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O Brasil e o grupo dos Brics

No documento 10 Anos Governos Lula (páginas 48-54)

José luís Fior

6. O Brasil e o grupo dos Brics

Fora de seu “entorno estratégico” imediato, a iniciativa diplomática mais expressiva do Brasil, na primeira década do século XXI, foi sem dúvida sua participação no grupo político e diplomático dos Brics, ao lado de Rússia, índia, China e áfrica do Sul.

6.1. A origem e as dimensões do grupo

O acrônimo foi usado pela primeira vez em 2001, mas só se transformou em um fe- nômeno diplomático e simbolizou um agrupamento político a partir da reunião dos chanceleres dos quatro primeiros “sócios” do grupo, durante a 61a Assembleia Geral

das nações unidas, em setembro de 2006. E foi só na 1a Cúpula, de Ecaterimburgo,

na Rússia, em 2008, que o agrupamento alcançou o nível de chefes de Estado e de governo. Depois, seguiram-se as reuniões da 2a Cúpula, de Brasília, em abril de 2010,

a 3a Cúpula, de Sanya, na China, em abril de 2011, quando foi admitida como sócia a

áfrica do Sul, e a 4a Cúpula, de nova Déli, na índia, em março de 2012. A próxima

deverá ocorrer na cidade de Durban, na áfrica do Sul, em abril de 2013. A somatória simples indica que o peso demográfico e econômico dos Brics é considerável. Juntos, os cinco países governam cerca de 3 bilhões de seres humanos, quase metade da população mundial. E, entre 2003 e 2007, o crescimento do grupo representou 65% da expansão do PIB mundial; em 2003, os Brics respondiam por 9% do PIB mundial e, em 2009, o valor havia aumentado para 14%. Em paridade de poder de compra, o PIB dos Brics já supera hoje o dos EuA e o da união Europeia. Em 2010, o PIB con- junto dos cinco países – considerado pela paridade do poder de compra – havia alcan- çado já 19 trilhões de dólares, ou seja, 25% do PIB mundial.

na geopolítica das nações, entretanto, semelhanças econômicas e afinidades ideo- lógicas só operam com eficácia quando coincidem com os interesses e as necessidades dos países, do ponto de vista de seu desenvolvimento e segurança. Desse modo, a formação de um grupo político de cooperação diplomática e de um espaço econômico com fluxos comerciais e financeiros mais ou menos significativos entre o Brasil, a Rússia, a China, a índia e a áfrica do Sul é um fato novo e pode vir a ser a base mate- rial de algumas parcerias setoriais e localizadas entre todos ou alguns desses países. Mas é muito pouco provável que só isso seja suficiente para justificar uma aliança es- tratégica de longo prazo entre os cinco países.

6.2. A heterogeneidade do grupo

São cinco países que ocupam posição de destaque, nas suas respectivas regiões, devido ao tamanho de seu território, de sua população e de sua economia. Mas, ao mesmo tempo, são cinco países completamente diferentes, do ponto de vista de sua história, de sua inserção internacional, de seus interesses geopolíticos e de sua capacidade de implementação autônoma de decisões estratégicas.

6.2.1. Rússia

Logo depois da dissolução da união Soviética e durante toda a década de 1990, muitos analistas vaticinaram o fim da grande potência, que ingressou no cenário europeu com

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as guerras de conquista de Pedro, o Grande, no início do século XVIII. Mas a Rússia é um império e uma civilização milenar que já foi destruída e reconstruída muitas vezes no decorrer da história. Por isso, não surpreende que, já a partir de 2000, com o primeiro governo de Vladimir Putin, a Rússia tenha iniciado um rápido processo de reconstrução do seu Estado e da sua economia, tenha retomado e reerguido seu com- plexo militar-industrial, tenha se reaproximado da China e tenha explicitado claramen- te sua disposição de refazer sua antiga “zona de influência” na ásia Central, nos Bálcãs e em parte da Europa do Leste. A Rússia manteve o arsenal atômico da uRSS e, no ano 2000, os líderes militares e civis russos alertaram os Estados unidos sobre a possibili- dade da retomada da corrida nuclear, caso os norte-americanos insistissem no seu projeto de instalação de um sistema antimísseis na fronteira russa. no início de 2007, a Rússia alcançou o nível de atividade econômica anterior à grande crise dos anos 1990 e reassumiu seu lugar como grande fornecedor de armamento e tecnologia militar para a China, a índia e o Irã, além de vários outros países ao redor do mundo, incluindo recentemente a Argentina e a Venezuela. De tal maneira que, apenas vinte anos depois do fim da união Soviética, todos os sinais indicam uma nova onda de modernização da economia russa, associada à retomada dos objetivos estratégicos seculares do país, como aconteceu em outros momentos de “reconstrução” da história da Rússia e da própria união Soviética. trata-se de um país que já foi a segunda maior potência mundial e que possui o maior estado territorial do mundo, dotado de uma enorme capacidade de resistência militar e econômica, como ficou comprovado nas guerras napoleônicas e na Primeira e Segunda Guerra Mundial.

6.2.2. China e índia

A China e a índia também possuem civilizações milenares e controlam em conjunto um terço da população mundial. Além disso, possuem entre si 3.200 quilômetros de fronteira comum, afora as fronteiras que ambas têm com Paquistão, nepal, Butão e Myanmar. Além disso, China e índia têm territórios em disputa, guerrearam entre si nas últimas décadas e são potências atômicas. Dentro do xadrez geopolítico asiático, os indianos consideram que as relações amistosas da China com o Paquistão, Bangladesh e Sri Lanka fazem parte de uma estratégia chinesa de “cerco” da índia e de expansão chinesa no Sul da ásia, a “zona de influência” imediata dos indianos. Por sua vez, os chi- neses consideram que a aproximação recente entre os Estados unidos e a índia, sua nova parceira estratégica e atômica, faz parte de uma estratégia de “cerco” da China, caracterizando uma competição territorial e bélica, em torno da supremacia no Sul e no Sudeste da ásia, que envolve também os Estados unidos. A China vem investindo pesadamente na modernização de suas forças armadas, sobretudo do seu poder naval, com os olhos postos na disputa da hegemonia no Sudeste Asiático e nos oceanos índico e Pacífico.

A índia não apresenta, à primeira vista, as características de uma potência expan- siva e se comporta estrategicamente como um Estado que foi obrigado a se armar para proteger e garantir sua segurança numa região de alta instabilidade, onde sustenta uma disputa territorial e uma competição atômica também com o Paquistão, além da China. Mesmo assim vem desenvolvendo e controla uma tecnologia militar de ponta, como no

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caso do seu sofisticado sistema balístico e do seu próprio arsenal atômico, e possui um dos exércitos mais bem treinados de toda a ásia. Foi depois da sua derrota militar para a China, em 1962, e da primeira explosão nuclear chinesa, em 1964, logo antes da sua guerra com o Paquistão, em 1965, que a índia abandonou o “idealismo prático” da política externa de nehru e adotou a Realpolitik do primeiro-ministro Bahadur Shastri, que autorizou o início do programa nuclear indiano, na década de 1960. naquele momento, a índia assumiu plenamente a condição de potência nuclear e definiu uma nova estratégia de inserção regional e internacional.

6.2.3. Brasil e áfrica do Sul

O Brasil e a áfrica do Sul compartem com a China e a índia o fato de serem os Estados e as economias mais importantes de suas respectivas regiões, responsáveis por uma parte expressiva da população, da produção e do comércio interno e externo da América do Sul e da áfrica. Mas não têm disputas territoriais com seus vizinhos, não enfrentam ameaças internas ou externas a sua segurança e não são potências militares relevantes. Desde o fim do apartheid e do início da sua democratização, a áfrica do Sul se envolveu em quase todas as negociações de paz dentro do continente negro, mas sem jamais apresentar nenhum traço expansivo ou disposição para uma luta hegemônica dentro da áfrica. Pelo contrário, tem sido um Estado que se move com enorme cautela, talvez devido ao seu próprio passado racista e belicista. Desde o primeiro governo de Mande- la, a áfrica do Sul tem se proposto a cumprir um papel de ponte entre a ásia e a América Latina, mas o volume e o ritmo de crescimento do PIB sul-africano, o tama- nho de sua população, suas limitações militares e sua falta de coesão interna impedem que a áfrica do Sul possa aspirar a qualquer tipo de supremacia que não seja na sua região imediata, na áfrica Austral, ou na condição de um “Estado relevante” para os assuntos da áfrica negra. Por outro lado, o Brasil também nunca foi um Estado com características expansivas nem disputou a hegemonia da América do Sul com a Grã- -Bretanha ou com os Estados unidos. Depois de 1850, o Brasil não enfrentou mais guerras civis ou ameaças de divisão interna e, depois da Guerra do Paraguai, na dé- cada de 1860, o Brasil teve apenas uma participação pontual em conflitos internacio- nais, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, e algumas participações posterio- res nas “forças de paz” das nações unidas e da Organização dos Estados Americanos (OEA). Sua relação com seus vizinhos da América do Sul, depois de 1870, foi sempre pacífica e durante todo o século XX sua posição dentro do continente foi de sócio auxiliar da hegemonia continental dos Estados unidos.

6.3. Balanço e perspectivas

Com relação ao futuro dos Brics, o que se deve esperar para a próxima década é que a Rússia se dedique cada vez mais a reverter suas perdas da década de 1990 e a retomar suas posição dentro do núcleo central das grandes potências, enquanto a China deve se distanciar crescentemente do grupo e, aliás, de qualquer aliança que restrinja seus graus de liberdade de ação no tabuleiro internacional, uma vez que a China já vem atuando, em vários contextos, com a postura de quem comparte, e não de quem questiona, a atual “gestão” do poder mundial. O mesmo se deve dizer com relação à

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índia, que deve dedicar uma atenção cada vez maior às ameaças do seu “entorno es- tratégico”, onde a própria China aparece como seu grande rival regional. Por último, o mais provável é que a áfrica do Sul e o Brasil ampliem sua condição de Estados relevantes, mas ainda sem ter capacidade de projeção global de poder fora de sua zona imediata de influência.

Resumindo, o que se deve esperar, no médio prazo, é que o grupo dos Brics se transforme em uma iniciativa diplomática muito importante da primeira década do século XXI, mas que vai se exaurindo e extinguindo à medida que o século avançar. 7. Quatro notas finais

1. Depois da Segunda Guerra Mundial e mesmo depois do fim da Guerra Fria, a política externa brasileira foi inconstante e oscilou no tempo, mudando seus objetivos e estratégias, segundo o momento, o governo e a ideologia dominan- te. E dentro da sociedade, de suas elites e mesmo dentro de suas agências governamentais, houve mudança e divisões que impediram que se consolidas- se uma posição estratégica que permanecesse através do tempo. Em particular na relação do Brasil com a América do Sul e com a áfrica, é clara a dificuldade de definir e manter objetivos de longo prazo. Além disso, existe uma carência acentuada de uma rede de instituições ou think tanks fora do aparelho de Estado que cumpra o papel de reunir informações e ideias que formem a “massa crítica” indispensável para o estudo das alternativas e para a orientação inteligente da inserção internacional do Brasil. Sem informação crucial, sem mobilização da sociedade e sem coesão de seu establishment externo, é im- possível levar à frente uma política externa consistente de projeção internacio- nal, que não seja dependente de situações excepcionais.

2. um país pode projetar o seu poder e a sua liderança fora de suas fronteiras nacionais, através da coerção, da cooperação, da difusão das suas ideias e de seus valores e também através da sua capacidade de transferir dinamismo econômico para sua “zona de influência”. Mas, em qualquer caso, uma políti- ca de projeção de poder exige objetivos claros e uma coordenação estreita entre as agências responsáveis pela política externa do país, envolvendo a di- plomacia, a defesa e as políticas econômica e cultural. Sobretudo, exige uma “vontade estratégica” consistente e permanente, ou seja, uma capacidade social e estatal de construir consensos em torno de objetivos internacionais de longo prazo, junto à capacidade de planejar e implementar ações de curto e médio prazo através das agências estatais, em conjunto com os atores sociais, políticos e econômicos relevantes.

3. O grande desafio brasileiro, na próxima década, será construir um caminho de expansão e projeção do seu poder – dentro e fora do seu “entorno estraté- gico” – que não siga a trilha que já foi percorrida pelas grandes potências tradicionais. Ou seja, o Brasil terá de traçar uma estratégia de expansão do seu poder e da sua influência, que não reivindique nenhum tipo de “destino ma-

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nifesto”, que não utilize a violência bélica dos europeus e norte-americanos e que não se proponha a conquistar povos para “convertê-los”, “civilizá-los” ou simplesmente comandar o seu destino.

4. Mesmo assim, não haverá como contornar uma regra fundamental do sistema: todo país que ascende a uma nova posição de liderança regional ou global, em algum momento terá de questionar os “consensos éticos” e os arranjos geopo- líticos e institucionais que foram definidos e impostos previamente pelas po- tências que já controlam o sistema mundial. não está excluída a possibilidade e a necessidade de convergências e alianças táticas entre a potência ascenden- te e uma ou várias das antigas potências dominantes, desde que ela mantenha o objetivo permanente de crescer, expandir e galgar posições dentro do siste- ma internacional. Isso não é uma veleidade nacional nem se deve a nenhuma ideologia em particular; é um imperativo do próprio “sistema interestatal ca- pitalista”: nesse sistema, “quem não sobe cai”.

Recentemente, um trêfego analista da política externa brasileira – às vezes da interna também – decretou o “fracasso da Doutrina Garcia”, denominação na qual englobava o conjunto das ações exteriores dos dois governos Lula e da administração da presi- denta Dilma Rousseff. tudo se passa, para esse cristão-novo do conservadorismo, como para os mais velhos e respeitáveis conservadores, de um somatório de derrotas moti- vadas pelo abandono de valores tradicionais da política externa em favor de precon- ceitos ideológicos impostos pelos partidos hegemônicos no governo, especialmente o Pt, nesse período relativamente longo de nossa história republicana.

não é hora de responder a esses argumentos, que expressam desacordo, incom- preensão ou, até mesmo, inconformidade com a grande transformação em curso no país desde 2003. trata-se apenas de tomar nota desse e de outros monólogos encon- tráveis em boa parte da grande imprensa, sobretudo naquela onde não há espaço para qualquer tipo de resposta, sempre em nome de um centenário liberalismo político.

A análise histórica à chaud tem seu interesse, pois procura dar conta de aconte- cimentos recentes, quando não dos que estão em curso. tem, no entanto, o limite da excessiva proximidade com esses acontecimentos, o que impede de vê-los em um contexto mais amplo.

Em outro momento1, pus a nu o falacioso argumento dos que defendem uma polí-

tica externa “apartidária”, fundada em tradições e valores imutáveis. O fato de ser política

de Estado não exime a política externa de mudanças, motivadas não só pela alternância

política, própria às democracias, como pelas transformações internacionais – verti ginosas

1 Sobretudo em “O lugar do Brasil no Mundo: a política externa em um momento de transição”, em

Emir Sader e Marco Aurélio Garcia, Brasil entre o passado e o futuro (São Paulo, Fundação Perseu Abramo/Boitempo, 2000), p. 153-76.

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