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O tráfico de drogas como agente sintagmático e suas estratégias

CAPÍTULO 1 – CONSIDERAÇÕES GERAIS

1.5 DO REFERENCIAL TEÓRICO DA PESQUISA

1.5.4 O tráfico de drogas como agente sintagmático e suas estratégias

Na qualidade de organização ou empresa tem-se que o tráfico de drogas, na esteira do mencionado ensinamento de Vilas Boas (2015), manifesta estratégias territoriais que buscam o rompimento de fronteiras e obstáculos (isotrópicas), de forma diversa às estratégias adotadas pelo Estado, que se desenvolvem sob uma ótica preponderantemente zonal (anisotrópicas).

Como agente sintagmático que age sob uma lógica de mercado, afinal depende do consumo para sobreviver, o tráfico busca o estabelecimento de estratégias múltiplas de resistência às ações de combate realizadas e propugnadas pelo Estado, assim como, estratégias de expansão e dominação de novos territórios para permitir uma maior comunicação e circulação tanto de seus agentes como de seus produtos.

E, nos moldes dos empreendimentos do século XXI, pautados no consumo em massa e na fluidez da produção e comercialização (BAUMAN, 2001), o tráfico também adota práticas ostensivas de comércio em oligopólios nacionais e transnacionais, bem como, por intermédio de varejistas locais (D’ÉLIA FILHO, 2014).

Machado (2008), por exemplo, defende que a lógica geopolítica da agricultura não se aplica ao tráfico internacional de drogas, enquanto, de fato, países pobres e em desenvolvimento se configuram como países exportadores de drogas como cocaína e maconha, que exigem condições climáticas e territoriais específicas de plantio de suas espécies originárias, de outro lado, há predomínio dos países ricos no ramo da exportação de drogas sintéticas, o que se dá por conta da participação da indústria farmacêutica e pela detenção de tecnologias por estes últimos; ao passo, todos detém mercados consumidores apropriados às suas respectivas realidades. Noutras palavras, a realidade do mercado molda a territorialidade do tráfico.

Por outro lado, seu comportamento territorial também é conformado por constantes estratégias de resistência, diante da repressão legalmente praticada em função das políticas proibicionistas adotadas pela maior parte dos Estados-Nação.

Bagley (2013) aponta que a intervenção internacional armada, sobretudo dos Estados Unidos na América Latina sob a ideologia da guerra às drogas, propiciou transformações territoriais que ora representavam a ascensão de novas centralidades (efeito balão) comerciais das drogas, como no caso do desmantelamento de cartéis colombianos, que, como

consequência, gerou o surgimento de novos mercados no Peru e Bolívia. O tráfico como agente sintagmático transnacional se manteve e resistiu às investidas.

Ainda conforme o mesmo autor, as mesmas intervenções também ocasionaram estratégias de divisão de centralidades em vários microcosmos comerciais do tráfico (efeito barata), de modo a dificultar a ação territorial repressiva (BAGLEY, 2013).

No Brasil, por sua vez, desde o final do século XX, constata-se a existência de estudos que descrevem este comportamento territorial do tráfico. Souza (1996), por exemplo, apontava a lógica reticular do tráfico e sua forte estratificação e divisão interna de funções nos moldes de um verdadeiro empreendimento comercial, assim como, sua lógica zonal, estabelecida em níveis locais, nacionais e internacionais.

Barreira (2014), de forma muito semelhante à Bagley (2013), defendeu que o único êxito do Estado do Rio de Janeiro em sua estratégia político-militar de instalação das Unidades de Polícia Pacificadora, teria se dado somente em relação ao afastamento do mercado do tráfico de certos locais economicamente interessantes ao turismo e serviços, sem contudo, eliminá-lo da realidade carioca.

De outro lado, deve-se lembrar que o território, enquanto elemento que também é condicionante das relações de territorialidade, uma vez que alberga uma série de fenômenos políticos e econômicos, também detém forte influência sobre a territorialização do tráfico.

Zaluar afirma que (2004), embora o tráfico seja uma realidade em zonas de qualquer nível socioeconômico das cidades, afinal, sempre há potenciais consumidores em quaisquer delas, é nas regiões mais pobres que a repressão territorial é mais sentida.

Como destacado por Haesbaert (2014), Volochko (2015) e Ribeiro (2015), a apropriação do espaço como bem de consumo, a segregação social da pobreza as áreas mais precárias dos ambientes urbanos, o fechamento territorial e o isolamento dos centros de produtos e serviços, promoveu uma ruptura territorial que, associada à impossibilidade de captação populacional pelos mercados de consumo pós-modernos e da criação de estigmas sobre a figura da pobreza (BAUMAN, 2008; GARLAND, 2008; WACQUANT, 2015), institui a imagem de zonas perigosas às regiões pobres das cidades.

Em casos como o do Rio de Janeiro e São Paulo, em verdade, estas áreas precarizadas chegaram a albergar grandes organizações do tráfico de drogas, como o Comando Vermelho - CV, o Primeiro Comando da Capital – PCC, e, os Amigos dos Amigos – ADA (AMORIM, 2013). Contudo, na maioria das vezes, as zonas pobres se afiguram como sede de pequenos revendedores, que encontram no tráfico de drogas a alternativa inviabilizada pelo marcado

formal de trabalho e que, nessa qualidade, são extremamente vulneráveis à atuação proibicionista (D’ÉLIA FILHO, 2014).

CHAGAS (2014), por exemplo, aponta esta realidade de precarização, pobreza e tráfico de drogas em relação a cidade de Belém do Pará, afirmando também a partir da teoria de Raffestin, que a ausência do poder estatal é determinante para a instalação do tráfico de drogas em áreas pobres da cidade, conforme os fatores de segregação urbana já apontados acima.

E é especialmente a estes pequenos revendedores varejistas, sujeitos a um processo de desterritorialização precária (HAESBAERT, 2014), que se dispensará atuação política conforme uma lógica jurídico-penal do Estado, duplamente seletiva e geradora de um superencarceramento seletivo (GARLAND, 2008; WACQUANT, 2015), que, por sua vez, ocasiona uma segunda desterritorialização precária da população pobre, agora, no degradante contexto do cárcere (SANTOS, 2007).

Aliás, é importante assinalar que as prisões desde o contexto do século XX, podem ser compreendidas como verdadeiros depósitos humanos despreocupados com qualquer propósito ressocializador prático, a despeito das simbólicas declarações contrárias em lei (FOUCAULT, 2015). Em verdade, o ambiente carcerário apenas serviria ao propósito de segregação de camadas sociais indesejáveis, bem como, para justificar uma classe violenta que, uma vez não ressocializada, voltará futuramente à delinquência, tornando, assim, imprescindível a existência de instrumentos policiais autoritários que, na prática, só servirão à defesa de interesses patrimoniais específicos de grupos socialmente favorecidos (FOUCAULT, 2015).

É ilusória, então, a concepção de que o encarceramento inibirá a propensão ao delito: diante de um contexto de exclusão social, onde os locais criam uma relação simbólica entre o cidadão e o território (CLAVAL, 1999), no seio de um ambiente no qual os signos de vida e representação de um papel social (RAFFESTIN, 1993) serão totalmente diferenciados daqueles criados pelo Estado junto ao restante da sociedade, o aprisionamento acabará por construir simbolismos totalmente diferenciados, incentivando uma falta de identidade e/ou uma repulsa pelos demais valores sociais ditos comuns.

Surgirão as resistências (RAFFESTIN, 1993) e, por sua vez, a adoção de estratégias que buscarão a retomada do poder pelos atores atingidos pelo conflito de forças havido nesta relação naturalmente dissimétrica.

Sendo o tráfico a mais atraente alternativa de inserção, mesmo que ilícita e irregular, no âmbito da sociedade de consumo, acaba por haver uma adesão voluntária à conduta criminosa, que, diante da impossibilidade de resistência natural à territorialidade imposta, se torna, se houverem outras, a mais viável das escolhas a disposição dos encarcerados.

Mesmo no contexto do cárcere, surgem estratégias de imposição de desígnios e de resistência que tendem a imitar a lógica capitalista do mundo livre (DIAS, 2013). A organização dos espaços, mesmo no cárcere, é objeto de apropriação e comercialização, sujeitando internos a relações dissimétricas e desterritorializantes (ARRUDA; SÁ, 2006). A redução dos fluxos de informação ocasiona um transbordamento de violência nas relações (SANTOS H., 2007) e novas estratégias de sobrevivência vão sendo reinventadas a cada dia.

Por sua vez, diante do descaso registrado pelo Estado em relação ao sistema penitenciário nas últimas décadas, associado ao processo de superencarceramento e à inserção do país na nova lógica do tráfico de drogas, a ausência do Poder Estatal propiciou o desenvolvimento de outros níveis estratégicos entre os detentos (DIAS, 2013).

Desde a década de 1980, com a já mencionada inserção do país nos circuitos do tráfico internacional de cocaína, interessava aos envolvidos com o tráfico de drogas estabelecer o controle, mesmo que a partir do contexto carcerário, das rotas (redes) e áreas (zonas) de transporte e comercialização dos produtos ilícitos, como forma de permanecer no tabuleiro das relações locais, regionais e transnacionais do tráfico (DIAS, 2013).

Estratégias foram elaboradas e postas em prática. E foram bem-sucedidas: primeiramente, porque importaram na manutenção de redes, a despeito do encarceramento de seus respectivos agentes (AMORIM, 2011, 2013) e, em segundo lugar, porque possibilitaram o atingimento de condições concretas de enfrentamento estatal, a exemplo das disputas territoriais que ora se observam, sob a genérica expressão crise carcerária.

Diante de toda a exposição realizada, pode-se inferir que o tráfico de drogas, aqui já compreendido como empresa, nos termos da teoria de Raffestin (1993) é um agente territorial sintagmático que age independentemente da (e, na maior parte das vezes, contrariamente à) vontade Estatal, conforme objetivos próprios.

Em seu intento de dominação de um território notadamente comercial, afinal, visa a obtenção do lucro em uma sociedade permeada pela lógica do consumo, cujas práticas reproduz em suas ações, empreende estratégias e se utiliza de variados mediatos para consecução de seus objetivos e neutralização de adversários.

No entanto, confrontado pelo desígnio proibitivo, também, fortemente motivado por questões político-econômicas, o tráfico acaba adaptando suas estratégias para um enfrentamento mais efetivo daqueles que se colocam à frente de seus planos, e, considerando o rigor da atuação estatal proibitiva, acabam elaborando formas de resistência também manifestamente violentas e juridicamente ilegais.

Especialmente no contexto territorial precário do cárcere, onde, sobretudo para os mais pobres não há mais nada a se perder, é natural que estas estratégias importem numa ruptura com os valores do Estado, agente territorial adversário, o que, decerto, explica em muito a atual da crise carcerária e o sucesso do tráfico de drogas, inclusive no contexto do cárcere, a despeito da proibição imposta legalmente e da declarada guerra às drogas.

Como se vê, a teoria de Raffestin (1993) constitui uma forte base teórica para superação do paradigma político-jurídico de compreensão do tráfico, que acaba por propugnar planos de ação repressivos e bélicos, ao passo que, por permitir a compreensão de outras lógicas e ações externas à dinâmica meramente estatal, proporciona uma análise mais eficiente do problema.

Ao fim, retirando-se o véu de uma visão meramente estatal da questão, e, partindo-se de teorias que concebam o fenômeno do tráfico como ele realmente é, uma realidade de mercado marcada por jogos de disputa de poder, certamente, será possível admitir o surgimento de análises mais compromissadas em dar nova significância à história e dissimetria das relações sociais, e, assim, encontrar soluções realmente efetivas ao problema, além da mal-sucedida repressão inadvertida e seletivamente aplicada.