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O AUTOR NA FICÇÃO TELEVISIVA BRASILEIRA

No documento irisdearaujojatene (páginas 75-79)

Elemento imprescindível do cerimonial narrativo é o narrador, receptáculo do saber, do conhecimento e da verdade, instituidor do ser, cujo discurso dá sentido ao tempo futuro, ou seja, àquilo que ainda não é. É aquele que conhece e, portanto, domina o tempo e as coisas por saber-lhes o segredo. É dele que vem a palavra instauradora, modificadora, é ele o libertador do ouvinte de sua subjetividade, de seu particularismo e de sua insignificância. (COSTA, 2000, p. 48)

No livro Autores – história da teledramaturgia brasileira, editado pelo projeto Memória Globo, em 2008, fica claro que a noção de autor, no que se refere à televisão brasileira, focaliza-se nos roteiristas: a obra traz, em dois volumes, entrevistas com os principais autores-escritores da teledramaturgia da emissora carioca. Glória Perez (vol. 1, p. 423), uma dessas profissionais, define a si e aos seus colegas como ―[...] contadores de histórias, independentemente de todas as modificações que surgirem. Enquanto houver gente no mundo, vai haver gente interessada em história de gente. Isso é que é o essencial‖. Em outras palavras, autores de teledramaturgia ―são cidadãos tecendo, com arte, histórias que seduzem pelos recursos ficcionais, alicerçadas, edificadas e sustentadas pelo real vivido nos embates diários do nosso mundo individual e social‖ (MOTTER, 2003, p. 42).

Contudo, as discussões acerca de autoria podem ser muito mais complexas. Segundo as pesquisadoras Maria Carmem Jacob de Souza e Maria Helena Weber (2009, p. 81), a definição de autor na ficção seriada (de telenovelas a minisséries, por exemplo) pode ser bem diferente da definição de autor em outros gêneros ficcionais, como os sitcoms. Além disso, tal conceito pode variar dependendo do sistema comunicacional de produção de cada país. ―A televisão brasileira distinguiu-se das emissoras latino-americanas ao credenciar os escritores com o estatuto de autor‖, explica Lisandro Nogueira em seu livro sobre autoria na televisão (2002, p. 138).

(...) quando nós falamos de telenovela brasileira, nós não podemos esquecer uma dimensão fundamental que é a importância dos autores, que têm uma presença marcante nesse gênero de ficção, ao contrário de outras telenovelas, onde o produtor é mais importante, onde o autor é apenas parte da engrenagem e as decisões são tomadas em outros setores que não o setor da autoria. Em vários países, inclusive na telenovela latino-americana, não há essa forte identidade autoral. Então, uma característica muito importante da telenovela brasileira é essa forte identidade autoral, as marcas fortes da autoria (...). (FADUL apud MALCHER, 2009, p. 138)

É, pois, fácil perceber que ao nos referirmos ao autor de uma telenovela, não nos referimos ao mesmo papel do autor no cinema norte-americano. Por isso, quando nos referimos a um filme de Martin Scorsese, por exemplo, bem sabemos que ele é o diretor da obra. Por outro lado, na televisão dos Estados Unidos, bem como na América Latina, o que prevalece é a figura do autor-produtor: ―[...] aquele que, além de [...] ser o criador do texto e o supervisor daqueles que o ajudam na redação, atua como produtor executivo [...]‖ (NOGUEIRA, 2002, p. 21). É comum, portanto, assistirmos a um seriado americano da Fox ou a uma novela mexicana da Televisa, isto é, com a autoria atribuída às empresas que as produzem. Na teledramaturgia brasileira, contudo, dizemos que determinada minissérie é de Maria Adelaide Amaral, pois ela é a roteirista principal da trama, mesmo reconhecendo-se que se trata de um produto coletivo. Ainda assim, vale reconhecer que as primeiras discussões de autoria na TV vieram do cinema.

Foi no cinema que se buscou o marco inicial para analisar a possibilidade de se confirmar o termo autor para escritores de telenovelas. A política dos autores – o destaque de um autor no cinema dentro da tradição autoral, já existente na pintura e na literatura –, a despeito da reversão de expectativas, gerada nos dias de hoje, na qual se diz que o autor está morto, ainda reflete significações que lhe dão continuidade e subsistência. [...] A televisão brasileira retém alguns pressupostos que levam à chancela de autor para designar aqueles que escrevem suas ficções seriadas.

A noção de autoria na televisão surge na perspectiva de identificar as ligações entre os resultados das experiências estéticas, sociais e políticas dos anos 50 e 60, destacando-se como referência o cinema, e as reflexões acerca da indústria cultural brasileira nos anos 70, 80 e 90. (NOGUEIRA, 2002, p. 16)

Mesmo à primeira vista, parecendo clara a definição de autoria dentro da televisão brasileira, não se pode ignorar que o desenrolar de um texto ficcional seriado aberto, como a telenovela, não está totalmente nas mãos de seu roteirista: é a ideia de ―obra aberta‖. Isto é,

um produto sujeito a alterações em sua produção, que ocorre simultaneamente à sua exibição, de acordo com interesses dos produtores, patrocinadores e, principalmente, do público receptor.

Diferente das telenovelas, as minisséries são consideradas ―obras fechadas‖, pois normalmente já estão finalizadas quando vão ao ar. Mesmo assim, Anna Maria Balogh (2002) lembra que o processo de produção de uma obra televisiva passa pelas mãos de diversos profissionais antes de ser exibida. Assim, além do autor-escritor, a trama passa pelas mãos de diretores, figurinistas, cenógrafos e até os intérpretes, que vão imprimir – em menor ou maior grau – suas próprias marcas discursivas. Além disso,

A característica da produção seriada da televisão impede que exista a figura do diretor nos moldes do cinema. O controle de todo o processo de produção encontra- se nas mãos do produtor (emissora) que, dependendo do escritor e do contexto histórico [...] divide responsabilidades, confia algumas decisões e até mesmo perde o domínio sobre o final da telenovela [...]. (NOGUEIRA, 2002, p. 138)

Mesmo assim, não se pode ignorar que a presença deste ou daquele autor- roteirista em determinada obra nos proporciona uma ideia, uma ―promessa‖2

sobre o tipo de produto que estamos consumindo: seu tipo, gênero narrativo, temas e o modo de organização poética dos textos e da linguagem. ―O nome [do autor] enuncia e classifica a natureza da obra, ou melhor, ‗estabelece ligações‘ do nome de quem faz com aquilo que foi feito [...]‖ (SOUZA, M. e WEBER, 2009, p. 87). Maria Lourdes Motter (2003, p. 122) completa: ―No processo de criar, o autor vai, paulatinamente, avançando no conhecimento de seu próprio mundo interior, ampliando sua clareza ideológica e trazendo para sua ficção, sempre mais definidas e centralizadas, as inquietações do sujeito da criação‖.

Entretanto, essas marcas de autoria não são impressas apenas pelos profissionais envolvidos no roteiro: incluem também a emissora, o horário dentro da programação, entre outras molduras. A emissora-produtora também imprime suas marcas ao ser responsável pela

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escolha do elenco, da trilha sonora, inserção na grade de programação, entre outros. Ao diretor na teledramaturgia brasileira, por sua vez, é atribuído o papel de mero realizador de tarefas (NOGUEIRA, 2002, p. 96). O que não o impede de fazer parte das marcas de autoria: é comum que autores-roteiristas repitam parcerias com os mesmo diretores, além de haver afinidades profissionais com determinados gêneros, como é o caso de Jorge Fernando e a comédia. Mas o fato é que

O espaço das telenovelas explora as relações intertextuais entre ficções seriadas. O analista precisa ter um repertório sobre este assunto para que saiba localizar e comparar as telenovelas entre si. Repertório sobre as obras e sobre os modos de fazê-las em cada momento da história de produção destas obras. Este momento da pesquisa é que auxilia a comparação com outras obras expressivas (outras ficções seriadas, filmes, romances etc.) que porventura tenham sido incorporadas na tessitura das telenovelas já produzidas, nas recentes e nas que são examinadas (SOUZA, M. e WEBER, 2009, p. 84)

Em suma, nas narrativas ficcionais televisivas brasileiras, para além do gênero, diversas molduras colaboram para a noção de ―promessa‖ defendida por Jost (2004; 2007; 2012). A emissora, a recepção do público, o diretor, os atores e personagens, tudo colabora para delinear expectativas sobre a obra apresentada. O autor-roteirista, contudo, é o nome que se destaca nesse processo. Quando Benedito Ruy Barbosa transferiu-se para a Manchete no último ano dos anos 1980, por exemplo, sua novela Pantanal manteve uma das principais

marcas desse autor: o ruralismo e as paisagens bucólicas.

Os autores das minisséries aqui estudadas também imprimem suas próprias

marcas autorais. Maria Adelaide Amaral, autora de Dalva e Herivelto, é conhecida mais por

suas minisséries que por suas novelas – até agora apenas remakes3 para as 19h. Ela também é

acostumada a retratar personagens reais em suas tramas do horário noturno. Maysa, por sua vez, foi apenas a segunda minissérie de Manoel Carlos e a primeira vez em que ele retratou personagens reais. Das suas marcas, ele manteve apenas os abastados protagonistas,

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Como autora principal, Maria Adelaide Amaral escreveu os remakes de Anjo Mau (1997) e Ti-ti-ti (2010). Ambas têm texto original de Cassiano Gabus Mendes (1929-1993) e foram exibidas pela Rede Globo.

transferindo-os do bairro carioca do Leblon – cenário comum em suas novelas – para a elegante Copacabana dos anos 1950, passando pela Avenida Paulista, em São Paulo, e, por fim, alcançando a Europa.

No documento irisdearaujojatene (páginas 75-79)