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5. DISCUSSÃO

5.1 O brandscape hegemônico da indústria de alimentos

As estórias contadas pelos executivos parecem seguir roteiros derivados de um mito sobre a indústria de alimentos, com suas recompensas e consequências. (Levy, 1981)

A estrutura mítica está presente nos sentidos atribuídos à indústria, aos alimentos industrializados, ao seu papel como gestores, aos seus opositores e aos demais atores.

Como uma heroína, a indústria surgiu para solucionar o conflito da escassez, tornando os alimentos acessíveis aos que tinham fome. Mais tarde, a sua praticidade libertou as mulheres, para que desempenhassem papeis além do de dona de casa. Na contemporaneidade, equaciona o problema da falta de tempo. Isso sem contar o seu poder para o prazer e a recompensa.

Com o passar do tempo, a euforia despertada pelos feitos da heroína começou a se misturar a um conflito de sentimentos. A culpa é dos vilões. Vilões não humanos (ingredientes) e vilões humanos (ativistas). Os heróis falam a verdade, os vilões mentem ou distorcem a realidade.

Em um universo baseado nas relações entre os “goods” e os “bads”, os vilões conseguiram plantar a dúvida a respeito de qual lado estava a heroína: do bem ou do mal?

Múltiplos atores atacaram e contra-atacaram, fazendo uso de mitos, contramitos (Kristensen, Boye, & Askegaard, 2011) ou desvalorizando um existente. (Arsel & Thompson, 2011)

“Que nem o ovo: é bom, não é bom. Ninguém sabe responder até hoje, uma hora é bom, outra hora não é bom.”

“Só para desmistificar um pouco, que quando você olha lá 700 miligramas, esse número assusta, entendeu? Óbvio que tem mais sal do que deveria? Tem, tem mais sal do que deveria. Mas, significa que eu estou consumindo naquele negócio... acho que as pessoas quando elas fantasiam, elas imaginavam uma colher de sopa...”

Muitas vezes, a tensão presente nas estórias também era ideológica. As narrativas sobre os ativistas, por exemplo, os descreviam como antagonistas fechados ao diálogo, radicais, xiitas e, até mesmo, membros de um tipo de seita. Parecia que, ao incorporá-los à estrutura mítica dos radicais religiosos, a relevância do significado era potencializada. (Luedicke, Thompson & Giesler, 2009)

“Nós queremos transformar. Eles querem destruir.”

“Alguns profissionais formaram algo parecido com uma seita. Uma legião de nutricionistas que está sendo formada para odiar a indústria. Sendo que a indústria precisa cada vez mais delas.”

“Tenho aversão aos ativistas. O fundamentalismo e o ativismo em exercício têm um poder de transformação muito tímido.”

Por outro lado, ao descreverem as suas práticas, surgiram termos também associados a uma ideologia religiosa: “a culpa também é do indivíduo que está fazendo a escolha”; “você já não merece cuidar da alimentação de uma população, entendeu?”; “a tentação de crescer é muito grande para todo mundo”, “demonização da indústria”. E trabalhar com marcas de indulgência realmente parece redimir os pecados:

“Toda categoria tem o seu vilão. Mas, se tem um segmento que não é atacado (...) é o chocolate. Quase como se tivesse permissão. Porque é uma equação que está valendo. É indulgência? Beleza (...). É como se ele te desse uma razão para ser consumido.” Alguns executivos assumiram o papel de amigos da heroína, cuja missão é “driblar os vilões”, propagar os seus feitos e o seu compromisso com a evolução.

“Um caldo, na configuração que ele é, um cubinho, é muito diferente de um caldo que eu faria na minha casa. Você tem que desmistificar muito mais. É mais complexo você explicar para ele que aquilo ali pode ser um caldo como você faria na sua casa.”

Para esses grupos (os da “cautela”) o foco deve estar no controle dos sintomas de desequilíbrio, alinhado ao que Webster & Lusch (2013) chamaram de marketing mais antigo:

1. Está centrado na crença do consumidor individualista e imediatista; no foco em problemas e resultados de curto prazo; na oferta de produto e funcionalidade, e não uma proposta de valor:

“Já deveria ter sido feito. O problema é que... o que ia acontecer? Isso pressupõe um custo enorme. Aí, se você faz há cinco anos atrás quando ninguém estava falando nisso, você seria super vanguarda e ia querer cobrar 20 por cento. Ninguém pagaria.” “Não consomem. Não consomem [ênfase]. Elas podem até experimentar, elas podem até ser movidas num primeiro momento pelo conceito [de um produto melhor], mas o conceito tem que trabalhar a serviço do sabor, e não o contrário. [...] Foram vários lançamentos. Não vingou. Nada disso existe mais.”

2. Não percebem os impactos das próprias práticas. Por exemplo, como será que as pessoas construíram um imaginário de que suco em pó é saudável?

“As pessoas tem a percepção que o suco em pó é mais saudável que o refrigerante. Elas têm no imaginário delas que aquilo é fruta ralada, fruta em pó.”

3. Na maior parte do tempo, fornecem a informação, mas não educam o consumidor: “E a gente é bem claro nos claims, está bem na frente da embalagem.”

Entre as consequências desse tipo estratégia, Webster & Lusch (2013) destacaram a criação de um vício em preços baixos. Exatamente uma das dificuldades apontadas pelos executivos, os consumidores não aceitarem pagar preços maiores. Por sua vez, o preço baixo como elemento central da estratégia de marketing pressiona a busca por matéria-prima e mão-de-obra de baixo custo, que são encontradas em países pouco desenvolvidos. Ou seja, satisfazer

consumidor e empresa no curto prazo provoca problemas sérios e muito abrangentes no longo prazo. Situação também descrita por um dos entrevistados, enquanto falava da produção de cacau na África.

Por enquanto, o mito da indústria está mantendo a inércia institucional por meio de suas narrativas e práticas (Humphreys & Thompson, 2014):

“A [nome de uma executiva] participa da ABIA. Então, ela sabe como estão as discussões, tanto para a [marca corporativa] como para a [marca corporativa concorrente]. Como as empresas se alinham no final das contas, que é muito louco. Em vários momentos ela fala “ah, porque a gente está se alinhando com a [concorrente]. Eu falava ‘hã?’ que isso para mim não casava na minha cabecinha. E isso acontece. Afinal...(acha graça)”

“Por exemplo, essa lei [primeiro ingrediente da lista] existe para o que é ingrediente. Então, no caso de um tempero, se você tem sal, açúcar, louro, são ingredientes. Se você tem aditivos que são os artificiais, por exemplo, glutamato monossódico, na legislação brasileira ele vai ao final da lista sempre, independe de você ter 80 por cento dele dentro de um saquinho.”

Porém, os discursos conflitantes já estão catalisando o início das transformações no mercado da alimentação. Dois bons exemplos são (1) a criação de espaço para as startups, com inovações em produto (Thompson, 2004) e construção de suas marcas do bem (Ulver-Sneistrup, Askegaard & Kristensen, 2011); (2) o surgimento da tensão entre o modelo de negócio adotado pela indústria e a compreensão de alguns executivos a respeito de como os negócios deveriam ser (os grupos da “coragem”).

Esses grupos já não são amigos incondicionais da heroína. Ao invés de tratarem os sintomas, eles querem que a indústria mude o seu estilo de vida.

“Dilema do lucro do acionista. A sabedoria da grande empresa deveria ser convencer o acionista que no longo prazo o double digit virá de genuinamente fazer essa transição. Caminho sem volta.”

“Na minha empresa anterior, a ética era compliance. Os executivos lá precisam buscar o tempo todo aumentar a penetração da categoria, doa a quem doer.”

Em suas falas, uma percepção sistêmica do contexto:

“Esse mundo é muito grande. Quando você está dentro da grande empresa, fica horas e horas e não olha as coisas acontecendo lá fora e quando você começa a se conectar, percebe que existe um universo lá fora.”

“A gente não sabe o que vai acontecer, né? Mas, está tudo entrelaçado.”

“Às vezes eu acho que para a presidência e tudo, não está clara a questão. É como se fosse ‘ah, isso é mais uma parte do quebra-cabeça, mais um segmento que tem que entrar’”

Entre as prioridades da visão sistêmica proposta por Webster & Lusch (2013), foi possível encontrar evidências das seguintes:

1. Ofertar valor e não preço:

“Eu trabalho com nutrição. Estou procurando pessoas que estão procurando compreender a respeito disso.”

2. Reconhecer que o sistema de marketing da indústria tem participação nos problemas de saúde pública:

“Não tem outro jeito, porque o que acontece é que a não regulação de uma indústria alimentícia é problema de saúde pública e saúde pública é gasto e o governo está quebrado.”

3. Enxergar o consumidor como um cidadão cada vez mais propenso a considerar as consequências sociais em suas escolhas:

“Hoje ele não compra pela causa. Compra pelo sabor. E tudo bem, ele comprando já está impactando socialmente. Isso leva tempo mesmo.”

4. Reconhecer que o cidadão-consumidor precisa ser convencido a ser um parceiro responsável, antes mesmo de ser seu comprador:

“A indústria ainda é muito dependente de fazer produto barato para ganhar dinheiro. E eu acho que vai ter que ter reequilíbrio de todo mundo, até dos consumidores que hoje também querem escolher um produto mais barato.”

5. Atrair e desenvolver funcionários com interesse e conhecimento necessário para a criação de valor:

“Eu acho que se as pessoas que já entenderam e que estão a fim de mudar não estiverem aqui dentro, nós vamos fazer como? Tipo, se você está cagando para o que vende, se nutrição é uma que você não entende o quanto impacta na sua vida...” “Na verdade, os projetos vão sendo de acordo com quem lidera, e depende das brigas que quer comprar, essa é a real. Porque para lançar um produto como esse a gente comprou muita briga.”

6. Não temer educar o cidadão-consumidor a realizar a melhor escolha para ele: “Em relação à comunicação, é construir escolha consciente. A [...] deveria dar escala para esse discurso.”

7. Compreender que, nos dias de hoje, o caráter da própria companhia se torna a parte mais importante de sua marca:

“Uma marca linda, muito propósito, muita verdade...”

“Acho que as pessoas são livres. Nós todos no mundo estamos tentando fazer o melhor. Quando você está buscando o melhor possível, mesmo errando, está valendo. Eu me sinto muito mais tranquilo trabalhando em uma empresa onde o drive não é volume, mas a ética.”

Qual seria a explicação para que profissionais com visões tão diferentes compartilhem os sentidos atribuídos aos ativistas?

Embora apenas três entrevistas tenham sido realizadas com executivos que resistem à grande indústria (dois saíram dela e um líder da organização da sociedade civil), as narrativas

se assemelharam a outras narrativas de resistência presentes em documentários, séries, palestras e redes sociais. Por esse motivo, cabe apresentar uma inferência.

Parece que, mesmo construídos para resistir, os discursos ativistas fazem parte do

brandscape hegemônico da indústria (Thompson & Arsel, 2004), porque continuam utilizando

roteiros de batalhas entre os heróis que falam a verdade e os vilões mentirosos, assim como remetem a uma ideologia também religiosa (Kozinets & Handelman, 2004) quando constroem imagens semelhantes a Davi enfrentando Golias ou quando usam o sentimento de culpa como recurso.

A adoção dessas táticas provoca reações e sentimentos negativos nos “amigos da indústria-heroína”:

“O que me revolta na posição deles é [...] não se aliarem à indústria, puxando a indústria no sentido de dar ao consumidor algo que esteja extremamente positivo para a saúde.”

“Eu odeio essa história de radicalismo alimentar (...) o vegano é um dos que mais me irrita profundamente.”

E, para aqueles que adotam a visão sistêmica, os ativistas praticamente não são lembrados no momento de planejar as marcas. Para eles, o sentido é esvaziado quando não é assumida a complementariedade de papeis, porque acreditam em resultados obtidos por forças coprodutivas (Aspara et al., 2014). A abordagem dos ativistas soa tão antiga quanto as práticas de marketing de abordagem econômica:

“Eles não chegam tão perto da gente. É difuso.”

“Eu acho que eles não têm uma voz que seja suficiente. Eu vejo essa voz de muito nesses influenciadores, têm uns mais qualificados, outros menos.”

Uma vez que as diferenças entre as visões estratégicas não vieram dos sentidos atribuídos ao trabalho dos ativistas, qual processo transformou o ponto de vista dos grupos da “coragem”?

Embora as entrevistas não tenham sido conduzidas com o objetivo de responder a essa pergunta, os dados coletados foram retomados mais uma vez. Não apenas as transcrições, mas os áudios e as anotações feitas após as entrevistas. O objetivo era recuperar algum sinal que pudesse ser importante, mas que acabou sendo diluído dentro das categorias de análise. Foram retomados, também, os demais agrupamentos de categorias testados e que não haviam sido utilizados.