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3. REQUEBRANDO ARQUÉTIPOS E CONSTRUINDO HEROÍNAS

3.7 NOVOS MITOS HÍBRIDOS

Historicamente, um das consequências da arte e expressão cultural é proporcionar estratégias para desmontar supremacias e levantar contradições55. Jeff Chang, artista, autor e ativista norte-americano que escreve sobre o fenômeno social do Hip Hop, afirma que “a mudança cultural sempre precede a mudança política” (LAVIN, 2011). Ele estuda como a cultura popular tem sido eficaz no longo prazo, onde uma campanha política pontual deixa de ter efeitos profundos. Numa conferência no Festival Sundance nos EUA, ele apresentou a seguinte analogia:

“Como artistas, nos perguntamos, o que a arte pode fazer? O que o filme pode fazer? O que a cultura pode fazer para mudar o país e mudar o mundo?”

Nesse ponto, ele mostrou uma enorme onda taitiana na tela. Ele pediu ao público que pensasse na mudança como sendo esta onda - continuamente movendo-se e moldada por forças invisíveis.

"Quando as pessoas falam sobre mudança", ele disse, "muitas vezes elas se concentram apenas em política, em eventos", como uma eleição ou a assinatura de leis. Mas a mudança não é sobre eventos políticos discretos. É um processo cultural contínuo” (thelavinagency.com, 2011).

A mitologia, como construção humana, tem o papel de manter as supremacias culturais e, ao mesmo tempo, estar em jogo constante com o mundo da arte. A arte se forma nos sonhos coletivos e manifesta os medos, as possibilidades e as urgências que se tornam visíveis e criam chances de mudar a realidade, ressaltando outros valores. Olhando de novo para Haraway (2000), considerem-se algumas características subversivas dos ciborgues, que vislumbram um futuro irônico e talvez ajudem a construir narrativas míticas alternativas da deusa do mar e da sereia, apontando para dispositivos ou comportamentos desconstrucionistas. Haraway indica a blasfêmia como postura prudente para um ciborgue: “Blasfêmia não é apostasia”, ela protege da hegemonia moral e, ao mesmo tempo, “insiste em comunidade” (HARAWAY, 2000, p. 291). A blasfêmia fala contra algo - um tabu - e rejeita o sagrado que também se internaliza. No contexto atual, o sagrado não são as figuras míticas tradicionais (Iemanjá ou sereia), mas a supremacia artificial que nos absorve, o deus do shopping, dos produtos baratos e sintéticos e das marcas. A blasfêmia grave dos tempos atuais será rejeitar a dominação dos plásticos - esse deus falso - que a humanidade carrega dentro de si. Tem-se que começar a recusar os milhões de toneladas de lixo plástico

55 Definição de Rosa Lee Goldberg em Performance Art (2011) que argumenta por uma estética que também tem função social de provocar mudanças e questionamentos.

que já existem na biosfera e que nunca reentrarão no ciclo orgânico novamente. Tem- se que arquitetar esculturas blasfemas psíquicas e literais desse lixo para reposicionar a nossa adoração para construções alternativas. Reaparece a ironia, ao confrontar-se com a impossibilidade de extrair esse plástico de nossas vidas e nossos corpos e, ao mesmo tempo, parar de consumi-lo.

Nessa junção, precisa-se da blasfêmia e de novo sentido do sagrado, ao mesmo tempo. O velho deus do progresso só gera lixo. Reciclagem não é suficiente. Que tal reciclar as deusas que foram mortas ou muito mal amadas, a ponto de nos abandonarem? A sereia, animal da mitologia, da ciência e da ficção, agora, em virtude de morar no mar, também é composta de plástico, é um ciborgue que transita em lugar contemporâneo. Ela tem relação direta com a deusa do mar. Ela é a mulher- maravilha, com escamas e cauda, uma sereia vigilante, membro da milícia de uma “Iemanjá pós-moderna”. Ela é “resolutamente comprometida com a parcialidade, a ironia, a intimidade e a perversidade. Ela é oponente, distópica e completamente sem inocência” (HARAWAY, 2000, p. 292). O ciborgue e a sereia compartilham espaço de duplicidade produtiva, segundo Haraway:

O imaginário do ciborgue pode sugerir uma saída do labirinto de dualismos no qual temos explicado nossos corpos e nossas ferramentas a nós mesmos. Este não é um sonho de uma linguagem comum, mas de uma heteroglossia poderosa e infiel. É um imaginário de uma feminista falando um idioma secreto para injetar medo nos circuitos de neoliberalismo. Significa construir e destruir máquinas, identidades, relações, histórias futurísticas. Ainda que as duas estejam interligadas numa dança espiral. Eu prefiro ser um ciborgue a uma deusa (HARAWAY, 2000, p. 316).

Essa “sereia vigilante” tem uma missão: “desmascarar o irracionalismo” da negação de mudanças climáticas e suas causas, usando mitologia ciborgue para imaginar poeticamente um futuro onde não seremos extintos, mas onde conseguiremos viver embaixo de outros mares, reconstruindo comunidades dos escombros plásticos, talvez erguendo pirâmides feitas de copos descartáveis, lixo eletrônico e garrafas PET. Ela ficará de pé na cauda nos congressos. Ela será órgão político. Ela será capaz de resistir, porque ainda não pode ser codificada. Ela é pós- internacional, pós-marxista, pós-folclore e pós-plástica: é a mulher-peixe, que transcende aquilo que reunifica com os poderes criadores das Iemanjás e faz lembrar a reverência que se deve ter com a mãe das águas. Enfim, somos todos “filhos-peixes”.

Não é inquérito simples, quando se fala de arte e ativismo, e se torna cada vez mais problemático ao se agregarem contextos globais de mudança climática, impostos por múltiplos esforços, além do controle e do tempo do próprio artista, como a supremacia dos plásticos. Apesar dessas dificuldades, pode-se mencionar a

performance e o ambientalismo como estratégia real e projeto artístico, cujo foco

principal é criar metáforas visuais e performáticas para sublinhar o impacto que o lixo, no seu sentido mais amplo, tem sobre o ambiente natural (praias e mares) e no próprio ser humano. Em seu tratado sobre radicalização e reimaginação de novas fronteiras físicas e psíquicas nas Américas, The New World Border (A Fronteira do

Novo Mundo), o artista Guillermo Gomez Pena caracteriza esse novo mundo:

Eu me oponho à velha dicotomia colonial do Primeiro Mundo/Terceiro Mundo como a noção mais pertinente do Quarto Mundo - um lugar conceitual, onde os povos indígenas se reúnem com as comunidades da diáspora. No Quarto Mundo, há muito pouco espaço para identidades estáticas, nacionalidades, línguas fixas e ‘puras’, ou tradições culturais sagradas. Os artistas e escritores que habitam o Quarto Mundo têm um papel muito importante: elaborar o novo conjunto de mitos, metáforas e símbolos, que irá localizar-nos dentro de todas estas cartografias flutuantes (GOMEZ-PENA, 1996, p. 7).

Esse texto foi escrito pensando nas restrições impostas pela política muito física de fronteiras nacionais e como o corpo transita nesses espaços. Não obstante, seu conceito de Quarto Mundo é o que o artista aporta para um momento de flutuações planetárias, como a crise climática, que tem provocado ressonância tremenda nesta pesquisadora, tanto como artista e performer quanto como ser humano. Talvez o ativismo de que se precisa no momento poderá combinar a retórica irônica do ciborgue de Haraway (2000), a elaboração mítica do artista do Quarto Mundo, de Gomez-Pena (1996), e as epistomologias do sul global de Sousa Santos, pois escapa do enredo da dominação e da fidelidade a um grupo preestabelecido.

Neste projeto se está criando uma sereia vigilante: um arquétipo super-heroína que não quer abandonar a fonte materna. Ela é blasfema relativamente aos devotos tradicionais e contra aqueles que poluem e sujam as praias e os mares por razões diferentes. Ela fala de várias espécies ao mesmo tempo, utiliza os métodos modernos para chamar a atenção para a falta de respeito que se está tendo com a mãe dos mares e, aos sábados, ela nada até a cidade de Roma, para tomar chá com o Papa Francisco. Não se trata de criar um novo mito para a humanidade de uma vez só, mas de estar em

busca de novos mitos metafóricos, que possam ajudar a encontrar caminho para o outro lado dessas supremacias cruéis.

3.8 BIOGRAFIA DE SIRENA JONES: DESAFIOS E PERDAS ECOLÓGICAS NO