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CAPÍTULO 1 – CONSIDERAÇÕES GERAIS

1.5 DO REFERENCIAL TEÓRICO DA PESQUISA

1.5.3 Notas conceituais a respeito do tráfico de drogas

Por sua vez, para que se promova um correto enquadramento geopolítico do tráfico de drogas enquanto fenômeno territorial, fez-se necessária a realização de notas a respeito de um possível conceito atribuível aquele fenômeno. Esta empreitada, no entanto, representou um problema teórico significativo, uma vez que a imprecisão conceitual do termo droga se denota

como um reflexo de incoerências políticas do tratamento do tráfico pelos Estados-Nação adeptos das políticas de proibição, inclusive, o Brasil.

Conforme anotou Araújo (2012), a imposição normativa do que seria droga, de maneira contraditória, aliás, pela não consideração de outros psicotrópicos como o álcool, o tabaco e, até mesmo, o café, revelou a adesão de verdadeiros valores culturais e morais ao termo jurídico. Fato é que, ao menos no campo jurídico, droga é o que a lei diz ser droga.

Em termos oficiais, o Brasil conceitua o que seria droga a partir da Portaria nº 344/98, do Ministério da Saúde, concernente ao Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Este documento classifica droga como toda e qualquer substância ou matéria-prima que tenha finalidade medicamentosa ou sanitária, diferenciando-a, para fins legais, do conceito de entorpecente que corresponde à qualquer substância que possa determinar dependência física ou psíquica relacionada, como tal, nas listas aprovadas pela Convenção Única sobre Entorpecentes, fielmente reproduzidas nos anexos deste Regulamento Técnico (BRASIL, 1998).

Embora a terminologia legal mais coerente a ser adotada fosse tráfico de entorpecentes, atribuiu-se uma maior popularidade científica e social à terminologia tráfico de drogas (ARAÙJO, 2012). Igualmente, tem-se que as drogas podem ter efeitos semelhantes aos dos entorpecentes, sendo estes, assim, espécies das primeiras. Em função disso, o trabalho resguarda preferência pelas terminologias droga e tráfico de drogas.

Por sua vez, algumas imprecisões devem ser apontadas em relação aquele conceito oficial: primeiramente, a legislação parece ignorar consequências concretas relativas ao uso das substancias entorpecentes, sequer diferenciando-as quanto a sua potencial natureza estimulante, depressora ou perturbadora do sistema neural (ARAÚJO, 2012). Em segundo lugar, não há uma metodologia clara, quantitativa ou qualitativa, a respeito dos critérios de classificação e definição das substancias proibidas ou permitidas – mesmo que para fins de estudo científico (RODRIGUES, 2004).

E, ainda, constata-se que a escolha política das substancias proibidas, ao menos no discurso oficial, acaba se restringindo a uma classe médica, que, juridicamente, não deteria mandato legal, como aquele conferido, constitucional e ideologicamente, ao Poder Legislativo para formalizar normas em nome do povo (RODRIGUES, 2004).

Nestes termos, a partir de uma permissão genericamente confiada por lei, norma penal em branco, admite-se que um preceito de elaboração obrigatória pelo Poder Legislativo seja complementado pela vontade reputadamente científica de agentes médicos-sanitaristas vinculados a uma classe política hegemônica de um certo momento histórico (PEREIRA,

2012), assim, indicados para ocupar as cadeiras de um órgão administrativo vinculado à Presidência da República, o Poder Executivo.

Estas imprecisões, certamente, se explicam em função do próprio interesse econômico historicamente vinculado à gestão territorial das drogas no âmbito nacional e mundial, que utiliza a proibição como questão política e econômica de satisfação de interesses proeminentes nas relações sociais de poder (WEIGERT, 2010), tal como importante elemento de uma política de segregação territorial e gestão da pobreza (WACQUANT, 2015).

Igualmente, a proibição estabelecida através de mecanismos legais, também se explica pelo fato de que o direito penal é uma subciência do direito que funciona como um instrumento criativo, fabricante, inventivo de condutas vedadas. Por meio dele, ações socialmente tidas como indesejadas passariam a ser categorizadas sob uma dada tipologia e, assim, legalmente proibidas, sob um critério muito mais político do que jurídico (QUEIROZ, 2012). “É a lei, portanto, que cria o crime, é a lei que cria o criminoso. Numa só palavra: só é crime o que o legislador diz que é” (QUEIROZ, 2012, p. 36).

E a definição do que é crime, num segundo momento, também perpassa pela adequação de um fato à uma norma proibitiva por parte do sistema judiciário (D’ELIA FILHO, 2014), num processo de dupla seletividade penal: por intermédio de uma conduta proibida por lei (primeira seleção), vedam-se condutas que, na prática, podem ser identificadas e reprimidas ou não, conforme os sujeitos ou interesses envolvidos (segunda seleção), conforme o julgamento pragmático dos órgãos policiais e judiciários.

Noutras palavras, embora a lei seja objetiva, a classificação de um sujeito e sua rotulação conforme as categorias de cidadão ou de criminoso são atividades que serão realizadas sob certo grau de subjetividade policial e judiciária.

A própria tipologia criminal, inclusive, que diferencia a atividade tráfico de drogas, voltada especificamente a substâncias proibidas, do contrabando, voltada à demais espécies de produtos proibidos, em geral (SILVA, 2013), já encerra uma diferenciação de natureza muito mais simbólica do que técnica, como ocorre no caso do contrabando de cigarros falsificados, onde há imprecisa fronteira diferencial do tráfico de drogas.

Deste modo, é certo que a legislação não se afigura como melhor parâmetro para definição conceitual do que seria o tráfico de drogas, o que torna necessária a realização de um esforço zetético que revele as aspirações sociais, culturais e históricas que resultam da aplicação da norma jurídica em apreço (BITTAR, 2016).

Considerando a lição de Lima (2014), confirma-se que a atual normatização em torno do tema (lei nº 11.343/06) não contém um expresso conceito do que seria o crime em questão.

Diante disto, coube à jurisprudência, ou seja, a um conjunto de reiterados julgamentos das cortes pátrias, conformá-lo às condutas típicas tratadas no teor dos artigos 33, caput e §1º, 34, 36 e 37 da referida lei antidrogas (LIMA, 2014).

De uma análise dos tipos penais em menção, por sua vez, observa-se que os “preceitos primários” constantes da lei nº 11.343/06 buscam a proibição de várias atividades (importar, fabricar, vender etc.) voltadas a um único e genérico fim (o mercado, a comercialização), demonstrando que o conceito jurídico de tráfico de drogas, conforme ensina Queiroz (2012, p. 214), se materializa como um “crime de múltipla ação” que acomoda (ou tenta acomodar), sob uma tipologia, diversas ações inerentes a uma atividade dinâmica e multifacetada. Afinal, antes de ser um crime, o tráfico de drogas é um fenômeno histórico-social mais amplo e representativo, merecendo, portanto, um olhar igualmente abrangente.

Segundo afirma D’elia Filho (2014), seria mais fácil compreender o tráfico de drogas como uma ilegalidade de mercado, cuja repressão, mesmo justificada em função de uma reputada proteção do direito à saúde se realiza muito mais sob uma ótica de mercado, ou seja, como uma estratégia de poder aplicada sob um propósito econômico e seletivo.

O tráfico é, desta forma, uma atividade comercial que, em dado momento da história, foi, por fatores políticos determinados, a partir de interesses econômicos estatais e supra estatais, declarada como prática criminosa, não pelo seu caráter comercial em si, mas, pelas substancias envolvidas na comercialização.

Ainda sob um esforço semântico, constata-se que a literatura costuma fazer referência à terminologia tráfico de drogas não só como atividade, mas também um conjunto de indivíduos que, de forma organizada ou não, promovem o comércio das substancias legalmente proibidas em lei.

O tráfico de drogas, nesta perspectiva, seria sinônimo de empresa ou, como certamente definiria Raffestin (1993), o tráfico de drogas pode ser comparado a uma organização de mercado, caracterizável pelos seres e coisas que possui, utilizando-os como trunfos nas disputas territoriais econômicas. O diferencial em relação qualquer outra organização, somente, advém da ilicitude dos produtos ligados à sua atividade.

Assim, num enquadramento à teoria adotada neste trabalho, o tráfico de drogas, como conjunto de indivíduos de posse de bens, ou, ainda, como conjunto de empresas que, de forma ilícita, promovem o mercado em todas as suas fases de substancias politicamente proibidas pelos Estados-Nação, certamente, pode ser genericamente definido como ator territorial (RAFFESTIN, 1993).

Como tal, se vale de estratégias e mediatos em busca de sua territorialização como mecanismo de sobrevivência na sociedade de consumo pós-moderna, do século XXI, adequando-se as suas peculiaridades e, sobretudo, exercendo resistências contra as ações estatais proibitivas.