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5 REFLEXOS DO AVANÇO DO SINCRETISMO E A MULTIPLICIDADE DE FUNÇÕES DENTRO DE UM PROCESSO ÚNICO

5.2 MULTIFUNCIONALIDADE DO PROCESSO SINCRÉTICO E CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À TUTELA

5.2.1 Noções introdutórias sobre a multifuncionalidade do processo civil sincrético

O que se almejou demonstrar neste trabalho, até o presente momento, foi que a repartição do processo civil em espécies processuais autônomas não é a melhor forma de organizá-lo, quando se mostrar cabível a combinação de processos. Exigir autonomia rígida para casos nos quais é plenamente aceitável o sincretismo processual é sinônimo de imposição de formalismos prejudiciais aos jurisdicionados e comprometimento do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva e tempestiva.

Qual seria, então, a melhor forma de organizar o processo, nesses casos? Bem, ao analisar o avanço do sincretismo processual, em busca de tal solução, duas opções (ou critérios organizacionais) parecem, inicialmente, viáveis para estruturar o processo numa concepção unificada e sincrética: 1) a multiplicidade de fases; 2) a multifuncionalidade processual.

Sejam vistas cada uma delas. A primeira consiste na ideia de um processo único, desenvolvido num desenrolar de fases na busca da justa solução para a lide apresentada ao Estado-juiz. Alexandre Freitas Câmara prefere utilizar o termo “módulos processuais”, ao afirmar que as mudanças legislativas acarretaram um abandono, por completo, do modelo liebmaniano, restando desaparecida a autonomia do processo de execução de sentença. Em síntese, na visão do autor, o que se tem, agora, é um processo misto, sincrético, desenvolvido em duas fases (ou módulos processuais): o módulo processual de conhecimento e o módulo processual executivo.353

Ocorre que, quando se dá uma miscigenação de fases, quebrando a

353 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 14. ed. rev. e atual. até a Lei

linearidade natural do processo, melhor se faz recorrer à sua visão como um conjunto de funções a serem exercidas pelo Estado-juiz a fim de que se garanta ao jurisdicionado a segurança inerente ao devido processo legal e a efetividade inerente ao mais amplo acesso à ordem jurídica justa. Nessa visão, o juiz há de exercer suas funções apenas quando necessárias à resolução da lide, sejam elas concomitantes, antecedentes ou únicas (bastando-se por si mesmas).

A multifuncionalidade, como critério organizacional, desconstrói, assim, uma série de argumentos que sustentava a autonomia processual em casos nos quais era exigida uma multiplicidade de processos para solucionar uma única lide. Interessante observar que tal critério pode ser construído sob o fundamento das remotas origens do direito medieval, quando se concebeu a ideia dos officium iudicis, que compreendia todas as atividades que o juiz devia exercer em virtude do seu ofício.

É preciso esclarecer, contudo, que negar a autonomia de processos não é negar a autonomia das funções.354 O que se opõe, neste trabalho, não é ao exercício das “funções” de conhecimento, execução, cautelar ou antecipatória, mas sim, à multiplicidade de processos em uma única lide. Em outros termos, o que se entende como viável para a definitiva unificação do processo civil brasileiro é a estruturação do processo único e, quando envolver mais de uma função, sincrético. A crítica situa-se, insiste-se, na desnecessidade de múltiplos processos para solucionar uma única lide.

Cumpre observar, ainda, que diferente da clássica tripartição do processo civil brasileiro em processo de conhecimento, processo de execução e processo cautelar, aqui se trabalha com função cognitiva, função executiva, função cautelar (não- satisfativa) e função antecipatória (satisfativa).

À função cognitiva será atribuído o papel de verdadeira base processual, na medida em que é expressão da atividade jurisdicional por excelência. Em outros termos, é preciso ter em mente que não é possível “jurisdizer” sem conhecer, ainda que de forma sumária.

Nesse diapasão, Sergio Bermudes, ao comentar o processo de

354 Nesse sentido é a afirmação de Kazuo Watanabe, no que tange à bipartição do processo em

espécies: “O binômio ‘cognição-execução’ continua a ser utilizado pelos doutrinadores pra explicar a natureza da atividade do juiz e a utilidade e o alcance dos provimentos diferenciados. Uma coisa, porém, é o binômio ‘cognição-execução’ e outra a dicotomia ‘processo de cognição (ou de conhecimento) – processo de execução’” (WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000, p. 47).

conhecimento, afirma que as duas outras espécies, embora autônomas, são tributárias dele. É que, nelas se encontram muitas das instituições típicas do processo de conhecimento e sobre elas incidem vários dos seus princípios e normas como, por exemplo, o disposto no art. 598 do Código de Processo Civil, que determina que ao processo de execução se aplicam, subsidiariamente, as disposições que regem o processo de conhecimento. Além disso, na opinião do autor, o mesmo fenômeno ocorre em sede de processo cautelar, mesmo na ausência de norma explícita.355 Ora, se as outras espécies processuais são “tributárias” da de conhecimento, ou seja, se há tamanha interdependência, certamente não há que se falar em “autonomia” (pelo menos não no rigor defendido pela doutrina tradicional).

Feitos esses esclarecimentos, é preciso observar que a multifuncionalidade pode ser identificada como a técnica mais capaz de se associar harmonicamente à ampla concretização do direito fundamental à tutela jurisdicional tempestiva, efetiva e adequada, já que por meio dela o processo deve ser visto como um conjunto unificado de atividades que podem ser revezadas de acordo com a necessidade do caso concreto.356

Essa associação, contudo, precisa ser inserida no contexto do neoprocessualismo, na medida em que, como visto no primeiro capítulo deste estudo, a tutela jurisdicional efetiva deve ser compreendida sob a égide das dimensões axiológicas desse fenômeno, que se consubstanciam na busca pelo equilíbrio entre segurança e efetividade, trazendo intrínseca a preocupação com a duração razoável do processo. Enfim, percebe-se que essa contextualização pode ser aprofundada com uma investigação da harmonia entre a multifuncionalidade e o equilíbrio entre ativismo e garantismo processual.

355 BERMUDES, Sergio. Introdução ao processo civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 94. 356 Nesse sentido, cumpre observar as palavras de Glauco Gumerato Ramos: “[...] a míngua de

pureza funcional que justifique a existência autônoma de três tipos diferentes de ‘processos’, parece- me que a estrutura tripartida carece de real utilidade, e, se assim o é, a artificialidade da existência estrutural de três ‘processos’ diferentes, ao invés de simplificar o manejo do processo civil, acabou por burocratizá-lo em demasia. Em miúdos: penso que não é mais legítimo pensar em ‘processo’ de conhecimento, de execução ou cautelar, dado o prejuízo que isso causou à própria funcionalidade do direito processual; processo é atividade de poder representada na relação processual – rectius,

num único “processo” – seja realizada ora atividade cognitiva, ou atividade executiva, ou atividade cautelar, o que variará de acordo com o momento procedimental e com a tutela

jurisdicional pretendida e adequada ao caso concreto.” (RAMOS, Glauco Gumerato. Sentença substitutiva da declaração de vontade. In: NEVES, Daniel Amorim Assumpção et al. Reforma do

CPC: leis 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006. São Paulo: Editora

5.2.2 Multifuncionalidade e equilíbrio entre ativismo processual e

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