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Capítulo 1 Sobre o incógnito e o inculto: lastros históricos da frente de expansão

1.4 Trabalhadores migrantes e os perigos da indianização

Inconstantes e despreocupados dos sérios problemas da vida, preferem ao sedentário o trabalho nômada. Assim acodem contentes as imigrações periódicas que é de uso fazer todos os anos para a extração de seringa (borracha) ou do óleo de copaíba; para a recolta de salsaparrilha, da castanha ou do cravo; para a pesca do pirarucu ou da tartaruga. Não é a ambição que os leva, que não a têm. O dinheiro merece-lhes pouco. Mas a civilização, digo mal, a falta de educação, havendo-os degredado, encontra, nesses ajuntamentos periódicos, onde reina a maior licença, além da satisfação de terem herdado instinto nômada, a dos vícios a que mais dão-se: a bebedice, a dança, a devassidão, a vida fácil, em suma94.

91 FREIRE,. Da Língua Geral ao Português...op.cit. p.199.

92 Sobre a ideia de contra-teatro dos pobres, Cf. THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum: estudos

sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das letras, 1998. p.65.

93 HARRIS,. Rebellion on the Amazon...op.cit. p.70.

65 Para José Veríssimo, intérprete da vida amazônica dos oitocentos, os hábitos dos que se envolviam com o extrativismo não eram nada benfazejos. Nascido em Óbidos em 1857, Veríssimo teve a maior parte de sua vida situada entre Belém e o Rio de Janeiro, divulgando muitas questões sobre sua terra natal na Corte. Sua ilustração estava sintonizada com o ideário fin-de-siècle, apresentando-se como crítico dos costumes dos moradores da floresta. Em 1878, publicou Raças Cruzadas do Pará, pintando um quadro recheado de imagens ligadas à degeneração e ao pitoresco, abastecidas pelas teorias raciais em voga na época. Seu recorte incidia majoritariamente sobre os mestiços, cuja ascendência indígena trazia traços indesejáveis que supostamente poderiam influenciar outros com sua devassidão e nomadismo.

Para Veríssimo, o cotidiano dos envolvidos com a coleta de drogas da floresta era tido como fruto da falta de educação e derrota da civilização, pois constituíam ajuntamentos licenciosos que desrespeitavam a boa e sedentária disciplina do trabalho. O autor estava em sintonia com uma posição crítica que ganhava força na segunda metade do século XIX nas províncias amazônicas, que via com desconfiança a economia extrativista e buscava fomentar projetos voltados à agricultura. Esses intentos almejavam transformar o perfil produtivo local, ambicionando também mudanças na composição da força de trabalho disponível. Era preciso fixar mão de obra para melhor conduzir (e controlar) os trabalhadores.

Foi com essa tônica que inicialmente foi pensada a entrada de migrantes em terras amazônicas, para que ocupassem posições em colônias agrícolas encampadas pelo Estado e pela Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas. Grande parte do contingente dos adventícios era de origem nacional, especialmente vindos de outras províncias do Norte, como Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco95. Houve também a entrada de um pequeno número de africanos livres, produto de apreensões posteriores à proibição do tráfico de escravos em 1831, distribuídos entre obras públicas e particulares sob precários contratos96. Essas pessoas travaram contato direto com a

95 Cf. CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Nem sina, Nem acaso: a tessitura das migrações entre a

Província do Ceará e o território amazônico. (1847-1877). Fortaleza, Dissertação de Mestrado em História Social, 2011.

96 Cf. SAMPAIO, Patrícia Melo. Mundos Cruzados: etnia, trabalho e cidadania na Amazônia Imperial. In.

Anais do XXV Simpósio Nacional de História, Fortaleza, 2009; MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos livres no serviço público: trabalho compulsório (até) nas fronteiras do Império. In: XXII Simpósio Nacional de História, João Pessoa, 2003; MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

66 frente de expansão em curso, ajudando também a conformá-la. Novos ingredientes foram adicionados às complexas tramas já existentes, que agora passavam a contar com ainda mais personagens.

Logo no início da década de 1850 podem ser encontrados nos extratos policiais a presença desses sujeitos presos por variados motivos, que envolviam embriaguez, brigas, pequenos furtos e, claro, deserções do trabalho97. Os africanos livres e os demais adventícios passaram a dividir celas com índios, escravos e fugitivos militares, e gradualmente foram também sendo associados como parte dos problemas da disciplinarização da força de trabalho amazônica.

No caso específico dos migrantes nacionais, havia uma expectativa sobre sua sedentarização em colônias agrícolas, mais tarde percebida como malfadada. A agricultura vinha ganhando força como alternativa para sanar os problemas identificados com o extrativismo que, visto inicialmente com bons olhos, passou com o tempo a ser associado às culturas indígenas e ao redesenho dos sentidos da subida dos rios feito por parte dos “indesejáveis”. Contando com avultados investimentos, o projeto agrícola mobilizou uma significativa parcela dos capitais da empresa de navegação de Mauá, que ficou responsável por implementar colônias ao longo do percurso dos vapores. Mesmo reclamando do possível comprometimento dos lucros, o Barão disponibilizou capitais da ordem de 30:000$000 para gastar com os empreendimentos, que garantiram, entre 1853 e 1858, segundo os cálculos da empresa, a entrada de cerca de “mil trabalhadores robustos”98.

A presença desses migrantes era bastante desejável pelas províncias do Pará e Amazonas, que ansiavam, além de mais força de trabalho, pela ação de obreiros que ajudassem a incutir hábitos enredados em valores que pusessem em causa os “mofinos” costumes locais. Mas, as fontes indicam que nem todos os recém-chegados se comportavam de acordo com as expectativas das autoridades e de particulares. Muitos passaram a compartilhar com os indígenas as imagens de um comportamento potencialmente suspeito, não correspondendo às expectativas sobre sua tenacidade e

97 Nos extratos policiais do Jornal Estrella do Amazonas da década de 1850 são corriqueiras as referências

sobre a presença desses personagens, assim como nos ofícios sobre prisões e solturas enviados pelos Delegados aos Presidentes da Província. Dessa última tipologia analisamos dois livros de manuscritos “sobreviventes” no Arquivo Público do Amazonas, dos anos 1854 e 1859.

98 Grêmio Literário Português - GLP (Belém-PA). Setor de periódicos. Gazeta Oficial, quinta-feira 27 de

67 apego ao trabalho. Foi registrado em muitas ocasiões o fracasso de colônias de trabalhadores implementadas com esforços do Estado, abandonadas justamente por migrantes que seguiam rumo aos altos rios em busca das possibilidades abertas com a frente de expansão. Na colônia da Ilha das Onças, por exemplo, cercanias de Belém, o correspondente da Gazeta Oficial do Pará culpava os cearenses pela debilidade do empreendimento:

Fecundidade das terras, proximidade de um grande mercado, e fácil meio de transporte, são circunstâncias que poucas vezes se encontram reunidas, e que tornam o local desta colônia um dos melhores da província. Porém aí o empresário lançou colonos do país, pela maior parte do Ceará (...) não ativos nem perseverantes no trabalho. Com tais elementos o progresso era impossível99.

Essa problemática adicionava ainda mais elementos à questão. Se de um lado havia o indicativo de enquadrar e disciplinarizar as populações do interior com o intuito de melhor aproveitar sua força de trabalho, por outro existia certa angústia quanto aos novos problemas e prejuízos causados pelos recém-chegados. Alguns migrantes além de desapontarem com sua falta de “perseverança” na labuta, ainda davam mostras de sua recusa à matrizagrícola apregoada nas colônias. As autoridades, dissonantes à tendência do fortalecimento do extrativismo, queriam assegurar a sedentarização e racionalização da produção de gêneros alimentícios. Todavia, seguindo reflexão de Barbara Weinstein, “a complexidade e vastidão do ambiente da Amazônia não apenas atuou no sentido de frustrar esforços de inovação técnica e ‘racionalização’ da produção, como ainda agiu sobre as atitudes da população da região em relação à exploração dos recursos naturais”100.

O deslocamento de pessoas rumo aos seringais e outras explorações extrativas impunha-se como uma tendência que os esforços oficiais não conseguiam frear. O Cônego Francisco Bernardino de Souza, em suas Lembranças e Curiosidades do Valle do Amazonas, publicadas em 1899, afirmava que mesmo diante dos possíveis benefícios da produção agrícola muitos preferiam “a morte nos insalubres e desconhecidos longínquos rios, tão abundantes de ouro, representado na goma elástica, como de riscos e

99 GLP, setor de periódicos. Gazeta Oficial, quinta-feira 20 de maio de 1858.

100 WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920. São Paulo:

68 privações, do que o cultivo da lavoura”101. Seu testemunho corroborava com os reclames apresentados nos Relatórios de Presidentes de Província, que algumas décadas antes já se queixavam do apelo do extrativismo e de uma consequente “perversão dos costumes”102:

A irresistível tendência da população a empregar-se de preferência na colheita de produtos que a natureza espontaneamente oferece, é um mal, cujas funestas consequências muitos começam felizmente a reconhecer: como sejam a falta dos gêneros alimentícios, o abandono dos povoados, a disseminação dos habitantes, o estrago das florestas, as moléstias, a miséria geral; sem falar na perda do ensino, e perversão dos costumes, e em tudo mais que resulta dos hábitos da vida nômade (...).103

Embora esse cenário fosse composto majoritariamente por extratores nativos, estava em curso um processo que colocava os recém-chegados próximos da “incúria” dos habitantes locais. Não era raro classificar os migrantes que abandonavam seus postos de trabalho como desertores, figurando como alvos de investigações policiais. Esse é um indício de como era tratada a questão do trabalho em terras amazônicas, sendo o caráter compulsório da faina também extensivo aos adventícios.

Além de alocados em colônias, alguns migrantes também eram contratados para servirem em obras públicas, que, assim como os indígenas, africanos livres e outros habitués dessas modalidades de trabalho, eram encarados com dureza e firme vigilância. Nesse sentido, em agosto de 1854, o Chefe da Polícia do Amazonas recebeu um ofício do Presidente da Província que dava conta de uma fuga ocorrida numa obra pública no Pará. A intenção era deixar em alerta as forças policiais sobre os possíveis caminhos do trabalhador desertor, que, segundo suspeitas, tinha como destino os altos rios, rumo ao Peru:

Tenho a honra de acusar a recepção do ofício de V. Exª. de ontem nº 11 em que V. Exª. me remeteu os sinais do carapina Fideliz Correia de Barroz que havendo sido contratado no Ceará para trabalhar nas obras públicas da Província do Pará dali desertou em princípio do mês de julho p. pº. havendo desconfiança de que se dirigiu para o Peru. Passo a recomendar às autoridades policiais desta Província a captura dele, caso apareça em qualquer parte desta Província.

Secretaria da Delegacia de Polícia do Amazonas, 10 de agosto de 1854.

101 SOUZA, Cônego Francisco Bernardino. Lembranças e Curiosidades do Valle do Amazonas. Belém:

Typographia do Futuro, 1899. p.58

102 Relatório do Presidente de Província do Amazonas Adolfo de Barros Cavalcanti de Albuquerque

Lacerda, 1864. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/73/000042.html

103 Relatório do Presidente de Província do Amazonas Adolfo de Barros Cavalcanti de Albuquerque

69 Manoel Gomes Correia de Miranda, Chefe de Polícia104.

O cearense aparece em meio a um montante de documentos que tratava de fugas de escravos, índios e desertores militares, certamente aproximados e percebidos de modo semelhante. A fuga do migrante foi lida como parte do contexto problemático do caldeirão social dos mundos do trabalho amazônicos. Sua possível rota de fuga contava com um longuíssimo percurso, que deveria enfrentar a subida de algum dos inúmeros rios que levavam até a nação vizinha.

Mesmo não sabendo mais detalhes de seus caminhos, é possível inferir, com base em casos semelhantes, que Fideliz Correia de Barros pode ter recorrido a artifícios utilizados por vários fugitivos, que muitas vezes passavam despercebidos e eram engajados em outras localidades com nomes trocados e contando trajetórias insuspeitas. Essa indumentária de saberes fazia parte do rol das táticas de várias outras pessoas que, inteirados do rarefeito alcance da fiscalização oficial, traçavam seus itinerários anonimamente misturando-se ao movimento geral rumo aos altos rios.

Como os vapores eram alvos mais visados pela fiscalização, a maior parte desses percursos era feita em canoas ou montarias. Acima da capital do Amazonas, onde os vapores ainda não circulavam regularmente, ainda reinavam as inumeráveis canoas e igarités, embarcações a remo e a vela muitas vezes incólumes diante das tentativas de controle. As movimentações desses pequenos barcos iam acelerando o desenho de uma zona de contato105, que colocava no mesmo palco extratores de drogas, transgressores e populações locais, onde várias culturas se imbricavam. Dialogando com Sidney Mintz, é possível entrever ainda que apesar das regras do jogo da frente de expansão estarem assentadas em nível oficial, o jogo em si era vivido e articulado no cotidiano da floresta, ganhando formulações novas diante das novas demandas, muitas vezes contrárias aos interesses do Estado e de particulares106.

104 APEAM. Livro da Polícia – ofícios expedidos pela delegacia, 1854.

105 A autora Mary Louise Pratt articula sua noção de zona de contato sofisticando alguns aspectos do

conceito de fronteira. Trabalhando essencialmente com literatura de viagem, passa longe de enxergar apenas a indumentária do testemunho europeu, buscando evidências da presença do mundo dos colonizados na construção das narrativas dos viajantes. Ao posicionar-se perante a situação de fronteira, a autora não elucida somente o “lado” que avança, mas busca explorar também as divergências/trocas entre os projetos sociais em contato, destacando a importância das suas dimensões transculturais. PRATT, Mary Louise. Imperial Eyes: travel writing and transculturation. London and New York: Routledge, 1992.

70 Estava posto um campo aberto de disputas sobre o funcionamento do deslocamento de fronteiras, onde os subalternos exerciam papel significativo. Se inicialmente havia boas expectativas com a expansão, aos poucos, com o processo em curso, foram ficando explícitas suas dimensões conflituosas. Por isso, especialmente ao longo da década de 1850, o frenesi das novas movimentações de pessoas e mercadorias era publicizado de maneira ambígua em vários editoriais de periódicos.

O Estrella do Amazonas, folha da Cidade da Barra do Rio Negro, pode nos servir de janela para acompanhar tais leituras indecisas. Ao tratar, por exemplo, da chegada do Vapor Rio Negro em 1854, alardeou com otimismo o desembarque de seus inúmeros passageiros, entre os quais havia muitos desejosos de “fixar a sua residência nesta Província, abrindo casas de comércio, ou aplicando-se na extração de borracha, que é abundantíssima, como se sabe, em muitos lugares dela, e alcança hoje um elevado preço”107. Contudo, os elogios do jornal transmutavam-se em apreensão quando “outros” personagens apareciam entre as mesmas movimentações. Alguns anos depois, em 1858, a subida dos rios já era apontada sob outro prisma: o rio Purus aparecia como um “Teatro de Atrocidades”, devido à “imensidade de pessoas que todos os anos ali se reúne em número de quase mil (...) para extração de castanha, estopa, óleo, salsa, faturação da manteiga e peixe” proporcionando “toda a sorte de distúrbio contra a propriedade e a segurança do cidadão pacífico e laborioso”108.

Seguindo as movimentações rumo ao Purus, o Estrella do Amazonas trazia notícias sobre as ocorrências policiais nos sertões do Amazonas. Seus leitores eram alertados sobre assassinatos e fugas, que vinham sendo relacionados ao aumento da busca pelas drogas da floresta. Ficava implícito nesse tipo de notícia que os fluxos de negociantes poderiam esconder personagens indesejáveis. Num desses episódios o jornal noticiou o assassinato de um jovem com um tiro de espingarda, associando a fatídica ocorrência ao contexto de grande circulação de pessoas que fugia ao controle das autoridades policiais. Com tantas idas e vindas, com tantas áreas de exploração se multiplicando, ficava difícil garantir a “honra e a segurança” dos moradores do rio:

Consta-nos que no rio Purus no lugar Surára fora assassinado com um tiro de espingarda um moço, cujo nome ignoramos (...) Aquele ponto (da Província) concorre não pequeno número de pessoas que vão a

107 LHIA. Estrella do Amazonas, 18 de julho de 1854. n. 96-97, p.2 – digitalizado. 108 LHIA, Estrella do Amazonas, 26 de junho de 1858. n. 302, p.4 – digitalizado.

71 negócio; além disso acresce que não havendo segurança individual, e polícia no lugar, concorrerão para ali desertores, escravos fugidos e outros criminosos para se refugiarem; portanto é de justiça que a Polícia estenda suas vistas até lá, e procure garantir a vida, os bens e a honra à esses negociantes, e aos pacíficos e laboriosos moradores daquele rio.109

A cena problemática esboçada pelo periódico ganharia ainda mais força com o aumento da chegada de migrantes nas áreas de exploração. Para a nascente Província do Amazonas a entrada de trabalhadores era plenamente desejável, desde que funcionasse sob total controle. Sem obter o sucesso planejado, vide o esvaziamento das colônias agrícolas e outros empreendimentos, foi sendo articulado um esforço de disciplinarização do movimento refratário, que dificilmente seria decifrado por agentes não afeitos aos arranjos sociais concatenados no interior da frente de expansão. Uma das saídas foi examinar possibilidades de cooptar indivíduos entre os “potencialmente suspeitos”, de modo a incorporá-los aos quadros administrativos.

Sabia-se que o contingente de adventícios não era homogêneo, assim como suas razões para deslocar-se em direção ao território amazônico. Alguns deles, destoando do quadro geral conflitante, tornaram-se aos poucos signatários de demandas oficias, servindo como peças chave diante dos desafios de disciplinar os deslocamentos. Assim, pessoas “condenáveis” passaram a preencher cargos públicos em localidades do interior, servindo como interlocutores da causa do Estado.

Esse foi o caso do cearense João Gabriel de Carvalho e Mello, emigrado em 1847, que se engajou em Belém como freguês da casa aviadora do português Elias José Nunes da Silva110. Em 1854, a convite de seu patrão, seguiu para o Amazonas, abrindo feitorias no Purus, contando com crédito e licença para recrutar os trabalhadores que achasse necessário. De olhos atentos às oportunidades trazidas com a criação da província, a casa comercial que lhe financiava estava acompanhando um movimento que gradualmente foi fortalecendo a cadeia do sistema de aviamento, que se destacou como principal vetor de financiamento das explorações extrativista. Contando com mercadorias

109 LHIA. Estrella do Amazonas, 15 de maio de 1858, n.291, p.3 – digitalizado.

110 O aviamento significava uma prática econômica baseada no endividamento ou crédito que mantinha a

cadeia de produtores das “drogas do sertão amazônico”, aviando-os, ou seja, fornecendo-os alimentos, armas, roupas, dentre outros gêneros, em troca dos produtos conseguidos na floresta. Esse sistema também estava atrelado ao transporte de trabalhadores para a floresta, a quem posteriormente eram cobrados os encargos da viagem, pagos em trabalho. C.f. WEINSTEIN,. A borracha na Amazônia....op.cit.; SANTOS,. História econômica da Amazônia...op.cit

72 a crédito, faltava conseguir força de trabalho e localizar áreas no rio que detivessem boas quantidades das drogas cobiçadas à época.

Os detalhes da trajetória de João Gabriel podem ser analisados através de duas cartas que ele endereçou a família, em 1854 e 1858, respectivamente. A primeira foi escrita em Belém e enviada ao pai, José Gabriel de Mello, e tratou dos detalhes de sua ida pela primeira vez à Cidade da Barra. A missiva confidenciou suas expectativas sobre a viagem, falando sobre as mercadorias que carregava e dos altos preços das passagens para embarcar no Vapor Rio Negro. Após chegar em seu destino, concomitante à investigação de áreas para exploração, João Gabriel exerceu o ofício de regatão, fazendo um duplo trabalho de buscar fontes de gêneros e negociar suas quinquilharias. Tais experiências