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O advento da História enquanto disciplina escolar no Brasil no século da

CAPÍTULO 3 ENSINO DE HISTÓRIA: PRÁTICAS, CONFLITOS,

3.1. O advento da História enquanto disciplina escolar no Brasil no século da

A história do ensino de História, no Brasil, como no Mundo, vincula-se à constituição e consolidação da História Ciência e desenvolve-se em meio às disputas sempre políticas em torno de como o passado será registrado, narrado e interpretado. A preocupação com os “conteúdos” da História é parte constituinte dos projetos de hegemonia sócio-política: ter um maior domínio sobre as narrativas do passado é agregar maior volume às vozes que disputam o presente.

No século XIX, ainda durante o período imperial, a História é introduzida no currículo escolar a partir da criação do Colégio Pedro II, em 1837, que é também o ano da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A estreita ligação entre as duas instituições é atestada pela dedicação de professores pesquisadores a ambas e revela uma certa preocupação com a elaboração e controle acadêmico da História Escolar (Abud apud Azevedo, 2002).

Compreendida pelo historiador britânico Eric Hobsbawn como invenção das tradições e, pelo historiador francês François Furet, enquanto uma efetiva pedagogia do cidadão, o percurso da História enquanto saber científico e escolar é feito de idas e vindas, pleno de meandros, que traduzem a politicidade e a força ideológica, cultural, social e mesmo afetiva de seus discursos.

As memórias sociais (nunca ingênuas) não chegam ao presente como herança direta de um tempo acabado. O passado é (re)escrito mediante o presente, às vezes, enquanto legitimação dos contextos vividos, noutras, enquanto denúncia dos mesmos contextos, ou ainda, é pensado como um olhar sobre o que foi que objetiva antever, projetar ou transformar o que virá. O tempo da História não é o acontecido. Ao contrário, pela e para a História, dialogam e conflitam passado, presente e futuro.

A inserção da História enquanto saber a ser ensinado nas instituições escolares nacionais durante o conflituoso século XIX, século de uma independência disputada8, de

reações à independência sem rupturas, de “modernizações sem mudanças” parece confirmar que a construção de narrativas históricas, edificação de monumentos materiais ou imateriais, preservação e mesmo o abandono dos arquivos, estão voltados para um projeto claro e estratégico de “construção do passado” e não de sua fidedigna reconstituição para fins de memória coletiva. As memórias sociais são selecionadas e se tornam tanto mais necessárias quanto as estruturas e instituições das sociedades entram em processos de transição.

Em um documento curricular, elaborado para o ensino de História na Rede Municipal do Recife, durante a década de noventa do século XX, as questões políticas relacionadas à constituição, status e prática de ensino da disciplina são ressaltadas:

Se “o acesso da população ao conhecimento produzido pelas Ciências Humanas vem sendo negligenciado, ao longo de nossa educação escolarizada, por razões sociais e históricas” (PENTEADO, 1991: 20), em particular o ensino de História constituiu-se em alvo das atenções dos governos brasileiros e diversos são os golpes que sofreu. O principal deles – a introdução de Estudos Sociais no Ensino Fundamental – remonta a 1930, e impõe-se com o golpe militar de 1964, a partir de quando os governos autoritários promoveram reformas para pulverizar ou eliminar a História do currículo do ensino fundamental, a exemplo da lei 5.692/71. (RECIFE, 1996: 6)

A lei citada no documento é aquela que instituía o Ensino de Estudos Sociais, integrando História e Geografia, o que revelava certa influência do pensamento educacional norte-americano e um projeto de fragmentação dos saberes históricos e geográficos. Segundo

Azevedo:

8 Em trabalho acadêmico anterior, discutimos a idéia de que o processo de independência brasileiro deu-se

mediante um horizonte de disputa entre modelos a serem implementados na nova Nação e de grupos a hegemonizarem a institucionalização da necessária nova ordem pós-libertação colonial. Em diálogo com Evaldo Cabral, Socorro Ferraz e Gláucio Veiga, afirmávamos a inexorabilidade das diferenças de projetos político- econômicos entre os grupos do sudeste/sul (representados, sobretudo, pelo articulista José Bonifácio de Andrada) e os grupos do então chamado norte (atual nordeste), centralizado na Província de Pernambuco e, cujos projetos, liberais-republicanos encontram um engajado porta-voz: Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Evaldo Cabral de Mello, ao contrapor os dois projetos, utilizar-se-á da expressão “outra independência”. Em nossa monografia de Bacharelado em História aprofundamos o modelo de Nação pensado e proposto pelo frade carmelita Frei Caneca.

É estratégico, então, que o ensino de História tenha se caracterizado pela tradição metodológica – questionários, aulas expositivas, uso restrito do livro didático – que a torna uma obrigação escolar a ser cumprida com o mínimo de esforço e envolvimento possível. (2002: 40)

O processo de redemocratização, desenvolvido durante a década de oitenta, trouxe, além de outras configurações dos movimentos políticos e culturais, novos e inquietantes debates. O retorno ao exercício da voz (calada durante o período ditatorial) despertava a sociedade para diferentes compreensões e reflexões sobre a realidade brasileira. No campo da Educação Escolar, o retorno da História e da Geografia – enquanto disciplinas autônomas – provocou discussões e iniciativas, por parte das secretarias de educação e grupos de docentes, em torno de questões curriculares e metodológicas.

Nacionalmente, vemos configurar-se um movimento dos professores de História, no sentido de repensar a História e seu Ensino. O VI Encontro da então chamada Associação Nacional dos Professores Universitários de História – ANPUH –, realizado no Campus da UNESP, encaminhou a edição de um livro que reunisse alguns elementos desse debate – a obra, organizada, pelo professor Marcos Silva, reúne “balanços e perspectivas” e traz relatos de experiências que buscavam inovar e renovar as práticas de ensino e aprendizagem da disciplina9. Segundo Moreira:

É importante realçarmos, por fim, no panorama educacional dos anos oitenta, a busca de uma orientação mais autônoma e a desvalorização dos modelos educacionais associados ao governo militar. (1999, p. 159)

O retorno dos exilados políticos e as vitórias eleitorais das esquerdas reforçariam, também em Pernambuco, o clima de esperança e renovação que permeava as iniciativas no

9 A obra foi publicada, sob o título “Repensando a História”, pelo núcleo da ANPUH de São Paulo em parceria

com a Editora Marco Zero. São publicados ainda, durante este período, um número especial da Revista Brasileira de História, dedicado às reflexões sobre o ensino (“História em Quadro-Negro – Escola, Ensino e Aprendizagem”) e o livro “República em Migalhas – História Local e Regional”, organizados também por Marcos Silva, além de outros importantes trabalhos e pesquisas.

campo das políticas educacionais. No Recife, a atuação de Edla Soares à frente da Secretaria de Educação da Rede Municipal incentivou projetos e práticas que buscavam resgatar a participação e a criticidade no Ensino de História; entre esses novos projetos, figura a publicação do Livro Didático (direcionado ao Ensino Fundamental) “Todos contam a sua História” 10, que trazia como foco a História da Cidade.