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Capítulo 2 – Regatões, ambíguos agentes da frente de expansão

2.3 Regatões e Seringais

No Amazonas o mercador ambulante, que tem a classificação de regatão, é um homem-máquina, que movido pela mais sórdida e repreensível ganância, percorre em todos os sentidos os rios da província, entrando nos igarapés e lagos, atravessando igapós imensos, tocando nas ilhas uma por uma, vencendo impetuosas correntezas dos rios (...). Este homem extraordinário, que assim afronta todos os perigos, que podem antepor-se a sua ambição de lucrar muito, com a permuta que fizer das mercadorias que conduz no valor de muitos contos de réis, que lhe fiaram sem garantia, com os produtos colhidos pelo pescador ou seringueiro, não tem consciência de si, desconhece sua temeridade e valor, e nem alcança por falta de instrução, além de si mesmo, a nobre missão que exerce, sem querer, de levar a esses incultos ignorantes habitantes dos nossos sertões a ideia de que fora deles existe um mundo todo de grandeza e luz. A ambição o cega, e gera-lhe na alma os mais negros sentimentos!172

Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, filho da Vila de Barcelos, rio Negro, foi o primeiro Presidente da Província do Amazonas. Depois de ocupar o mais alto cargo da nova unidade do Império, continuou atuando na política local, sendo interlocutor de incursões oficiais pelos sertões. Na edição da Revista do Amazonas de maio de 1876, iniciou a publicação de uma série de relatos sobre sua viagem entre Barcelos e as

172 ARANHA, Bento de Figueiredo Tenreiro. Rio Demeuny – Viagem de Barcelos a Maloca dos Índios

Xirianas. In. Revista do Amazonas: publicação mensal sobre exploração de rios, catechese e civilização de índios; colonização, agricultura e indústria. ano 1; número 2, Manaus, Typ. do Commercio do Amazonas de Gregório J. de Moraes, 1876. p.25

107 “malocas” dos índios Xiriana, no rio Demeuny. No testemunho, Tenreiro Aranha esboçou interessantes observações sobre o papel dos regatões naqueles sertões, deixando nítido o viés ambíguo de suas opiniões sobre o tema.

A Revista do Amazonas, publicação mensal sobre “exploração de rios, catequese, civilização de índios, colonização, agricultura e indústria”, divulgava através dos escritos de seus colaboradores um ideário de planificação do desenvolvimento local173. A viagem de Tenreiro Aranha se inseria dentro desse panorama, como mais uma contribuição para o arcabouço de informações sobre o interior amazônico. Sua incursão ocorreu em meses de vazante, época em que a maior parte da população se ocupava na salga dos peixes, fabricação de manteiga de tartaruga, extração de borracha, entre outras atividades típicas do verão amazônico à época. Segundo Aranha, pelo fato dos trabalhadores atuarem longe das pequenas comodidades de suas casas, aumentava a demanda pelos préstimos dos mascates fluviais que se entranhavam pelos mais distantes rios e igarapés para negociarem quinquilharias.

A ambição pelos altos lucros advindos dos gêneros da estação seca impelia os regatões ao enfrentamento dos maiores perigos. O ex-presidente deixou registrado o desassombro dos comerciantes dos rios que, segundo ele, nunca eram desencorajados pelas grandes distâncias e intempéries da floresta. O autor chegou a classificar os regatões como “homens-máquina”, personagens animados pelo combustível da ganância, que venciam incólumes os mais atribulados caminhos fluviais em busca de multiplicar seus ganhos. Aranha se inspirava no exemplo das arrojadas máquinas a vapor, que venciam correntezas e dificuldades numa velocidade espantosa para a época. As canoas de regatão, assim como os modernos vapores, eram posicionadas entre as forças que levavam “um mundo todo de grandeza e luz” aos sertões incultos. Ironicamente, mesmo sob permanente suspeita, os vendeiros dos rios eram positivados como agentes que vinham ajudando no desenvolvimento econômico da floresta.

É interessante sublinhar que a expansão dos interesses capitalistas na floresta se conectava aos lastros de uma sociedade em constante trânsito, muitas vezes condenada nas Fallas provinciais. Como visto no capítulo anterior, projetos de colonização e

173 Embora tenha produzido apenas 6 números (entre abril e setembro de 1876), a Revista do Amazonas

guarda interessantes índices analíticos que tratam dos projetos para o desenvolvimento local, com atenção especial para contato com populações indígenas e as possibilidades de aproveitamento econômico das potencialidades da floresta.

108 sedentarização se apequenavam diante da força atrativa das atividades de caráter nômade e extrativista. Se para as autoridades locais era motivo de pesar a detecção do fracasso de empreendimentos de sedentarização de indígenas e colonos, para a ordem econômica internacional o nomadismo servia de garantia para o fornecimento de produtos que animavam a indústria. Tal conjuntura posicionava os mascates fluviais ao lado dos que ajudavam no avanço dos interesses econômicos internacionais na selva. Em outras palavras, tomando o mote da reflexão de Tenreiro Aranha, os ambiciosos regatões podiam ser considerados “homens-máquina”, parte das engrenagens do capitalismo expansionista, interligados a dinâmicas macroestruturais oriundas de potências distantes que enxergavam a Amazônia como uma nova fronteira econômica.

À época da publicação do relato de viagem de Tenreiro Aranha o principal produto amazônico incorporado pelas demandas do capitalismo industrial já era a borracha. A disseminação do processo de vulcanização, patenteado pelo estadunidense Charles Goodyear desde 1844, vinha transformando a goma elástica numa matéria-prima de destaque mundial. Após o tratamento químico, a substância não mais variava de textura e consistência, servindo de excelente impermeabilizante para diversos produtos, que poderiam ser utilizados tanto em temperaturas quentes como frias174. Assim, o leite das seringueiras ganhou notoriedade entre produtores de botas, sapatos, capas de chuva, peças de maquinário, dentre outros artefatos industrializados – e isto ainda estava distante do boom do uso em pneus de bicicleta e automóveis175.

A floresta equatorial da América do Sul era a única produtora de goma elástica no mundo à época, o que ajudou a desenhar as conexões de interesses internacionais com a abertura e exploração dos seringais em terras amazônicas. Grandes corporações foram obrigadas a ensejar conexões com circuitos econômicos internos, ligados ao processo de expansão rumo ao oeste amazônico já previamente em curso. Uma das facetas da interiorização dos interesses estrangeiros sobre a borracha teve base no aporte da oferta de crédito, impulsionando a circulação de mercadorias importadas, que se imbricavam diretamente ao comércio ambulante fluvial. Mesmo

174 Antes do processo descoberto por Goodyear, a borracha mudava de consistência dependendo do clima,

tornando-se pegajosa no calor e endurecida no frio. A vulcanização, que consistia na aplicação de enxofre sob pressão e altas temperaturas na goma elástica, lhe atribuía propriedades estáveis, podendo revestir produtos em qualquer latitude, tanto em altas como em baixas temperaturas. Cf. DEAN, Warren. A Luta pela borracha no Brasil: um estudo de História ecológica. São Paulo: Nobel, 1989.

109 condenados por seus “negros sentimentos”, os regatões eram parte importante dessa cadeia de expansão, perfilando-se nas primeiras fileiras da subida dos rios, abrindo caminho para outros exploradores e seus empreendimentos.

Os fluxos migratórios advindos de outras províncias do Norte do Império incrementaram ainda mais o referido processo de expansão, aumentando as demandas por gêneros e produtos manufaturados. Para além dos giros dos mascates fluviais, foram sendo constituídos outros canais de acesso às mercadorias, dessa vez instrumentalizados por seringalistas, homens que buscaram monopolizar internamente os circuitos da produção de borracha através de estabelecimentos fixos de exploração extrativista. Os seringalistas, em detrimento dos regatões, passaram a “aviar”, ou seja, a disputar a venda de quinquilharias para trabalhadores migrantes e indígenas em troca da produção do látex. Para tanto, os seringais erigiram seus próprios armazéns, que forneciam rudimentos de trabalho, vestuário e alimentos aos seringueiros, praticando preços supervalorizados. Tal relação econômica era a base das cadeias de endividamento do sistema de aviamento, que serviam de fio condutor das relações de trabalho num contexto de monetarização ainda rarefeita.

Os regatões paulatinamente foram ganhando a concorrência do que Euclides da Cunha classificaria anos mais tarde como “Barracão Senhorial”176. Os estabelecimentos de exploração de borracha tentaram impedir que seus trabalhadores barganhassem a produção com atravessadores, fora da alçada da coercitiva relação patronal que se impunha. A conformação dessa conjuntura trouxe ainda mais desafios ao comércio ambulante, que além da desconfiança oficial também passou a enfrentar a concorrência e as reprimendas de seringalistas. Regras internas coagiam trabalhadores a venderem sua produção exclusivamente para os “donos” do seringal, retaliando transações com intermediários. Segundo estudo de David Macgrath, nesse contexto, os regatões encarnaram o papel de indesejáveis contrabandistas, comutados em piratas dos rios:

Aproveitando a resistência dos seringueiros às medidas cada vez mais coercitivas empregadas pelos seringalistas, os regatões penetraram nos seringais, comprando as “sobras da safra” direto dos seringueiros. Dessa forma, os seringueiros e regatões montaram uma resistência formidável à monopolização da atividade econômica pela elite local e

176 Cf. DA CUNHA, Euclides. Um paraíso perdido: reunião de ensaios amazônicos. Brasília: Senado

110 regional. Ganhando o ódio dos comerciantes e proprietários locais, os regatões frequentemente foram chamados de “piratas fluviais” na imprensa internacional da época e castigados por causa dos problemas que causavam aos seringalistas e comerciantes do interior177.

Conforme esboçado por David Macgrath, os trabalhadores podiam ser “aviados” pelos regatões em detrimento do “Barracão Senhorial”, negociando mercadorias em troca de borracha desviada do comprador principal. Tais agências demonstravam algumas das brechas existentes no sistema de aviamento sustentado nos seringais, que sofria com a concorrência sorrateira dos regatões. O comércio ambulante dos rios, mais uma vez, tomava um lugar indesejável, especialmente entre aqueles que perdiam dividendos com a exploração de borracha.

É importante destacar que os condenados negócios de regatões com seringueiros acompanhavam padrões prévios de sociabilidade tecidos com outras populações amazônicas. Mocambeiros, desertores e escravos fugidos de longa data enxergavam nos mascates fluviais possibilidades de romper estruturas de vigilância e disciplinarização assentadas na floresta, negociando produtos das matas longe da tutela e monopólio de senhores, administradores e chefes militares. Essas reflexões eram também extensivas às populações indígenas que atuavam como extratores de látex, incluso àquelas aldeadas. Em outras palavras, seringueiros entraram paulatinamente no rol de problemáticas inerentes ao tecido social amazônico oitocentista, somando-se as rugosidades pré-existências dos mundos do trabalho na floresta.