• Nenhum resultado encontrado

PARADIGMÁTICAS NO PENSAMENTO DO DIREITO

2.3 NEOCONSTITUCIONALISMO E CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO

2.3.1 Panorama do neoconstitucionalismo

O neoconstitucionalismo desponta como um novo modelo jurídico e político que orienta o Estado Constitucional de Direito na contemporaneidade, configurando- se como fruto da infiltração do pós-positivismo no Direito Constitucional, e alavancando mudanças paradigmáticas que geram uma nova percepção da constituição e de sua função na interpretação jurídica.

Luís Roberto Barroso destaca-se no estudo do neoconstitucionalismo e, no esforço de reconstituir, de maneira objetiva, a trajetória percorrida pelo Direito Constitucional nas últimas décadas, na Europa e no Brasil, aponta-lhe três marcos fundamentais: o histórico, o filosófico e o teórico.38

O marco histórico do novo Direito Constitucional na Europa continental foi o constitucionalismo que se desenvolveu após a Segunda Grande Guerra Mundial, redefinindo o lugar da constituição e a influência do Direito Constitucional sobre as instituições contemporâneas. Numa busca pela congruência entre constitucionalismo e democracia, surge uma nova forma de organização política que pode ser identificada como Estado democrático de direito, Estado constitucional de direito ou Estado constitucional democrático.

Nesse sentido, Antonio Enrique Pérez Luño, ao discorrer sobre o processo de positivação dos direitos fundamentais, afirma que o término da Segunda Guerra Mundial, após a experiência das ditaduras totalitárias, reproduziu a necessidade de renovação constitucional em correspondência com as novas exigências políticas e

38 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. (O Triunfo

Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, março/abril/maio, 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 21 de novembro de 2010, p. 2-12.

sociais. Segundo o autor, no período imediatamente após o fim da guerra, os Estados passaram a desenvolver novas constituições, que apresentam analogias na estrutura e no conteúdo, de tal modo que quase todas podem ser vistas como um ato de fé no regime democrático e uma declaração de direitos fundamentais, incluindo os direitos sociais que ocupam uma posição central. Nesse contexto, destacam-se as Constituições francesas, de 1946 e 1958, a Constituição italiana, de 1948, e a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 1949.39

No Brasil, o marco histórico do neoconstitucionalismo foi a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização que ela ajudou a protagonizar. Com efeito, a Carta Constitucional de 1988 representou um papel fundamental na transição do Estado brasileiro de um regime autoritário para o Estado democrático de direito, e tem propiciado o mais longo período de estabilidade institucional da história republicana do país.

O marco filosófico do neoconstitucionalismo é o pós-positivismo jurídico, que, como visto nesse trabalho, está associado à superação histórica do jusnaturalismo e ao fracasso político do positivismo jurídico, que abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado acerca do Direito, sua função social e sua interpretação, reaproximando o Direito da Moral e da Filosofia.

O propósito dos tópicos anteriores desse capítulo foi exatamente pontuar a dicotomia existente entre jusnaturalismo e juspositivismo, e suas relações com a ideia de direito justo, destacando a ascensão do pós-positivismo como superação dessa dicotomia, e pontuando as mudanças paradigmáticas alavancadas por essa corrente jusfilosófica no direito contemporâneo, traçando, na medida do possível, um panorama das correntes do pensamento jurídico sob a égide do surgimento do pós- positivismo jurídico, que se afigura como marco filosófico para o desenvolvimento do neoconstitucionalismo.

Bem compatível com essa infiltração do pós-positivismo no constitucionalismo contemporâneo, é o conceito de direitos humanos apresentado por Antonio Enrique Pérez Luño, segundo o qual esses direitos aparecem como um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e

39 LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 9. ed.

internacional. Com efeito, nota-se que a definição proposta pretende conciliar duas grandes dimensões que integram a noção geral dos direitos humanos: a exigência jusnaturalista quanto à sua fundamentação; e as técnicas de positivação e proteção que dão a medida de seu exercício. Supera, portanto, a dicotomia entre jusnaturalismo e positivismo jurídico, numa nítida perspectiva pós-positivista.40

Mas, estabelecido esse marco filosófico, é preciso destacar ainda os marcos teóricos do neoconstitucionalismo, que se traduzem em três grandes transformações que subverteram o pensamento tradicional no que tange à aplicação do Direito Constitucional, quais sejam:

1) Reconhecimento de força normativa à constituição: trata-se de uma das mudanças paradigmáticas atribuídas ao século XX, que confere à constituição o status de norma jurídica, superando a caracterização essencialmente política desse documento, que figurava no modelo anterior como mero convite à atuação dos poderes públicos.41

Atualmente, o reconhecimento da força normativa da constituição constitui uma premissa para o seu estudo. A norma constitucional, como norma jurídica que o é, é dotada de imperatividade e a sua inobservância deve acarretar mecanismos de coação.

No contexto europeu, o divisor de águas para tal mudança de perspectiva foi a Segunda Guerra Mundial, destacando-se a Alemanha e a Itália como países precursores na atribuição de força normativa às suas Constituições. No Brasil, esse fenômeno com veemência na Constituição de 1988.

2) Expansão da jurisdição constitucional: consiste na transição do modelo de supremacia do Poder Legislativo (inspirado na doutrina inglesa e francesa) para o da supremacia da constituição (inspirado na experiência americana), que envolve a

40 LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 9. ed.

Madrid: Tecnos, 2005, p. 50-53.

41 Sobre essa temática, destaca-se a obra de Konrad Hesse “A Força Normativa da Constituição”,

traduzida para o português por Gilmar Ferreira Mendes que, ao apresentá-la aos leitores brasileiros, traça uma noção geral do que vai ser abordado pelo autor, nos seguintes termos: “Esse trabalho do Professor Konrad Hesse que apresentamos ao leitor brasileiro, base de sua aula inaugural na Universidade de Freiburg-RFA, em 1959, é um dos textos mais significativos do Direito Constitucional moderno. Contrapondo-se às reflexões desenvolvidas por Lassale, esforça-se Hesse por demonstrar que o desfecho do embate entre os fatos reais do Poder e a Constituição não há de verificar-se, necessariamente, em desfavor desta. A Constituição não deve ser considerada a parte mais fraca. Ressalta Hesse que a Constituição não significa apenas um pedaço de papel, como definido por Lassale. Existem pressupostos realizáveis (realizierbare Voraussetzungen), que, mesmo em caso de eventual confronto, permitem assegurar a sua força normativa” (HESSE, Konrad. A Força Normativa

da Constituição (Die normative Kraft der Verfassung). Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto

constitucionalização dos direito fundamentais, cuja proteção passa a caber ao Poder Judiciário.

Por conseguinte, a partir da década de 40, inúmeros países europeus passaram a adotar um modelo próprio de controle de constitucionalidade, associado à criação de tribunais constitucionais, figurando como precursores, mais uma vez, a Alemanha e a Itália, tendo alastrado-se por toda a Europa, de modo que atualmente, somente o Reino Unido, Holanda e Luxemburgo ainda mantêm o padrão de supremacia parlamentar. No Brasil, a jurisdição constitucional expandiu-se, notadamente, a partir da Constituição de 1988.42

3) Desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação constitucional: seguindo a mesma linha de raciocínio do delineamento de uma nova hermenêutica desenvolvida no contexto pós-positivista, a interpretação constitucional, ao não se contentar apenas com as técnicas tradicionais de interpretação, invoca um verdadeiro sincretismo metodológico.

Assim, ante as especificidades das normas constitucionais, a doutrina e a jurisprudência têm sistematizado um elenco próprio de princípios aplicáveis à interpretação constitucional, situando-se entre eles: o da supremacia da constituição, o da presunção de constitucionalidade das normas e dos atos do Poder Público, o da interpretação conforme a constituição, o da unidade, o da razoabilidade e o da efetividade.

Incluem-se entre as categorias da nova interpretação constitucional, as cláusulas gerais, os princípios, as colisões de normas constitucionais, a ponderação e a argumentação. Nas cláusulas gerais utilizam-se termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de interpretação a ser complementado pelo intérprete à luz do caso concreto.

42 Boaventura de Sousa Santos observa a manifestação desse fenômeno no Brasil, correlacionando

com a conscientização da população no que tange aos seus direitos e ao aumento da exigibilidade. Com efeito, afirma o autor: “No caso do Brasil, mesmo descontando a debilidade crônica dos mecanismos de implementação, aquela exaltante construção jurídico-institucional, tende a aumentar as expectativas dos cidadãos de verem cumpridos os direitos e as garantias consignadas na Constituição, de tal forma que, a execução deficiente ou inexistente de muitas políticas sociais pode transformar-se num motivo de recurso aos tribunais. Acresce o facto de, também a partir da Constituição de 1988, se terem ampliado as estratégias e instituições das quais se pode lançar mão para invocar os tribunais, como, por exemplo, a ampliação da legitimidade para a propositura de ações directas de inconstitucionalidade, a possibilidade de as associações interporem ações em nome dos seus associados e a consagração da autonomia do Ministério Público. A redemocratização e o novo marco constitucional darão maior credibilidade ao uso da via judicial como alternativa para alcançar direitos” (SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008, p.18).

Essa mesma perspectiva reflete-se no que tange aos princípios (reconhecidos como normas numa perspectiva pós-positivista), sendo que cabe ao intérprete realizar a definição do conteúdo de cláusulas como a dignidade da pessoa humana, razoabilidade, solidariedade e eficiência. Ou seja, aqui também nota-se a importância do intérprete na definição concreta de seu sentido e alcance.43

Sobre as colisões de normas de normas constitucionais, aplica-se aqui o pensamento de Robert Alexy apontado na abordagem do pós-positivismo, e segundo o qual os conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, ao passo que as colisões entre princípios ocorrem em uma dimensão de peso. Nessa perspectiva, não basta ao intérprete apenas o exercício da subsunção ou a utilização dos critérios tradicionais de solução de conflitos normativos - hierárquico, cronológico e da especialização -, mas o exercício de uma atividade de sopesamento. 44

Por último, e ainda na mesma ótica já apontada na abordagem do pós- positivismo, para assegurar a legitimidade e a racionalidade de sua interpretação, num plano argumentativo, o intérprete deverá: fundamentá-la em uma norma constitucional ou legal; utilizar-se de um fundamento jurídico aplicável a casos semelhantes, não se valendo de casuísmo; atentar-se para as consequências práticas que a sua decisão produzirá no mundo dos fatos.

Enfim, por tudo quanto exposto nota-se que as mudanças paradigmáticas alavancadas pelo neoconstitucionalismo influenciam diretamente na interpretação e aplicação do direito, que devem acompanhar as tendências do Direito Constitucional contemporâneo, calcando-se numa base axiológica e argumentativa, sob a égide da força normativa da constituição, que ilumina todo o sistema jurídico com os seus preceitos. E é desse complexo de fenômenos que resulta o processo de

43 Sobre a importância dos princípios nessa nova dogmática da interpretação constitucional,

Humberto Ávila afirma que: “Os estudos de direito público, especialmente de direito constitucional, lograram avanços significativos no que se refere à interpretação e à aplicação das normas constitucionais. Hoje, mais do que ontem, importa construir o sentido e delimitar a função daquelas normas que, sobre prescreverem fins a serem atingidos, servem de fundamento para a aplicação do ordenamento constitucional - os princípios jurídicos. É até mesmo plausível afirmar que a doutrina constitucional vive, hoje, a euforia do que se convencionou chamar de Estado Principiológico. Importa ressaltar, no entanto, que notáveis exceções confirmam a regra de que a euforia do novo terminou por acarretar alguns exageros e problemas teóricos que têm inibido a própria efetividade do ordenamento jurídico. Trata-se, em especial e paradoxalmente, da efetividade de elementos chamados de fundamentais - os princípios jurídicos” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 23).

44 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São

constitucionalização do Direito.

Outline

Documentos relacionados