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3. REQUEBRANDO ARQUÉTIPOS E CONSTRUINDO HEROÍNAS

3.1 OCEANO: MÃE DE TODOS NÓS

Desde as lendas das civilizações e culturas ancestrais de cada continente, passando pela teoria da evolução de Charles Darwin, que propôs o mar como lugar de origem da “vida”, até as expedições dos oceanógrafos Sylvia Earle e Jaques Cousteau, que levaram as profundezas do mar ao público moderno através dos seus programas e filmes televisados, a importância, o protagonismo, a maravilha e o mistério do mar estão sedimentados em nossas subconsciências e nas narrativas escritas, orais e imaginárias, como espécie. Antes de ser provado pela ciência, sabe-se, pelos relatos de nossos antepassados e pelas cosmologias de muitos povos, que esse lugar é considerado nosso berço. E, a se acreditar na consciência coletiva de Carl Jung (1964), a humanidade tem internalizado, no curso da sua evolução, a impactante simbologia do mar, para que o significado dele viva sempre em seus sonhos, suas

49 Moira Finucane (Melbourne, Austrália) é artista de performance e criadora de um dos cabarets notórios do mundo. Saudada como "vulcânica" e "fascinante", ela denomina o que ela faz como “arte versus extinção”, uma prática informada por contos antigos do bem e do mal, de demônios, deuses e anjos; por taxonomia e ciência, e alimentada pela formação da Finucane em ciência ambiental, pelo trabalho durante uma década como especialista em gênero em desenvolvimento e anos dedicados a galerias, museus de artes devocionais em todo o mundo. Site oficial da artista: <http://finucaneandsmith.com/profile/>.

imaginações e suas expressões. Alanna Mitchell, na sua pesquisa jornalística sobre a ciência dos impactos do ser humano no sistema do mar, não consegue evitar esta contextualização mítica:

As profundezas parecem incognoscíveis. ao longo da história humana, vimos a superfície do mar enquanto imaginamos e tememos o que está abaixo. Ao longo dos tempos, através da lenda e do mito, criamos os oceanos como lar de monstros, moldadores de formas, demônios e perigo. Aqui estão os dentes abertos que nos fazem estremecer, os redemoinhos que nos sugam até lugares além da redenção, os predadores que não podemos nem ouvir nem cheirar (MITCHELL, 2009, p. 109).

O mar físico domina o território do Planeta, ficando, na maior parte, invisível, com existência sobretudo no imaginário do ser humano como espaço primordial. Inabitável para o ser humano e conhecido só superficialmente, exceto pelos cientistas peritos em Biologia Marinha ou por mergulhadores experientes, o mar é um mundo à parte, que tem brindado a espécie humana com sustento básico durante milhares de anos e guarda ainda muitos segredos para sua sobrevivência.

Nesta tese, a preocupação imediata é com os impactos no mar das indústrias humanas dos últimos dois séculos, período no qual se têm visto as maiores mudanças causadas principalmente por pesca, navegação transoceânica, exploração mineral e petrolífera, aquecimento e acidificação e, finalmente, lixo. Essas mudanças atingem a vida marinha em termos de biodiversidade e reprodução da população das espécies e a saúde dos seres vivos que conseguem adaptar-se às novas condições. Em particular, aborda-se a questão do bem-estar dos oceanos, utilizando o fenômeno da dispersão de plásticos em alto mar, nas praias e vias fluviais e contemplando-o como processo detrimental ao equilíbrio sustentável desse meio de vida e, por extensão, da vida humana.

O Capitão Charles Moore, marinheiro e pesquisador da Califórnia e diretor do conhecido Instituto de Pesquisa Marinha Alagita50 (Alagita Marine Research Institute), foi o primeiro a identificar, pesquisar e publicar dados sobre a dispersão

massiva de lixo plástico nos oceanos do mundo. No livro Oceano Plástico (Plastic

50 Desde 1999, o Instituto de Pesquisa Marinha Alagita tem sido a principal organização de pesquisa focada na poluição dos plásticos e seus impactos na vida marinha e nos ecossistemas. O fundador e diretor de pesquisa, capitão Charles Moore, foi o primeiro a descobrir a sopa de pedaços de plástico na corrente central do leste do Pacífico - conhecida por muitos como o Great Pacific Garbage Patch. Disponível em: <http://www.algalita.org>. Acessado em 12 de setembro de 2017.

Ocean) (2011), ele sintetiza essa justaposição da influência avassaladora e da natureza

incognoscível dos oceanos à nossa volta:

O oceano é o maior hábitat do Planeta e contém o dobro de espécies que se encontram na terra, com descobrimento de novas espécies cada ano. O oceano é o ventre do Planeta. O mistério da vida começou nessa sopa quente em um oceano muito mais jovem. Aí evoluiu durante três bilhões de anos antes que qualquer bicho, esporo ou semente se encontrou em terra firme e sobreviveu. Somos seduzidos pelo oceano, pagamos altos preços para poder viver na beira do mar, provamos nossa coragem dentro dele, e recuperamos os nossos espíritos nas praias. Coexistimos com ele, mas podemos realmente conhecê-lo? É como se fosse o planeta do lado (MOORE, C., 2011, p. 5).

A questão das mudanças climáticas interage de maneira complexa com o ecossistema do mar, e grande parte da pesquisa sobre o aquecimento global foi realizada em ambientes oceânicos, onde os impactos do aquecimento planetário e seus efeitos colaterais estão sendo observados e correlacionados com o aquecimento e a acidificação dos oceanos. Uma das funções mais importantes e estabilizadoras dos oceanos para o Planeta é sequestrar carbono e produzir oxigênio para a atmosfera, além de fornecer grande quantidade de substâncias para sustento do ser humano (entre muitos outros seres) e produtos comerciais postos em circulação nas economias do mundo. Os oceanos também têm funcionado como caminho de transporte e exploração entre os continentes faz séculos, o que tem sido básico para o desenvolvimento da civilização humana e produção de capital (MITCHELL, 2009).

Sylvia Earle, oceanógrafa e exploradora norte-americana, apresentou na série TED seu desejo de estimular movimento de massiva de proteção dos oceanos. Ao relembrar as pessoas da significância dos mares, ela se concentra no predomínio inescapável desse elemento na vida do Planeta:

Noventa e sete por cento da água da Terra é oceânica. Sem o azul, não têm o verde. Se o oceano não parece importante, imagine a Terra sem ele: Marte vem à mente. Sem o oceano, não existe o sistema que apoio à vida. Eu fiz uma palestra no Banco Mundial e mostrei a eles esta incrível imagem da Terra e disse: “Aí está! O Banco Mundial! É aí que estão todos os ativos!” E estamos nos acabando no luxo deles muito mais rápido do que os sistemas naturais podem reabastecê-los. Com cada gota de água que você bebe, com cada respiração, você está conectado ao mar, não importa onde você vive na Terra. A maior parte do oxigênio na atmosfera é gerada pelo mar, e, com o passar do tempo, a maior parte do carbono orgânico do planeta tem sido absorvido e armazenado lá. O oceano impulsiona o clima e o tempo, e estabiliza a temperatura. Forma a química da Terra. Cerca de 97 por

cento da vida na Terra têm seu lar no mar. Sem água, não tem vida (EARLE, 2010).

O ambientalista e jornalista irlandês George Monbiot há anos se especializa no estudo sobre a reintrodução de espécies quase extintas nos âmbitos de origem e espaços urbanos onde foram uma vez indígenas. Na parte da sua pesquisa que trata da megafauna e população das espécies marítimas, ele observa que se perdeu quantidade quase impensável de animais que viviam nos mares. A preocupação dele não é somente com a espécie que se perde no curso da extinção por razões da pesca exacerbada, mas com o efeito que essa perda tem na cadeia alimentar e evolutiva de um ecossistema. Fenômeno conhecido como “cascata trófica” acontece quando se elimina uma espécie no topo da cadeia alimentar cuja ausência (normalmente como predador) afeta de forma diversa e imprevisível todas as espécies abaixo na cadeia. A pesca tem dizimado diretamente a maioria dos grandes predadores dos oceanos, e isso tem prejudicado a abundância de maneira calamitosa no longo prazo para os seres humanos, não somente como pescadores, mas como seres que sentem os efeitos que isso provoca na biosfera habitada por eles (MONBIOT, 2015). Também o aquecimento, ainda que seja só de um grau Celsius até agora (GORE, 2017), pode mudar completamente condições de vida de animais marinhos críticos no sistema, que, como o fitoplâncton, provisiona alimento para outros mamíferos e peixes, e oxigênio para o Planeta inteiro (MITCHELL, 2009).

O capitão Paul Watson, intervencionista ambiental canadense e fundador do

Sea Shepherd Conservation Society, sublinha que o nível de depredação atual atinge,

de maneira letal, essa ecologia vital:

A acidificação e o aquecimento do oceano são muito sérios, e plásticos são parte disso. As Nações Unidas dizem que toda a pesca mundial entrará em colapso no ano de 2048 e recifes de coral poderão ter ido embora até 2025. [...] a mensagem que eu tento passar o tempo todo é simples: se os oceanos morrem, vamos morrer. Não vivemos neste planeta com um mar morto, pois o mar é a base de nossa existência. 80% do nosso suprimento de oxigênio vêm do fitoplâncton; os oceanos regulam a temperatura e o clima. Não importa se você vive no Himalaia ou no Colorado, isso te afeta. Proteger a diversidade biológica em nossos oceanos é a coisa mais importante hoje em dia51 (WATSON, 2011).

51 Depoimento do filme Eco-Pirate ou Ecopirata (2011). O filme trata do trabalho ativista do capitão e sua pesquisa de 35 anos no mar, enfrentando as indústrias petrolíferas e pesqueiras.

Watson, figura polêmica nas táticas de ativismo (recentemente cumpriu a segunda temporada do reality show sobre os confrontos do seu navio, Sea Shepard, em alto mar com pescadores comerciais), se expressa em tom alarmista, que incomoda não somente os comerciantes que ele denuncia, mas também o mundo científico, que está procurando há longo prazo a colaboração internacional em parceria com as indústrias privadas. Apesar dessa prática inconveniente, ele sintetiza a mensagem básica das projeções da maioria dos cientistas que estudam esses fenômenos marinhos, e pesquisadores, como Sylvia Earle, Naomi Klein e Alanna Mitchell, têm corroborado os dados sobre morte de corais e a perda da biodiversidade nos oceanos.

Ressaltando como o lixo não biodegradável impacta os organismos marítimos, o pesquisador brasileiro Thiago Vinicius Zanella inter-relaciona a saúde do mar com esse elemento:

Praticamente toda vida marinha pode ser colocada em risco pelo plástico. A ingestão desta sopa de polímeros sintéticos causa a morte de milhares de espécies todo ano. Ainda, por repelirem a água, a resina do plástico acaba atraindo diversos outros tipos de poluentes hidrofóbicos, principalmente compostos orgânicos venenosos como pesticidas (DDT) e bifenilos policlorados (PCBs), funcionando como verdadeiras esponjas de sujeira. Estas substâncias - além do próprio plástico, tratado com aditivos tóxicos como bisfenol A, que podem causar câncer e infertilidade - vão se acumulando ao longo da cadeia alimentar e podem chegar aos seres humanos. O principal animal que consome estes plásticos são os plânctons, base de toda cadeia alimentar marinha. Em coleta de plânctons foi detectado que mais de 60% das espécies capturadas continham traços e resquícios de polímeros (ZANELLA, 2013, p. 14478).

O ecossistema mar, subsistema do sistema planetário, está evidenciando sintomas de colapso em zonas de altos impactos, e, ao investigar esses problemas emergentes, a comunidade científica e ativista está conseguindo entender como se relacionam a mudança do clima e a poluição com problemas como diminuição de volume da pesca, a acidificação das águas, o branqueamento dos corais e o incremento da frequência, do tamanho e da força dos furacões nas zonas tropicais do Planeta. Naomi Klein disse que “o mar tem um jeito de esconder os piores segredos da humanidade” (2017, p. 65), mas já se sentem os custos econômicos desses impactos na indústria pesqueira e na reconstrução das infraestruturas danificadas durante desastres “naturais”, e seu preço indireto incalculável, nem tão secreto, como perda de biodiversidade e de hábitos para que a vida sobreviva (KLEIN, 2017). Aqui,

como no capítulo anterior, se vê como o dilema particular da saúde debilitada dos oceanos e da poluição do plástico nos mares e hidrovias destaca o nível de sobrecarga que se está causando nesse ecossistema. Paralelamente, a dependência do comércio de “coisas”, que é retroalimentada pela indústria do petróleo, simboliza e continua patologia de consumo que agrava essa circunstância. Sem a saúde dos oceanos, a verdadeira origem da espécie humana ficará prejudicada e terá, como muitas outras, um futuro sombrio.