amazonas na ausência de “outros trabalhadores”125. Além disso, atento às movimentações já em curso, o Deputado não se esqueceu de apontar o possível destino de fugitivos na rota singrada pelo Vapor Monarcha.

Pessoas aqui residentes informaram-nos que os Soldados desertores que assassinaram o infeliz Capitão Nina, em Tabatinga, no ano de 1844, residiam em alguns povoados do litoral (do Peru), mas atualmente apenas existem dois, que habitam o rio Napo, tendo os outros falecido. Vimos aqui (Nauta) alguns dos escravos que fugiram de seus senhores residentes nas Províncias do Pará e do Amazonas. Não gozam da liberdade que esperavam achar no país estrangeiro, porque são constantemente chamados para o serviço público, e sofrem muito, se são exatas as informações que tivemos126.

Ao chegarem em Nauta, os membros da incursão de Wilkens de Mattos procuraram saber notícias sobre desertores e escravos fugidos residentes no Peru. O

124 Cf. MORAES, Rinaldo Ribeiro. A navegação regional como mecanismo de transformação da economia

da borracha. Belém, Programa de Pós-graduação do Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, Tese de doutorado em Desenvolvimento Socioambiental, 2007. p.103

125 Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI). MATTOS, João Wilkens. Roteiro da primeira

viagem do Vapor Monarcha desde a Cidade da Barra do Rio Negro, Capital da Província do Amazonas, até a povoação de Nauta, na República do Peru. Rio Negro, Tipografia de M.S. Ramos, 1855. p. 396

79 interesse no assunto estava na ordem do dia das preocupações do Estado, e não é de admirar que tenha sido inserido também entre os misteres da expedição. Portanto, na alçada da investigação da viabilidade física e econômica da linha regular de navegação, também eram esboçadas preocupações com as movimentações de fugitivos em direção às cabeceiras.

Para além das referências sobre transgressores, os registros também apresentaram informações sobre a presença indígena nos caminhos dos vapores. Conforme esboçado por Peter Gow, é preciso ter em conta o processo de apropriação dos conhecimentos pré-existentes da malha fluvial, imbuídos sobremaneira em rotas e circuitos produtivos nativos, incorporados ao novo sistema de navegação e comércio127. Os saberes de origem indígena aparecem nos relatórios escamoteados em narrativas permeadas por um mundo pitoresco e isolado, que necessitava receber as luzes do progresso e do desenvolvimento pioneiro, que chegaria através de adequados processos de disciplinarização da floresta e de suas populações.

Mesmo deplorando os costumes de uns, como no caso do ritual do Yurupary dos Ticuna em São Paulo de Olivença, ou condenando a falta de apego ao trabalho de outros, como no caso dos “preguiçosos” índios contatados em Loreto, é evidente a presença de conhecimentos de matriz indígena apropriados pelos relatórios. Em várias ocasiões é possível encontrar detalhamento de varadouros, cálculos de dias de viagem em canoas, mensuração de distâncias, indicação de furos e atalhos, além de apontamentos sobre locais onde eram exploradas drogas da floresta. Ao passar pela foz do rio Juruá, por exemplo, além de situar os graus de latitude e longitude, vazão da correnteza e velocidade do vapor, Wilkens de Mattos afirmou, mesmo sem ter entrado no rio, que este era plenamente navegável, e que “depois de uma viagem de 40 dias de canoa pequena chega- se ao ponto em que nele aflui o rio Parauacu, pelo qual na estação da cheia com 10 dias de navegação, passa-se para o rio Purus”.

Ao lado dessas informações, o autor indicou alguns povos indígenas que habitavam a área, como os “Marauá, Canamari, Náua, Conibo, Catuquina e Catauixi”. Sem revelar os créditos dos dados levantados, o Deputado continuou seu relato tratando da produção local e da sua diversidade de atividades. Segundo ele, o rio era “abundante de tartarugas, pirarucu, e nas extensas praias que oferece durante a vazante fabricam-se muitos mil potes de manteiga de ovos de tartaruga e tracajás”. Além disso, era possível

127 GOW, Peter. “Canção Purús”. Nacionalização e tribalização no sudoeste da Amazônia. Revista de

80 colher nas matas banhadas pelo rio, “castanha, salsa, óleo de copaíba, breu, e fabricar muita goma elástica, de que também abundam as margens”128. Em nenhum momento ele indica que essas produções e conhecimentos passavam pelo crivo indígena, ocultando-os como atores ativos na composição do cenário socioeconômico local. Mesmo diante de argumentos não diretamente beligerantes, a narrativa de Wilkens de Mattos era atravessada por violências semelhantes às políticas de controle empreendidas pela Província do Amazonas129.

Esses discursos tinham base nos desafios de alteridade que impregnavam a trajetória das expedições de reconhecimento dos altos rios. Ao observarmos essas tentativas de deslegitimar o mundo e os conhecimentos dos “Outros”, pode-se perscrutar as disputas que existiam sobre a atribuição de significados ao território.

Havia pressa por parte dos poderes instituídos em adaptar a floresta e seus rios aos novos padrões desejados, de modo a buscar sobrepujar os “indômitos” e disciplinar os “ingênuos”. Se indígenas, desertores, migrantes, escravos, dentre outros personagens, conseguiam em algumas ocasiões ressignificar a tendência desfavorável às suas demandas, o Estado, por sua vez, engendrava um discurso público que se apropriava dessas táticas (e de alguns de seus agentes), ajudando a constituir um tenso cenário de interlocuções entre autoridades e habitantes das florestas.

Muitas experiências de indivíduos “de baixo” serviram de base para o avanço dos interesses oficiais pelas cabeceiras. Expedições de reconhecimento eram obrigadas a contrair relações com pessoas supostamente “indesejáveis”. Nesse ensejo, além das populações indígenas, se destacavam os regatões, que em decorrência de suas longas viagens de negócios acabaram produzindo relatos e cedendo informações sobre áreas a serem devassadas. Não por acaso, mascates fluviais foram incorporados aos quadros oficiais da Província do Amazonas, responsáveis por viagens de reconhecimento dos sertões, especialmente em territórios ainda inacessíveis às linhas de vapores.

128 Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI). MATTOS, João Wilkens. Roteiro da primeira

viagem do Vapor Monarcha ...op.cit. p.381

129 Seguindo reflexões de Michel de Certeau, acreditamos que a escrita dos relatos de viagem voltadas ao

território amazônico oitocentista ainda trazia um conteúdo semelhante à “Escrita Conquistadora” dos cronistas coloniais. Cf. CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

81 O rio Purus foi um dos principais atingidos por essas empreitadas, capitaneadas por vários homens ligados aos circuitos produtivos internos. A primeira incursão ao rio foi conduzida em 1847 pelo pequeno negociante João Cametá, que alcançou a foz do rio Ituxi; a segunda foi dirigida em 1852 pelo regatão preto Serafim da Silva Salgado, que teria navegado 1300 milhas, deixando muitas referências sobre as praias e os índios do rio; a terceira foi liderada em 1860 pelo mulato Manoel Urbano da Encarnação, que avançara até o afluente Aquiry (Acre), ultrapassando seus predecessores. Todas essas incursões foram referenciadas com distinção pela Presidência da Província do Amazonas, que paulatinamente ia acumulando conhecimentos sobre áreas ainda insondáveis. Interessante notar que as experiências dessas expedições foram abertamente aproveitadas por outros agentes oficiais, inclusive homens de perfil ilustrado e científico. João Martins da Silva Coutinho, afamado engenheiro militar do Império, pode ser apontado dentro da referida classificação. Em 1862, dirigiu uma empreitada destinada também ao Purus, seguindo as pegadas de Manoel Urbano, que o guiou a bordo do Vapor Pirajá. Mesmo que Coutinho não fosse necessariamente um neófito em questões amazônicas, a presença de Manoel Urbano foi fundamental em grande parte das informações coletadas na incursão130. Ao lado de seu interlocutor, Coutinho fez alusão a referências pouco exploradas da complexidade social do interior amazônico, admirando- se ao encontrar habitantes “brancos” vivendo e incorporando costumes “selvagens”, ou estranhando o comportamento de indígenas detentores de pequenas fortunas amealhadas em seus negócios com os mascates fluviais.

Ao ler o relatório do engenheiro fica claro que essas informações vieram através de arrazoados de Manoel Urbano. A própria logística da expedição tinha o interlocutor mulato como articulador principal, especialmente no que diz respeito ao fornecimento de lenha, adquirida através dos contatos de Urbano ao longo do rio. Várias foram as paradas estratégicas para o abastecimento do Vapor Pirajá, que levou os membros da expedição até as barreiras de Huytanahan, localidade que anos depois tornou- se ponto final (não coincidentemente) da navegação a vapor comercial no Purus131.

130 O engenheiro examinou no Amazonas, além do Purus, os cursos dos rios Japurá e Madeira, e em seus

relatórios é possível visualizar uma preocupação bastante significativa com aspectos físicos do percurso, localizando corredeiras, rochas, bancos de areia, dentre outros acidentes geográficos, dando mostras de sua preocupação com a implementação da navegação comercial a vapor no rio, desenvolvida alguns anos depois.

131 Dando continuidade aos trabalhos da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, foi

82 Mesmo sem esboçar um exercício censitário preciso, o engenheiro calculou o contingente populacional que vivia próximo das margens do rio em 5.000 pessoas, chegando talvez a 7.000 ou 8.000 se contasse com os que habitavam áreas mais distantes nos centros das matas. Alguns dos povos indígenas contabilizados mereceram atenção especial no relatório da expedição. Os Mura foram classificados como os “verdadeiros ciganos da América”, já que deslocavam-se continuamente exercitando seus perniciosos vícios de “furto e roubo”; os Paumari foram vistos como “extremamente inclinados a música” e exímios pescadores; os Apurinã apareceram como “amantes dos combates”; os Catauixi figuraram como “bonitos, vigorosos e dóceis”; os Jamamadi foram vistos como lavradores por excelência e medrosos quando colocados em canoas, pois “tremiam como um sertanejo do Ceará”; os Canamary e os Manetenery (Manchineri) eram os que na opinião dos membros da expedição mais facilmente “se poderiam civilizar”, muito elogiados por Urbano, “que sempre dizia em sua linguagem simples que eles só faltam falar!”132

A maneira como se distinguia cada “tribo” dava ao leitor do relatório uma espécie de gradação entre os que estariam mais próximos ou mais distantes da civilização. A qualificação, quantificação e localização da presença indígena auxiliava agentes oficiais e particulares a adentrarem a calha do Purus com vistas a garantir o acesso à mão de obra desses povos. À época destacava-se o papel da Diretoria de Índios, instituição que também fazia parte da devassa dos altos rios amazônicas, regida pelo Regulamento Acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios de 1845133.

As diretorias eram encarregadas de empreender “descimentos” de índios “selvagens” para aldeamentos, antiga prática colonial que vinha sendo reciclada na subida dos rios amazônicos nos oitocentos. Seus membros se somavam aos esforços de arregimentação compulsória de indígenas ao trabalho, responsáveis por “distribuí-los” entre obras públicas e particulares. Mesmo diante do protesto de alguns dirigentes oficiais, a maior parte dos Diretores de Índios no Amazonas eram indivíduos leigos,

Brito Amorin, que iniciava comercialmente o transporte de passageiros para o Purus. Sobre a instalação da dita Companhia ver: LHIA, Commércio do Amazonas, 2 de maio 1874 (microfilmado) e Arquivo Público do Estado do Amazonas - APEAM, Contratos celebrados com a Presidência – folheto publicado pela Thezouraria da Fazenda Províncial do Amazonas, 1871 (impresso).

132 NEAI. Relatório da Exploração do Rio Purus apresentado pelo Engenheiro João Martins da Silva

Coutinho, 1862. (Impresso) pgs. 67; 72; 74; 76; 77.

133 Cf. SAMPAIO, Patrícia Melo. Política Indigenista no Brasil Imperial. In. GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. (Orgs.) O Brasil Imperial (1808-1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

83 muitos dos quais mascates fluviais do interior, chamados ao dever pelo Estado em função de seus conhecimentos sobre rotas fluviais, costumes e línguas indígenas134. Estes homens, além de levarem a cabo as ordens oficiais, também colocavam seus próprios interesses em jogo, algumas vezes entrando em atrito com seus catecúmenos.

Vários indígenas protestavam contra o trabalho não remunerado, tendo seus reclames registrados em ofícios trocados entre membros da Diretoria de Índios e os dirigentes da província. Esse foi o caso relatado pelo Diretor Interino de índios do Arimã no Purus, Vitorino Manoel de Lima, que teve suas atividades paralisadas em 1854 devido ao abandono dos indígenas que estavam com seus provimentos de farinha atrasados. O Diretor da Aldeia do rio Abacaxis, afluente do Madeira, também passou por apuros semelhantes, pois quando incumbido de fornecer trabalhadores para obras públicas na Freguesia de Serpa, não o fez porque os indígenas se negavam a prestar o serviço, “aturados (sic) que sua índole não tolera que prestem e ainda fora de seus lares”135. Já o responsável pelo aldeamento do lago Aiapuiá, no Purus, vivenciou situação ainda mais grave. O negociante Manoel Nicolau de Melo confidenciou ao Presidente da Província que os índios Mura estavam se confederando para matar todos os brancos da região. Um Tuxaua da localidade de Manacapuru vinha subindo o Purus insuflando outros indígenas a seguirem suas determinações.

Aiapuiá, 16 de janeiro de 1854

Aqui chegaram uns Muras de Manacapuru, e dentre eles um de nome José Capuham, incumbido pelo Tuxaua Vitoriano de Manacapuru de convidar a todos os Muras deste rio para assassinar os brancos que por aqui estivessem, dizendo aos parentes que brancos os perseguiam com serviço, e que deste modo os acabaria, que era necessário fazer cerco aos brancos (...)

Manoel Nicolau de Melo136

Ecos da rebelião cabana pareciam retornar dos escombros do passado, atacando diretamente projetos de assenhoramento da floresta na Província do Amazonas. Como se sabe, os Mura tiveram participação destacada ao lado dos insurgentes durante a

134 A presença de regatões nos quadros da Diretoria de Índios demonstrava o grau de ambiguidade do

tratamento dispensado aos mascates por dirigentes da Província do Amazonas. Mais detalhes da composição desse quadro serão discutidos no decorrer dos Capítulos 2 e 3 desta tese.

135 APEAM. Livro da Diretoria de Índios de 1854. (Manuscrito) 136 APEAM. Livro da Diretoria de Índios de 1854. (Manuscrito)

84 quadra da revolta popular, auxiliando sua expansão pelo interior137. A ideia da guerra contra os brancos foi uma tônica bastante acionada pelos Cabanos, que estava em sintonia com inúmeras revoltas atlânticas de populações escravizadas e de diversos outros personagens submetidos ao jugo do colonialismo.

A perseguição com o “serviço” estava na ordem do dia das políticas oficiais da época. Embora a lida de indígenas fosse componente fundamental dos mundos do trabalho da floresta, suas respostas violentas, vide o caso dos Mura, eram temidas pelos signatários da Diretoria de Índios. Por isso, articulavam-se também contraofensivas que buscavam evitar o confronto direto. Havia na zona de contato personagens que tentavam “amansar” os nativos através de barganhas e de outras modalidades de tratativas.

A posição de regatões dentro da Diretoria de Índios não era fortuita. Além atuarem como encarregados e diretores, suas artimanhas na negociação de mercadorias com nativos em troca de “serviço” possibilitavam a abertura de redes de interlocução com os sistemas produtivos da floresta. No bojo de seus interesses foram sendo criados vínculos de sociabilidade e trabalho, constituídos através das trocas entre produtos manufaturados e gêneros advindos dos circuitos da produção indígena.

Em conexão com indígenas, a atuação dos regatões foi ganhando bastante amplitude nos rios e canais amazônicos durante o século XIX, detalhe que certamente pesava positivamente na escolha de representantes do comércio ambulante fluvial como interlocutores da Província do Amazonas. Segundo José Alípio Goulart, sua presença remontava ao período colonial, herança portuguesa de antigos mascates que mercadejavam ao retalho no Reino, alcançando lugares distantes de centros distribuidores de bens de consumo.

Na Amazônia a atividade seguira uma lógica bastante semelhante, mas ao invés de andarilhos de trilhas terrestres os regatões tornaram-se hábeis navegadores de caminhos fluviais. Sua atuação tinha base em trocas entre produtos naturais (sobremaneira extrativistas) e mercadorias manufaturadas, como tecidos, calçados, utensílios domésticos, facões, terçados, entre outros provimentos criadores de novas necessidades e usos entre as populações contatadas. Seus circuitos davam fôlego e

85 capilarizavam atividades econômicas pelo interior amazônico, aproveitando especificidades pré-existentes da produção e do trabalho locais.

Eram muitas vezes os primeiros a alcançarem áreas distantes e ainda não tocadas pela presença do Estado, precedendo as famosas expedições de reconhecimento embarcadas em vapores. Os regatões tinham uma relação dúbia com as autoridades, pois se de um lado eram agentes que levavam o comércio (e supostamente a civilização) aos mais distantes rincões, por outro eram acusados de explorar e desviar as populações do interior dos projetos desejados pelas províncias. Como assevera Mário Ypiranga Monteiro, podemos destacar duas visões opostas, uma que os atacava “como causa e