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4. CURRÍCULO OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO

4.1. O que propõe o atual Currículo do Estado de São Paulo?

4.1.2. Princípios norteadores do Currículo do Estado de São Paulo

4.1.3.3. O “Aprender a Aprender” no Currículo oficial da educação paulista

34 Vinte anos depois da publicação do livro de Gentili é impossível não ressaltar seu acerto em tempos de uma

Reforma do Ensino Médio que tem como mote abrir a porta à iniciativa privada e diminuir ainda mais o investimento nos serviços públicos.

Pode-se dizer que o documento apresentado pela SEE-SP tem como lema o “aprender a aprender”. Nos trechos citados na primeira parte do trabalho (SÃO PAULO, 2011, p. 11- 13), seções iniciais do documento, fica claro que a função da escola seria a geração de um indivíduo “autônomo”, “livre”, assim como criar uma “escola aprendente” que aprenda com uma comunidade que também aprende com ela. Na prática, contudo, esses princípios podem resultar exatamente no contrário do que aparentam pretender.

Duarte (2011) contribui com nossa discussão acerca de como o lema “aprender a aprender” vem sendo utilizado nos documentos oficiais que legislam sobre a educação pública. De acordo com Duarte (2011, p. 39-47) existem 4 posicionamentos valorativos em relação a esse princípio:

1. É mais desejável que o indivíduo aprenda por si só do que dependa da transmissão de conteúdos;

2. É mais importante que o estudante desenvolva formas de adquirir, desenvolver, criar conhecimento do que apreender o já existente;

3. São as necessidades do estudante que devem dirigir o processo de ensino-aprendizagem; 4. É papel da educação acostumar-se à nova dinâmica social, ao contrário de se manter enrijecida por “velhos” e “rígidos” conhecimentos, não mais cabíveis em uma sociedade “na

qual as transformações em ritmo acelerado tornam os conhecimentos cada vez mais provisórios [...]” (DUARTE, 2011, p. 47).

Esses quatro posicionamentos, em maior ou menor grau, estão presentes na Apresentação do documento aqui analisado. Quando se fala em desenvolvimento do cidadão “autônomo”, “livre”, estamos diante dos dois primeiros posicionamentos valorativos apresentados por Duarte. De modo menos explícito o terceiro posicionamento pode ser encontrado na seção “a escola que também aprende” e quando se fala em uma escola que deve direcionar seu ensino para o que o aluno irá aprender e não para o que o professor irá ensinar (SÃO PAULO, 2011, p. 16). O quarto posicionamento está presente de modo absolutamente explícito na seção “Articulação com o mundo de trabalho” e em qualquer momento do documento quando fala-se em articular as competências e saberes de acordo a nova realidade, da “sociedade do conhecimento”. Sem qualquer problematização da estrutura social, quase que a naturalizando, o documento simplesmente orienta o professor a articular os saberes com o “mundo do trabalho” sem, contudo, problematizar qual é o contexto no qual o aluno será inserido na maioria dos casos: trabalho assalariado e todas as contradições que decorrem disso.

Duarte (2011) questiona essa forma de organizar a educação escolar. Ele argumenta que se o segundo posicionamento valorativo fosse aplicado até as últimas consequências, “[...] essa

ideia acaba por esvaziar o processo educativo, descaracterizando-o totalmente” (DUARTE,

2011, p. 43). Quanto à “articulação com o mundo trabalho”, o autor não se utiliza de meias palavras. De acordo com os referenciais do mesmo, o “aprender a aprender” aparece “como

uma arma na competição por postos de trabalho, na luta contra o desemprego”. 35

A “articulação com o mundo de trabalho” e o esvaziamento de conteúdo dialogam com a noção de “adaptabilidade” tão presentes nos documentos oficiais quanto à legislação educacional brasileira, influenciada pelo Relatório Delors (DELORS, 1998). Embora essa noção só esteja presente de modo indireto na Apresentação do currículo aqui analisado (SÃO PAULO, 2011, p. 25), ela é colocada no contexto em que a SEE-SP manifesta seu acordo com essa noção conectada à educação. Quanto à relação desta noção de “adaptabilidade” com o lema “aprender a aprender”, explica Duarte (2011, p. 49):

O “aprender a aprender” aparece assim na sua forma mais crua, mostra assim seu verdadeiro núcleo fundamental: trata-se de um lema que sintetiza uma concepção educacional voltada para a formação da capacidade adaptativa dos indivíduos.

Neste contexto, “capacidade adaptativa” refere-se exatamente à formação do indivíduo adequado ao “novo contexto”, que longe de ser o da “sociedade do conhecimento”, é o contexto da mão de obra barata, em que a mão de obra especializada, que implica aquisição de conhecimentos, esteja cada vez mais em segundo plano. Ou seja, a sociedade capitalista impõe uma situação em que desenvolver habilidades específicas em seres humanos, desenvolver seres humanos que conhecem algo de modo aprofundado é algo indesejável.

Na linha desenvolvida por Duarte (2011), Sawaya (2012) também avalia que as reformas educacionais atualmente desenvolvidas e aplicadas no Brasil estão amplamente amparadas ideologicamente pelos princípios estabelecidos no Relatório Delors, em que predominam as necessidades do mercado em detrimento da formação humana plena:

Assim, seguindo as diretrizes internacionais, a formação do aluno no Brasil passou a ter como pilares aqueles definidos pelo Relatório Delors (1996): “aprender a aprender”, “aprender a ser”, “aprender a fazer” [...] “Sujeitos do saber”, nos quais o conhecimento é meio e não mais fim da educação, é o próprio conceito de formação que foi posto em discussão e reformulação [...]

O que se coloca é a necessidade da formação visar o desenvolvendo (sic) no aluno das habilidades e atitudes compatíveis com a flexibilização do mercado de trabalho, com as demandas da sociedade por pessoas que possam armazenar e processar rapidamente as informações, que saibam aplicá-las de modo criativo, analisando o caso, resolvendo problemas, trabalhando em grupos, sabendo ouvir e expressar pensamentos (SAWAYA, 2012, p. 63 – grifo nosso).

A autora promove ainda importante contribuição com respeito ao sentido de cidadão “autônomo” presente no relatório Delors e transplantado aos documentos nacionais:

Num discurso paradoxal, o conceito de formação se viu confrontado com as exigências do mercado de trabalho competitivo e com a preocupação com a centralidade do indivíduo em formação como “sujeito do próprio saber”. Quem não conseguir se autoformar e se introduzir no mercado de trabalho está fadado à exclusão social, inviabilizando, portanto, a conquista de uma autonomia pessoal (idem, Flickinger, 2009). Não são as necessidades humanas o centro das preocupações pedagógicas, ainda que o discurso dê voltas e recoloque como papel da formação e do professor, a incumbência de formar o indivíduo para administrar as inseguras e incertezas tomadas agora como problema pedagógico e didático (SAWAYA, 2012, p. 66).

Não só a noção de “autonomia”, mas muitas outras são utilizadas nos documentos oficiais contemporâneos e, caso presos no terreno simbólico, ficamos incapazes de desvendar os significados ocultos desse discurso, suas inscrições históricas no cotidiano escolar. E estas inscrições podem garantir não só a produção, mas a reprodução de concepções de mundo. Bourdieu (1998) já analisava as estratégias neoliberais, em nível simbólico, para colocarem suas propostas em disputa camuflando os reais interesses das classes dominantes por detrás delas, o que também nos ajuda a compreender e buscar um aprofundamento para além do discurso:

Não se diz mais ‘patronato’, diz-se ‘as forças vivas da nação’; não se fala em demissões, mas de ‘cortar gorduras’ [...] Há também todo um jogo com as conotações e as associações de palavras como flexibilidade, maleabilidade, desregulamentação, que tendem a fazer crer que a mensagem neoliberal é uma mensagem universalista de libertação (BOURDIEU, 1998, p. 44).

Porém, esse discurso não frui e é difundido simplesmente por ser uma “boa” ideia, ou pela beleza de sua exposição. Há inscrições sociais, marcas deixadas na sociedade e nas escolas que permitem que esses ideais sejam propagados. Junto a um belo discurso, há condições concretas que de legitimação dos mesmos, condições essas determinadas pelos próprios produtores do discurso.

Assim, Duarte (2011), Sawaya (2012) e Bourdieu (1998) nos fornecem uma lente pela qual é possível enxergar algo que antes era invisível. Ao contrário de prover cidadãos amplamente desenvolvidos, o que a reforma educacional levada no Brasil desde 1996 realmente parece promover é a submissão absoluta da escola formal aos interesses do mercado de formação por meio de uma proposta pedagógica que promova o esvaziamento de conteúdos a partir do discurso do “aprender a aprender”, voltando o processo de ensino-aprendizagem para os interesses dos alunos, como se esses fossem puros e não influenciáveis. Tudo isso está presente no Currículo oficial do Estado de São Paulo de modo consciente ou não e cabe a nós enxergar como esses princípios estão presentes no Currículo de Arte.

Antes de encerrar essa seção, acreditamos ser nosso dever afirmar que, em tempos de Reforma do Ensino Médio, onde nem ao menos conteúdos específicos são elaborados para o componente curricular Arte, presenciamos um aprofundamento das reformas educacionais do fim do séc. XX no Brasil. Reformas estas que se fazem presentes no atual currículo oficial do Estado de São Paulo e no próximo que no momento em que escrevemos esta dissertação está em seu processo de finalização.