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TRAJETÓRIA: PRÁTICA COMO PESQUISA E PESQUISA COMO PRÁTICA

4. PROCESSOS E PRÁTICAS CRIATIVOS: A CONSTRUÇÃO DA

4.1 TRAJETÓRIA: PRÁTICA COMO PESQUISA E PESQUISA COMO PRÁTICA

investigação acadêmica - e também de criação cênica - foi preciso verificar onde se localizava a minha prática artística em relação ao mundo acadêmico de investigação, que tradicionalmente se situa entre pesquisa teórica quantitativa e/ou qualitativa. Quem opera fora dessas regras estabelecidas pela academia sente-se inseguro no âmbito formal da investigação, porque os métodos instituídos que coletam dados sobre a indagação científica não têm elaborado de modo abrangente formas de captar e valorizar aspectos das realizações do mundo das artes, incluindo a performance. Brad Haseman, em seu Manifesto de Pesquisa Performativa (The Manifesto for

Performative Research) (2006), delineia esse lugar marginalizado de pesquisa prática: As metodologias de pesquisa qualitativa e quantitativa estabelecidas enquadram o que é legítimo e aceitável. No entanto, essas abordagens aprovadas não atendem às necessidades de um número crescente de pesquisadores liderados por práticas, especialmente nas artes, mídia e design" (p. 1).

65 Isso tem uma distinção do Antropomorfismo, que é a atribuição de traços humanos, emoções ou intenções a entidades não humanas e é considerado tendência inata da psicologia humana e hábito reconhecido nos gêneros da literatura e artifícios de drama. O Antropocentrismo, por outro lado, assume que tudo existe em função do ser humano e considera que os seres humanos como a entidade mais significativa do universo. O autor israelense Yuval Noah Harari diz que a idade Antropoceno e seu antropocentrismo concomitante são as “conclusões lógicas do período grande do celebrado humanismo onde o próprio homem é deus” (2015, p. 75).

Dessa maneira, muitos artistas encontram-se sem métodos reconhecíveis de comunicar o produto investigado, que se expressa através do fazer e representar em processo de interação, avaliação (às vezes instantânea), transformação e repetição constante. No caso da performance, o processo continua após o momento da estreia oficial (o momento quando o produto está supostamente terminado e pronto para consumo pelo público), pois cada apresentação oferece substância para novas modificações e descobrimentos.

O componente substantivo da prática artística nesta pesquisa no contexto do doutorado me estimulou a investigar o processo criativo e unir o produto artístico com ideias tanto da pesquisa quantitativa (ciências exatas que informam ideias de mudanças climáticas) quanto da qualitativa (ciências sociais que informam os estudos tanto étnicos e mitológicos quanto sócio-políticos). Algumas dúvidas comuns a artistas pisando na terra alheia da academia me perseguiam: Será que inventar uma performance “nova” é válido como pesquisa? Posso me apresentar como pesquisadora competente no mundo, dialogando com outros autores e acadêmicos, mas com a minha própria imaginação e gestão resultante dessa convicção criativa? Como irei comunicar os resultados e impactos de uma prática efêmera para o público acadêmico/universitário e/ou leigo?

A prática como pesquisa é campo de reconhecimento acadêmico crescente, como exposto por Brad Haseman (2006) e Barbara Bolt (2008), que declaram que “um paradigma performativo [que] potencialmente oferece às artes criativas uma nova visão radical e uma maneira de distinguir sua pesquisa dos modelos dominantes de conhecimento” (BOLT, 2008). Existe aqui uma afirmação com que qualquer profissional de artes se identifica intuitivamente. Eu, como artista, sinto-me aliviada em estar corroborada pela ideia de “prática como pesquisa”, para explicar o que eu faço, que assessora o descrever do meu processo.

A noção de que o ato de examinar tema ou objeto de estudo com as ferramentas do corpo e a imaginação poética pode funcionar como operação científica tão legítima quanto a física quântica é respaldo essencial no momento de articular o humilde processo criativo desta pesquisa. Ao mesmo tempo em que os métodos e medidas deste tipo de pesquisa “praticada” são reais, se apresentam de forma invisível ao artista: algo que ainda distancia do mundo fora das artes. Os resultados tornam-se difíceis de ser identificados como processos e produtos cujos empenhos produzem algo mensurável, ou que demonstram mérito concreto no mundo de dados

computáveis e das outras ciências. As ciências exatas, por sua própria necessidade de medir e demonstrar relações na base de provas, perdem o sentido (e muitas vezes a paciência) com os valores da arte como esforço crítico em qualquer projeto de importância. Esta pesquisadora, informada de ciência de clima, oceanografia e química, tem passado momentos de desespero e dúvida causados pelo medo de não estar produzindo conteúdo de importância semelhante àquele das investigações sobre o Bisfenol A66, por exemplo, cujos impactos são “reais”.

A prática metafórica de um artista é complexa e sistematicamente inclui a procura que constrói imagens, textos, ações e situações que podem criar tensões simbólicas e uma poética suficientemente provocante para despertar interesse emocional e intelectual de um público, ou pelo menos romper o cotidiano de um espaço público urbano no caso da performance. É processo metodológico e progressivo que obedece a diversas leis dramatúrgicas, técnicas e estéticas, que são difíceis de qualificar e quantificar: não somente como processo, mas como produto que acaba sendo relação simbiótica entre tempo-espaço, intérprete, interpretado e público. Ainda assim, teóricos na área do teatro, como Richard Schechner (2006), entre muitos outros, têm definido esses fatores e abordagens metodológicos para comunicar e legitimar os processos da performance entre os estudos de artes cênicas e o gênero de arte cênica conhecida como a performance, que Rosalee Goldberg (2011) define como “altamente reflexiva e volátil” e algo que “continua a desafiar a definição e permanece imprevisível como sempre foi” (p. 249).

Mencionam-se aqui as pesquisas de Schechner por ser figura importante na aplicação dos estudos de performance no mundo de teatro, tendo cunhado a expressão “teatro ambiental” (SCHECHNER, 1994) em seu trabalho. O teatro ambiental, nesse caso, não tem relação com as práticas referenciadas da arte ecológica, a qual tem preocupação central com algum aspecto de ecologia. As pesquisas e práticas de Schechner no teatro ambiental se referem ao uso de espaços não tradicionais, como a praça, a rua, os galpões, as igrejas e diversos prédios abandonados ou habitados, para experimentar os limites do gênero, as possibilidades estéticas e os impactos políticos

66 Bisfenol A (BPA) é o produto químico de base (monômero) usado para fabricar recipientes de bebidas e alimentos plásticos feito de policarbonato, a resina de latas e selantes dentais; ele também é encontrado em papel "sem carbono" usado para recibos, bem como em ampla gama de outros produtos domésticos comuns (MYERS, et al, 2008).

em condições menos controladas e interativas que um teatro convencional67.

O componente de encenação deste projeto utiliza procedimentos de colecionar, dialogar e referenciar pelo processo escrito, físico e verbal de improvisação e de interação com objetos e imagens para construir narrativas e enredos viscerais de ação cênica. O espetáculo interage com públicos diversos e espaços cênicos abertos, ou não tradicionais, produzindo resultados variáveis em qualidade cênica e experiencial na platéia segundo o lugar, o tempo e a comunidade.

É importante mencionar também que, quando se utiliza a palavra performance, não se trata do campo de estudos em performance abrangentes que têm sido adotados para quase todas as áreas, como forma de olhar para produtos de comportamento de todo os tipos como “textos” (BOLT, 2008). Distingue-se entre essas disciplinas e a relação entre a performance nos estudos de teatro, e como o estudo de performance virou pesquisa que produz um terceiro campo de conhecimento.

Barbara Bolt (2008) insiste em que faltam esclarecimentos sobre os termos

performance e performatividade para diferenciar essas abordagens e que não é

suficiente colocar a palavra “performance”, sem distinguir como funciona esse universo de representações e produções. O produto artístico desta pesquisa não é performance no sentido ortodoxo de estudos de performance dos campos sócio- teóricos, que olham qualquer manifestação de comportamento humano potencialmente como performance. A categorização deste projeto aproxima-se com o trabalho em estudos das artes cênicas de Richard Schechner (2006), as práticas performáticas e estudos de Suzannne Lacy de New Genre Public Art (Arte Pública do Novo Gênero)68 (1995) ou a “performance de rua” (COHEN-CRUZ, 1998), e também enreda essas premissas politizadas e cênicas com as perguntas elaboradas por teóricos em artes, como Heather Davis e Etienne Turpin (2015), que perguntam “o que

67 Na elaboração de Schechner, Teatro Ambiental (Environmental Theater) não implica teatro preocupado com temas do meio ambiente, mas se interrelaciona no sentido de que contempla e interage com muitos dos mesmos elementos de eco-artes e do teatro site-specific, no sentido de que dialoga intencionalmente com os espaços em volta: podem ser prédios ou os locais públicos onde um espetáculo está situado. Depende de ou antecipa efeitos da participação do público presente para determinar ou influenciar o conteúdo e o desenvolver do sentido da obra e seus possíveis impactos políticos e sociais (SCHECHNER, 1994).

68 O termo New Genre Public Art (arte pública do novo gênero) refere-se à arte pública, muitas vezes de natureza ativista, e criada fora das estruturas institucionais para se envolver diretamente com o público de modo experiencial, muitas vezes utilizando a performance. O termo foi cunhado pela artista, escritora e educadora americana Suzanne Lacy, em 1991, para definir um tipo de arte pública norte- americana que não era “uma escultura situada em um parque ou praça”. A prática se situa cotrariamente à ideia de que a arte pública ser aquele objeto de arte sancionado por o Estado. Site oficial de Suzanne Lacy. Disponível em: <http://www.suzannelacy.com/mapping-the-terrain>. Acessado em 25 de maio de 2018.

significa para a arte o encontro com a idade Atropoceno”, um momento que desvia a atenção das circunstâncias de injustiça dos seres humanos e a redireciona para as condições de iniquidade entre nós e as outras espécies, os minerais e a atmosfera (2015, p. 3)?

Desses desenvolvimentos teóricos na história do teatro e da performance, a criação espetacular de A Fábrica de Lágrimas de Sereia nasce com a intenção de apresentar um mundo elaborado esteticamente na ficção-mitológica e na indústria e consumo dos plásticos, sem a finalidade de confundir o espectador sobre realidade e representação (como o teatro invisível de Augusto Boal, por exemplo), e com fins que incluem a consciência política, educação ambiental e a construção de comunidades interdisciplinares, além do entretenimento de diversos públicos em forma de acontecimento espetacular gratuito em praias e outros espaços públicos.