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2. CONFIGURAÇÕES MÍTICAS PARA A IDADE ANTROPOCENO

2.5 A SUPREMACIA DOS PLÁSTICOS

Examina-se exemplo da produção da indústria humana e o papel enigmático do plástico na bioesfera. Observa-se também como os plásticos são fruto em parte da

mitologia das marcas e da dominação das indústrias petrolíferas no mercado de consumo massivo dos derivados do petróleo. A combinação química com o consumo e a conveniência e a identificação comercial têm produzido quantidades de lixo inéditas no mundo e levado a transformação biológica de organismos à extinção massiva irreversível de muitas espécies. O plástico está no topo da escala de consumo do ser humano; infiltrado na existência do dia a dia, provoca essa dialética na Terra e nos corpos entre o orgânico e o não biodegradável - feito de material que se acha inerte uma vez jogado “fora”. Nomeia-se aqui a supremacia dos plásticos na dominação bem sucedida deste material no Planeta. Essa supremacia se estabelece porque agora a dependência do ser humana do plástico é total, e ele ocupa o espaço da natureza e, eventualmente, de deus. O plástico, como objeto e matéria-prima de um mercado ubíquo e onipresente é herança da dominação global das indústrias de extração. Essas indústrias orquestram essa supremacia - que não podem ser concebidas fora da história mundial do imperialismo colonialista e do multinacionalismo industrial - como projeto econômico referenciado e colocado firmemente no Capitaloceno (MOORE, J.). Na raiz do predomínio petroquímico, estão o oportunismo hegemônico humano sobre a natureza e a dominação dos povos indígenas, animistas e politeístas que usa a mitologia cristã (principalmente, mais não exclusivamente) e sua moralidade antropocêntrica para justificar seus fins econômicos.

Esses projetos subscreveram o movimentos do Industrial Growth Societies citado por Joanna Macy e conceitos neoliberais de “crescimento sem limite” como força superior do mercado, que se baseia em energias de combustível fóssil e indústrias de extração. Esse mercado petrolífero também gera de subeconomias de guerra, em âmbito global, para manter o acesso ao petróleo e o controle sobre ele. O plástico, como produto e como artefato, é feito à base da petroquímica e está intimamente relacionado com as indústrias e empresas nacionais e privadas que exercem poder inigualável político e econômico sobre países e seres. O acesso ao petróleo e o controle de seus mercados garantem o futuro de produtos novos, cada vez mais baratos, para entrar no círculo vicioso de um mercado inesgotável de compradores de todas as classes sociais46. Enxerga-se essa sombra nefasta dos

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Naomi Klein, em Isso muda tudo: capitalismo versus clima, elabora a conexão inegável entre as economias capitalistas, suas raízes no imperialismo e no colonialismo, e a degradação progressiva do meio ambiente global. Seu discurso enfoca a contradição do ideal neoliberal de “progresso” e qualquer

plásticos agora e, depois de muitas décadas, têm-se evidências concretas dos estragos dessa substância.

O plástico chegou como milagre no começo dessa etapa de consumismo globalizado e democratizou o acesso a objetos de uso pessoal de maneira nunca vista antes, e a esse fato se deve seu sucesso. Susan Freinkel (2011) observa o papel social não hierárquico que a substância teve (e suas versões mais antigas como o celulóide) nas sociedades modernas:

Os plásticos nos libertaram dos confins do mundo natural, das restrições materiais e suprimentos limitados que há muito limitavam a atividade humana. Essa nova elasticidade abriu as fronteiras sociais também. A chegada desses materiais maleáveis e versáteis deu aos produtores a capacidade de criar um tesouro de novos produtos, ao mesmo tempo em que expandiam as oportunidades para que os de meios modestos se tornassem consumidores. O plástico ofereceu a promessa de uma nova democracia material e cultural (FREINKEL, 2011, p. 15).

Em nível básico, a indústria petrolífera é a principal fonte de energia para o funcionamento da grande maioria das indústrias e para uso doméstico e pessoal. Ela controla a locomoção das pessoas e a movimentação dos produtos e é base da maioria dos agrotóxicos e de toda a produção de plásticos, substância irreversível deixada na biosfera, uma vez consolidada composição estável. Heather Davis (2015), em ensaio sobre a história do plástico, observa que “o plástico criou as condições para o comércio global e o consumismo, enquanto esses sistemas se tornaram cada vez mais dependentes de várias formas de plástico” (p. 349).

Fisicamente, o plástico não pode ser biodegradado ou reaproveitado no ciclo orgânico da biosfera. Jamais! O plástico mantém a mesma estrutura molecular e só é fotodegradado, com tempo e em contato com o sol, dissolvendo-se, muito lentamente, numa substância de tamanho progressivamente reduzido, que se dispersa no meio ambiente com facilidade, normalmente através da água, até chegar um dia aos mares. O que se consegue reciclar desse material é mera fração do volume existente e em constante produção (MOORE, C., 2011).

Destaque-se que, no âmbito dos avanços tecnológicos e nos produtos industriais, cosméticos e médicos, os plásticos proliferam e são considerados milagrosos. É impensável voltar ao tempo em que um hospital operava sem os solução lógica e moral para a crise climática atual, que, segundo ela, requer contração radical do consumo de recursos em todos os sentidos.

produtos plásticos de cuidados básicos ou os instrumentos cirúrgicos. Imagine-se a logística de compras de supermercado sem embalagens plásticas ou a tecnologia de telefone celular sem essa matéria. Não se pode existir ou passar nem 24 horas sem eles nos dias atuais, pois todos os tipos de plástico estão integrados completamente nas economias globalizadas, e na existência humana, até no nível molecular, como substância ingerida e absorvida pelo próprio organismo.

Heather Davis alerta sobre a relação explosiva entre lixo e os projetos de crecimento neoliberal:

De fato, a infraestrutura e a velocidade do capitalismo avançado, e a fantasia do crescimento econômico interminável, alimentado pelas políticas extrativistas e pelo consumo em massa, dependem do plástico. Isso explica por que 280 milhões de toneladas de plástico foram produzidas em todo o mundo em 2012, com um aumento projetado para 33 bilhões de toneladas anuais até 2050 (2015, p. 349).

A permanência e a predominância do plástico em nossas vidas são irônicas, porque se trata de substância com contradição em seu uso: sua conveniência e sua eficácia material representam progresso e democracia e uma vitalidade econômica inédita na humanidade, mas sua curta duração de uso e sua alta toxicidade, uma vez “jogado fora”, o transformam em arma lentamente letal para o meio ambiente e para os organismos humanos e animais. Nossa identidade ciborgue tem a ver tanto com as tecnologias e as máquinas quanto com a composição sintética de nossos corpos, cada vez mais pronunciada, de elementos de plástico.

Figura 12 - Encontro de mãos na praia da Penha, 2014

Fonte: Giovanni Luquini.

Isso vai muito além de implantes e próteses por questões estéticas e funcionais, residindo, involuntariamente, como partículas e substratos de substâncias plásticas e petroquímicas. Mamíferos e peixes ingerem esses resíduos e partículas de plástico, que acabam em nossos corpos, modificando-nos, sem possibilidade de reverter o processo (POLLAN, 2007).

Basta entender que já não se tem como voltar atrás e que há muito os arquitetos dessa supremacia estão apostando economicamente na dependência nos plásticos, com a cumplicidade individual e social que a permite. Não cabe caracterizar o que se pode chamar de supremacia como conspiração, mas o resultado da dominação do plástico em nossa existência tem provocado condições biológicas apocalípticas que parece não terem fim na sua expansão. As ciências são claras a respeito das consequências da produção e uso massivo continuado, mas isso não é suficiente para despertar grandes ações por parte dos governos e das indústrias com a rapidez necessária.

A idade da ciência e da razão trouxe consigo a ideia de que o ser humano podia dominar a natureza para seu uso completo, e isso se alcançou dentro dos propósitos imediatos de consumo e conforto. Simultaneamente, essa prerrogativa moderna, com sua concomitante domesticação e distanciamento do mundo “natural”, tem extinguido a maioria das sociedades que veneravam a natureza e que tinham uma “mitologia da natureza” (CAMPBELL; MOYERS, 1988), resultando na perda e desvalorização da sua sabedoria vital, considerando-a como método e crença inútil ou ineficaz. As ciências deixaram a espécie humana sem imperativo moral (as ciências, a propósito, não se importam com a moralidade), enquanto sua relação com o entorno orgânico se encontra naufragando num mar de plástico, sem guias éticos ou políticos para corrigir essa relação necessária com o meio ambiente. O que tomou o lugar dessas “mitologias da natureza”, fora do imaginário religioso contemporâneo, na maior parte das vezes, foram os super-heróis e as marcas registradas que não contemplam o meio ambiente quase nunca, muito menos se preocupam com formas de eliminar o uso de plástico.

2.6 VIVAM AS SEREIAS CIBORGUES OU LIXO SAGRADO DO SÉCULO XXI