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2. CONFIGURAÇÕES MÍTICAS PARA A IDADE ANTROPOCENO

2.1 PRÓLOGO: CADÊ A SEREIA?

“É bastante conhecida a passagem da Odisséia de Homero em que Ulisses encontra as sereias e, desejando ouvi-las sem enlouquecer, faz-se amarrar ao mastro do navio em que viaja, não sem antes alertar seus remadores para que tapem os ouvidos com cera e, desse modo, possam continuar a travessia normalmente. Essa história encanta muita gente há muito tempo. Foi Kafka, no entanto, quem percebeu a ingenuidade de Ulisses, a de acreditar que o poder do canto das sereias poderia ser contido por cera e cordas”. (Márcia Tiburi, 2016)

“A Terra não é nossa Criação. Não tem respeito por nós. Nós não temos nenhuma utilidade para a Terra. E sua vingança não é o fogo chegando nas cidades, mas o fogo no céu. Algo mais feroz do que Marcus Garvey está montado no redemoinho. Algo mais terrível do que todos os nossos antepassados africanos está subindo com os mares”. (Ta-Nehisi Coates, 2015) “Invisible Fish23: Invisible fish swim this ghost ocean now described by waves of sand, by water-worn rock. Soon the fish will learn to walk. Then humans will come ashore and paint dreams on the dying stone. Then later, much later, the ocean floor will be punctuated by Chevy trucks, carrying the dreamers’ descendants, who are going to the store”. (Joy Harjo, 1989)

Este capítulo pretende utilizar a lente da crise da mudança climática atual na dimensão cultural da mitologia, para examinar mitos vivos e futuros que podem ajudar a navegar nas águas turbulentas do possível colapso de nossa “casa comum”24.

2.1 PRÓLOGO: CADÊ A SEREIA?

2 de fevereiro de 2016, Rio Vermelho, Salvador da Bahia, Brasil.

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Joy Harjo é poeta e membro da nação indígena Cree, localizada atualmente no Estado de Oklahoma, EUA. Peixes Invisiveis: Peixes invisíveis nadam neste oceano-fantasma agora descrito por ondas de areia, por pedras contornadas pela água. Então humanos chegam em terra e pintam seus sonhos na pedra morribunda. Depois, muito depois, o chão desse oceano estará pontuado com caminhões Chevy, que carregam os descendentes dos sonhadores, que vão para o supermercado.

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“Casa Comum” é frase utilizada com frequência pelo Papa Francisco, na Carta Encíclica Laudato

Si’, publicada pelo Vaticano em junho de 2015. Considerada uma chamada ao mundo para elevar a

consciência global sobre as condições do meio ambiente e dos pobres, a encíclica aponta para a urgência de a humanidade construir, em conjunto, uma forma de lidar com a crise climática. O texto faz uma relação entre a humanidade e a sua casa comum - a biosfera - e lamenta a falta de cuidado que temos com ela. Não é pouco significativo que o Papa, a voz da mitologia católica, inclua esse novo capítulo na narrativa sagrada da Igreja Católica. Aqui, se vê uma revisão da mitologia atual, a fim de adaptá-la à nova idade, com ênfase em imperativo ético-ecológico.

Acordei na casa de familiares, no bairro Cidade Jardim, em Salvador. Eram 4h e 11min da manhã. Na noite anterior, tínhamos repensado a hora mais conveniente para nossa chegada à Praia dos Pescadores para ver a entrega do presente a Iemanjá. Decidimos sair de casa antes das 4h 30min. A ideia era chegar à praia de Rio Vermelho para ver a “alvorada” de fogos e a chegada da imagem santificada, que se faz cada ano como oferenda a Iemanjá. Esse presente, feito pelos devotos do Candomblé em nome do Orixá, é colocado do lado da Casa de Iemanjá numa barraca para receber as oferendas e depois é levado para o mar numa embarcação, para ser entregue à deusa do mar, com flores, pedidos e preces que as pessoas colocam sobre o presente durante o dia da festa. Chegamos às 4h 45min, exatamente quando os fogos de artifício começavam a estourar na praia, sinal da chegada do presente, que logo apareceu carregado nos ombros dos devotos especialmente escolhidos para essa função durante a manifestação.

Demorou um pouco para termos certeza de que o que estava vindo era mesmo o presente. O que se via na plataforma carregada pelos homens era a escultura de uma lustrosa baleia Moby Dick, azul brilhante com olhos pequenos e misteriosos. Sua boca de jubarte se abria de um canto a outro, num enorme sorriso não muito amistoso. A imagem era surpreendente para todos, pois não tinha os componentes usuais de santa ou sereia, ao contrário, era cem por cento bicho do mar, sem nenhuma característica humana. Os únicos enfeites com feição humana eram quatro esculturas de marujo, com cerca de 15 centímetros, colocadas em cada uma das quinas da plataforma. A reduzida dimensão dos marujos destacava a supremacia da baleia sobre as figuras humanas. Ausente estava qualquer característica ou símbolo de santa ou sereia, mais comum nas representações de Iemanjá.

A devota, a quem eu acompanhava, disse-me depois: “Eu ainda não me conformei com essa baleia”. Parecia a ela bizarro fazer os pedidos do ano a um “peixão” e admitiu que sua conversa espiritual estava muito vinculada à imagem da santa: figura de mulher com postura feminina e cara de imaculada. Penso que não foi só ela que sentiu a estranheza causada pela baleia naquela manhã; observei que os seres humanos talvez levem mais a sério uma criatura mítica (nesse caso em forma de santa ou sereia) do que um ser não humano, ainda que esplêndido de verdade25

25 Registre-se que, no ano 2018, o presente de Iemanjá oferecido na festa do Rio Vermelho no dia 2 de

Figura 6 - Presente de Iemanjá, Praia dos Pescadores, Rio Vermelho

Fonte: Rafael Teles, 2016.

A baleia é uma das mais poderosas criaturas do mar, certamente a maior, que, por si própria magnificência, deve ser importante referência para a majestade dos oceanos, digna seguramente de ser consorte de Iemanjá. A baleia foi, também, a base de uma das indústrias centrais do desenvolvimento comercial da Bahia, que, no século XIV, dependeu da produção de óleo de baleia como fonte de energia, entre outras aplicações comerciais. Mas, nessa manhã, ela estarreceu muita gente que queria venerar uma deusa e não um bicho. Essa festa é promovida pelos pescadores associados do Bairro do Rio Vermelho para pedir fartura na pesca e mares calmos (MARTINS, 2008) e celebra a deusa do mar. Pareceu-me, de fato, uma forma justa de reverenciar o mar através de uma entidade, cuja imagem muda com o tempo e com as necessidades do povo que vive em torno dele. A baleia, com todo seu poder, grandeza e história compartilhada com a nossa, não seria digna de reverência como representante dos oceanos ou, pelo menos, como vice da Deusa do Mar?

Figura 7 - Cartaz promovendo “presente ecológico” no dia de Iemanjá, 2 de

fevereiro, Rio Vermelho.

Fonte: Elizabeth Doud, 2016.

Soube depois que muitos devotos queriam que a baleia fosse construída de materiais biodegradáveis, atitude que faz parte de movimentos de conscientização ambiental em torno da festa com forte protagonismo da comunidade do Candomblé, mas os artesãos usaram fibra de vidro para construí-la nesse caso. A necessidade dessa conscientização decorre do fato de os componentes não biodegradáveis de muitos dos presentes acabarem virando lixo plástico e tóxico no mar, causando danos incalculáveis após as oferendas.

Quais são os símbolos que nos inspiram fé e esperança ou que representam o lugar de depositar o nosso voto de confiança em tempos de dificuldades e transição? De que são feitos esses objetos representativos dessa confiança? Quais são os deuses que nos podem salvar agora, diante do colapso da biosfera - a nossa fonte de renda como organismo - por nossas próprias mãos? Que glamour ou mostra de força é preciso para nos fazer ajoelhar diante de poder que não seja da própria autoria humana e mudar as nossas atitudes?