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1 RELAÇÃO JURÍDICA OBRIGACIONAL, ADIMPLEMENTO, INADIMPLEMENTO E

1.4 O Adimplemento

É um ponto comum na literatura jurídica que a obrigação deva ser norteada

pelo adimplemento. É com tal fim que surge e desvios no percurso até ele são

tratados como anomalias.

No conceito clássico da relação obrigacional o adimplemento é alcançado com o atendimento integral e absoluto do objeto/prestação principal. É ato-fato46

que, satisfazendo a pretensão do credor, põe fim à obrigação, não sendo analisados eventuais deveres além do de prestar.

Autores como Beviláqua e Serpa Lopes trazem conceitos de adimplemento inteiramente voltados ao conteúdo principal e definidor da relação obrigacional:

A execução voluntaria consiste no cumprimento, espontaneo ou solicitado, da prestação que incumbe ao devedor.47

No adimplemento da obrigação, ao devedor se impõe um comportamento estritamente de acôrdo com o que contratualmente se estipulou, e o credor não é obrigado a receber outra coisa que não

45 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Inadimplemento das obrigações. (Coleção biblioteca de direito

civil: estudos em homenagem ao professor Miguel Reale, v. 7) São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 42.

46 “São várias as doutrinas acerca da natureza do adimplemento, principalmente as que o consideram

ato jurídico, seja como ato jurídico em sentido estrito, seja como negócio jurídico. O adimplemento não é ato jurídico que dependa sempre de manifestação de vontade capaz, como foi no antigo direito romano. Não se exige ânimo de adimplir em todos os casos. É irrelevante a vontade do devedor de adimplir ou extinguir a dívida (animus solvendi). [...] A relevância para o direito não está no ato, na ação humana, mas na realização ou no resultado fático que ingressa no mundo jurídico. Assim, classifica-se entre os atos-fatos, que não estão sujeitos a validade ou invalidade; existe ou não existe (plano da existência), é eficaz ou não (plano da validade), sem cogitar de ser nulo ou anulável.” (LÔBO, Paulo. Direito Civil: Obrigações. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 171).

a convencionada, ainda que mais valiosa.48

Serpa Lopes apresenta, ainda, quatro requisitos para o exato cumprimento da obrigação: identidade e integridade da prestação, pagamento, capacidade do pagador, lugar da prestação e tempo do cumprimento da obrigação49.

Como se percebe, o foco, até então, residia na transitoriedade do vínculo obrigacional, pois as obrigações nasceriam “para ser pontual e integralmente cumpridas pelo devedor, e, assim, extinguir-se”50.

Entretanto, com a alteração de paradigmas de modo a permitir o reconhecimento dos deveres acessórios e laterais, bem como da relação obrigacional entendida como processo, o atendimento satisfatório da obrigação é potencialmente complexificado, passando a ser verificado por sua função econômica e social51, afastando-se da análise unicamente baseada no objeto principal da

obrigação.

Diz Jorge Cesa Ferreira que “o pagamento é o meio esperado de extinção [...], o meio que menos onera e que melhor realiza não só os interesses objetivos das partes, como também o ‘interesse’ da sociedade na fluidez do tráfego jurídico”52.

Paulo Lôbo, sobre o adimplemento, diz o seguinte:

O adimplemento é o cumprimento pelo devedor da prestação a que

48 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil. v. 2, 4. ed. São Paulo: Livraria Freitas

Bastos, 1966, p.184.

49 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil. v. 2, 4. ed. São Paulo: Livraria Freitas

Bastos, 1966, p.185.

50 CAVALLI, Cássio. Mora e utilidade: os Standards da utilidade no modelo jurídico da mora do

devedor. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 23.

51 “A Constituição apenas admite o contrato que realiza a função social, a ela condicionando os

interesses individuais, e que considera a desigualdade material das partes. Com efeito, a ordem econômica tem por finalidade ‘assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social’ (art. 170). A justiça social importa ‘reduzir as desigualdades sociais e regionais’ (art. 3º e inciso VII do art. 170). São, portanto, incompatíveis com a Constituição as políticas econômicas públicas e privadas denominadas neoliberais, pois pressupõem um Estado mínimo e total liberdade ao mercado, dispensando a regulamentação da ordem econômica, que só faz sentido por perseguir a função social e a tutela jurídica dos mais fracos e por supor a intervenção estatal permanente (legislativa, governamental e judicial). Um dos mais importantes dispositivos no Código Civil de 2002, o art. 421, que introduz a normativa geral dos contratos, estabelece que a liberdade de contratar será exercida ‘em razão e nos limites da função social do contrato’. Não se trata aí apenas de limites negativos, mas, principalmente, de condicionamento positivo do conteúdo e finalidades do contrato; a essencialidade principiológica da norma é demonstrada pelo parágrafo único do art. 2.035 que prevê a nulidade de qualquer convenção das partes que contrarie a função social do contrato.” (LÔBO, Paulo. Novas perspectivas da constitucionalização do direito civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3754, 11 out. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25361>. Acesso em: 26 abr. 2014).

52 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento e extinção das obrigações. (Coleção biblioteca

de direito civil: estudos em homenagem ao professor Miguel Reale, v. 6) São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 38.

estava vinculado: dar, fazer ou não fazer. Com o adimplemento, cessa a relação jurídica obrigacional entre o devedor e o credor. O adimplemento realiza o fim da obrigação, satisfazendo o credor e liberando o devedor, extinguindo a dívida.53

Nesta linha, ainda nas palavras de Jorge Cesa Ferreira, se encontra o seguinte:

A relação obrigacional simples basta-se no nexo de crédito e débito, estaticamente. Já a relação complexa abrange todo o conjunto de direitos, deveres, (de prestação e de conduta), ações, exceções, direitos potestativos e estados de sujeição que a concreta relação envolve. Na perspectiva da obrigação simples é adequado entender o pagamento como mera realização da prestação. No entanto, partindo-se da noção de obrigação complexa, o pagamento não se limitará a essa realização. Mais do que isso, haverá de verificar-se, também, a satisfação do conjunto de direitos e interesses decorrentes do vínculo, não limitados à troca de bens ou realização de serviços.

[...]

Como se constata, o pagamento é conceito dos mais complexos na dogmática obrigacional. Ele não envolve somente um ato, mas também uma finalidade, possui diversas abrangências e, conforme as circunstâncias, diversos efeitos.54

Das passagens já transcritas, especialmente nas que apresentam visão mais ampla dos conceitos de relação jurídica obrigacional e adimplemento, percebe-se grande influência das ideias defendidas por Pontes de Miranda, para quem o adimplemento pode ser visto, em sentido largo, quando ocorre qualquer liberação ou satisfação ou em sentido estreito, quando o devedor presta diretamente o devido55,

conforme a passagem seguinte:

O interêsse do credor pode realizar-se por fato natural (crédito de

demolição, seguido do fato natural do desmoronamento,

conseguimento parcial do escopo, porque falta a remoção dos escombros; crédito de remoção de troncos e galhos de árvores que obstruíram o rio e descida de todos com a enchente), ou por ato jurídico do credor (aquisição, pelo credor, B, da coisa que pertence a C, e A lhe vendera), ou fato do credor (êle mesmo demoliu a casa ou desobstruiu o rio, em lugar do devedor) ou ato jurídico de terceiro (C doa a B, credor, a casa que A vendera a B), ou fato de terceiro (C

53 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Obrigações. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 170.

54 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento e extinção das obrigações. (Coleção biblioteca

de direito civil: estudos em homenagem ao professor Miguel Reale, v. 6) São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 40.

55 PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. t. 24. São Paulo:

procede à demolição ou desobstrui o rio, sem ser em adimplemento do dever ou da obrigação de A). [...] o conseguimento do escopo distingue-se da eliminação do escopo ou do interêsse do credor, em que êsse não pode mais ser realizado, ou não existe.56

Para o autor, a “solução ou adimplemento pode ser definido pelo efeito, e é a

solutio dos textos, a extinção do dever ou da obrigação sòmente, liberando [...]. Não

se leva em conta o conteúdo do dever ou da obrigação”.57

Ressalta, ainda, ser o real conteúdo da obrigação o “prestar” e não o objeto da prestação em si, conforme inserto na seguinte passagem:

Tem-se pretendido que, quanto ao conteúdo, só o ato do devedor seja “atuação” no conteúdo do dever ou da obrigação. Mas, aí, já se torna demasiado estrito o sentido de atuação no conteúdo do dever ou da obrigação. A solutio, segundo o étimo (se, lua, em que há o se de sed, sitie, sem, e o lua de Use, em análise, em paralisia) e o antigo direito romano, era tóda dissolução do vinculo obrigacional pelo devedor. O sentido estrito, de pagamento, foi sentido posterior.58

Seguindo esta linha de raciocínio, alargando a análise do adimplemento, Pontes de Miranda identifica o que chamou de “adimplemento não-satisfatório”, reconhecendo, quando de sua análise, deveres de proteção a serem observados para o alcance do adimplemento59.

Há, portanto, a necessidade de que sejam reconhecidos e tutelados os deveres acessórios e laterais das obrigações, tendo isto como decorrência a ampliação do conceito de adimplemento, que alarga a gama de interesses a serem

56 PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. t. 24. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2012-2013, p. 143.

57 PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. t. 24. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2012-2013, p. 141.

58 PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. t. 24. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2012-2013, p. 142.

59 “Os legisladores de todo o mundo, ao tratarem de impossibilidade e de não-adimplemento, não

viam que faltava considerar-se o adimplemento, que ocorreu, porém não satisfez. O devedor não só está obrigado a prestar, mas sim a prestar de tal maneira que satisfaça. Se adimple de jeito que não baste, ou que cause dano, ou imponha despesas, satisfatoriamente, não adimple. [...] O consertador de máquinas, que fêz o consêrto, mas ainda não trabalha com a eficiência, que se havia de esperar, a máquina, adimpliu insatisfatòriamente. Quem prometeu dez caixas de vinho e remeteu nove, no dia do vencimento, e uma, dia ou dias depois, insatisfatòriamente adimpliu. Se A vende ou aluga a B três garanhões e o empregado de B os recebe, de inferior qualidade, havendo a fecundação, A está obrigado à indenização, ainda que purgue a mora, remetendo depois os que prometera. São os chamados danos concomitantes (Begleitschaden), de que falam FR. LEONHARD (Allgemeines

Schuldrecht, 542) e outros, ou danos suplementares. O cumprimento foi defeituoso. [...] Chama-se a

êsse dever infringido dever de proteção, porque quem executa tem de executar sem causar danos, mas o conceito apenas caberia, no caso de danos suplementares, no de dever de adimplemento satisfatório, e pois no de dever de prestar.” (PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti de.

satisfeitos, incluídos os do devedor. Na definição de Judith Martins-Costa, o adimplemento pode ser entendido como:

[...] o cumprimento da prestação concretamente devida, presente a realização dos deveres derivados da boa-fé que se fizerem instrumentalmente necessários para o atendimento satisfatórios do escopo da relação, em acordo ao seu fim e às suas circunstâncias concretas.60

É de se evidenciar diferença no uso da expressão obrigação norteada “pelo adimplemento” em detrimento de somente “para o adimplemento”, pois, diante dos fatores pontuados anteriormente, que alteraram a concepção de relação obrigacional, questão relevante a ser analisada reside nas consequências deste novo entendimento sobre o conceito e definição do adimplemento e, consequentemente, nos seus pressupostos de verificação e decorrências no Direito Brasileiro.

Retomando o que se disse antes, a relação obrigacional deve ser entendida como uma cooperação entre os polos que a compõem, voltada ao adimplemento, mas não apenas dos deveres primários, consubstanciadas na prestação principal, como se defende a seguir:

[...] o adimplemento somente se consumará com a satisfação do grupo de interesses envolvidos, o que importa na necessária compreensão de que estes envolvem não só os vinculados direta ou indiretamente à prestação, mas também os relativos à manutenção do estado pessoal e patrimonial de seus integrantes, originários do elo de confiança inerente a qualquer vínculo.61

O que se fixa pelo que já foi dito, é a configuração da relação obrigacional vista como processo, contendo, além dos deveres principais, os acessórios e os laterais, superando a simples união de seus elementos individuais e levando à percepção de que os conceitos atuantes no campo obrigacional, muito embora tendentes à concretização do equilíbrio nas relações dali surgidas, tornam complexa a análise do adimplemento.

60 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil: do direito das obrigações, do

adimplemento e da extinção das obrigações. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). v. 5, t. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 96.

61 SOMBRA, Thiago Luis Santos. Adimplemento contratual e cooperação do credor. São Paulo:

Por tal razão, a literatura jurídica aponta como premente a necessidade de “descer do plano das abstrações ao terreno rico e multiforme do concreto”62,

realizando-se uma análise visceral da relação obrigacional, que tome em valoração a concretude das circunstâncias do desenvolvimento da relação.

Seguindo esta linha, importante consignar o estímulo de Judith Martins-Costa a uma visão diferenciada da relação obrigacional, sob o aspecto funcional:

A classificação tradicional que se faz no Direito das Obrigações é aquela que vê a relação obrigacional do ponto de vista externo, examinando os seus “elementos” – os sujeitos, o objeto, as garantias etc. O Código propõe um outro viés, um outro olhar. Isso nos leva a um leque de questões.

[...] qual a importância dogmática, isto é, a relevância na configuração na possibilidade de criação de novos institutos dogmáticos, como decorrências dessa estrutura.63

Em seguida, respondendo à indagação, a autora aponta que a “principal consequência [do outro viés] é o alargamento da noção de adimplemento e, conseqüentemente, o alargamento da noção de inadimplemento”.64

Muito embora se admita a impossibilidade de uma verificação pré-fixada da configuração do adimplemento ou inadimplemento, tudo em virtude da multiplicidade de relações obrigacionais que podem se configurar65, é certo que alguns critérios

precisam ser analisados para tanto. Para a identificação de quais seriam tais critérios e se estariam sendo observados pelos tribunais no Brasil se faz necessária, antes, uma incursão pelo inadimplemento e conceitos a ele ligados.

62 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil: do direito das obrigações, do

adimplemento e da extinção das obrigações. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). v. 5, t. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 13.

63 MARTINS-COSTA, Judith. Adimplemento e inadimplemento. In: Revista da EMERJ. Rio de

Janeiro: EMERJ, p. 95-113, fev./jun. 2002. Edição especial, parte 1. p. 97.

64 MARTINS-COSTA, Judith. Adimplemento e inadimplemento. In: Revista da EMERJ. Rio de

Janeiro: EMERJ, p. 95-113, fev./jun. 2002. Edição especial, parte 1. p. 98.

65 “[...] não é uniforme o tecido das relações sociais, não se apresentando a sociedade como uma

harmônica sinfonia de vozes promanadas por um abstrato sujeito de direito: hoje, à metáfora da sinfonia, substitui-se a da polifonia, por vezes mesmo da cacofonia. Se na Codificação oitocentista a ficção da igualdade era o suporte ideológico dos próprios atributos das regras codificadas, quais sejam, a sua generalidade e abstração [...] hoje em dia essa ficção não mais remanesce nas normas agora codificadas, polarizadas que estão pela diretriz da concretude, que significa a observância da ‘ética da situação’. Por isso o apelo, tantas vezes feito na nova Lei Civil, inclusive em tema de adimplemento e inadimplemento, a conceitos flexíveis ou ‘fórmulas ordenadoras’, ou expressões dotadas de vagueza socialmente típica (algumas delas constituindo mesmo cláusulas gerais) que levam à concretude [...].” (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). v. 5, t. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 10-11).