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3. FRONTEIRAS FLUIDAS: Produção independente e mercados de TV entre o

3.3. NOTAS SOBRE A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

3.3.3. O campo público

Canais de televisão que compõem o chamado campo público se organizam como um segmento com regras específicas e perpassam os mercados de TV Aberta e fechada. Em essência, há na TV Pública o deslocamento da visão de audiência como consumidor (que orienta o campo privado) para audiência como o conjunto de cidadãos. Essa singularidade é demarcada na instância jurídico-regulatória, com repercussão nos modelos de financiamento do setor e nos modos de relacionamento com a produção independente.

Os estudos dedicados ao cenário brasileiro têm destacado a ausência de limites claros para distinguir os modelos de TV pública e estatal, somado ao predomínio absoluto do sistema privado93 (JAMBEIRO, 2000; 2001; RAMOS, 2006). Não raramente, os autores preferem adotar a noção de canais não-comerciais, dadas as nuances do setor.

Bucci (2013) chega a afirmar categoricamente que não há um campo de televisão pública no Brasil. A tendência à retirada do Estado frente ao fortalecimento do interesse privado e consequente mercantilização dos espaços e produtos culturais e de comunicação é um forte condicionante ao estabelecimento de uma efetiva rede pública nacional de televisão (JAMBEIRO; FERREIRA; MORAIS, 2016).

93 A Constituição de 1988 (art.223) prevê a coexistência de três modelos de televisão no país: estatal,

A análise dos modelos de financiamento (LOPES, I, 2015) e a histórica dificuldade orçamentária e de conquista de audiência (LEAL FILHO, 1988; 2009) também são aspectos enfatizados na literatura.

O que se convencionou chamar de campo público de televisão no Brasil têm como referência um diagnóstico apresentado por ocasião do I Fórum de TVs Públicas, em 2006 (MINC, 2006). Estão incluídas: emissoras educativo-culturais (TV Aberta), universitárias, comunitárias e institucionais, estas últimas se referindo aos canais dos três Poderes- Legislativo, Judiciário e Executivo (TV Paga).

As primeiras emissoras educativas foram implantadas no Brasil no final dos anos 1960, como parte do projeto de integração nacional do governo militar (BOLÃNO; BRITTOS, 2016)94. Criou-se o sistema educativo (TVEs), formado por emissoras não comerciais destinadas à transmissão de videoaulas, conferências e debates. Os telecursos, que mais tarde passam a compor a programação da Rede Globo, surgem nesse período.

Quase todos os entes federativos criaram suas TVEs, operando sob fiscalização e com nomeação dos gestores pelos governos estaduais. A TV Cultura de São Paulo95 é uma exceção, reinaugurada em 1969 sob gestão do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta96 e não sob controle do governo, seguindo os moldes da inglesa BBC (LEAL FILHO, 2009). Ainda assim, afirma Leal Filho (1988), uma vez que a Fundação compunha a estrutura do estado de São Paulo, sempre houve ingerências de natureza política.

A partir de 2007, o sistema público de comunicação no país passou a se organizar em torno da Empresa Brasil de Comunicação (EBC)97. A TV Brasil, criada com a estrutura da antiga Radiobrás e da TVE-RJ, seria o principal veículo da EBC e operaria como “cabeça de rede”, integrando as demais emissoras regionais inseridas no campo público, na perspectiva defendida pelo I Fórum de TVs Públicas no ano anterior.

94 Criadas pelo Decreto-Lei nº236/196. Caparelli (1982) indica a TV Universitária de Pernambuco

como a emissora educativa pioneira, criada em 1967.

95 A emissora havia sido criada em 1960, pelo grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Em

1967 o governo do estado de São Paulo abriu concorrência para a compra de uma emissora, resultando na aquisição da TV Cultura, que inicia sua segunda fase pautada em finalidades educativas e culturais (LEAL FILHO, 1988).

96 Criada em 1969.

97 Criada pelo Decreto nº 6.246/2007. O Decreto foi publicado com base na MP nº 398 e

Na prática, contudo, mais uma vez o caráter público se confunde com o estatal. A dissolução do Conselho Curador da EBC98- instância representativa da sociedade civil organizada- pelo presidente Michel Temer, em 2016, é sintomática do histórico controle da televisão pública pelo Poder Executivo. A EBC está vinculada à Casa Civil99.

A TV Brasil é custeada quase que totalmente pelo Estado, um modelo que se diferencia de um dos sistemas mais estruturados de televisão pública, o licence fee100

no Reino Unido. Na América Latina, os países têm avaliado cada vez mais a adoção de modelos mistos, com diversas fontes de financiamento, incluindo a publicidade, com limitações de inserção. Na Argentina, por exemplo, a publicidade faz parte do desenvolvimento da TV Pública (LOPES, I, 2014).

Emissoras do campo público no Brasil são proibidas de veicular publicidade de bens e serviços. Apoio cultural,101 publicidade institucional e publicidade dos órgãos da Administração Pública estão permitidos (BRASIL, 2008)

Além disso, essas emissoras estão submetidas à Lei Geral de Licitações (Lei nº8666/1993), que estabelece normas específicas para contratação de serviços, dentre outras ações. A aquisição de conteúdo independente deve observar este mecanismo.

Apesar dos fortes condicionantes, a TV Brasil é um dos espaços privilegiados de escoamento da produção independente nacional. Uma experiência significativa foi o Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro (DOCTV), entre 2003 e 2010102. Sua principal característica foi a regionalização da produção, com projetos de todos os estados do país.

De acordo com Karla Holanda (2013), o DOCTV teve resultados tímidos, não chegando a concretizar todos os objetivos propostos. A fragilidade institucional da rede pública de TV e os atrasos na liberação dos recursos foram as principais razões.

98 A medida foi determinada pela MP 744/2016, convertida na Lei nº13.417/2017

99 Conforme Lei nº 13.417/2017. Antes disso, a EBC se vinculava à estrutura da Secretaria de

Comunicação Social da Presidência da República (Lei nº11.652/2008).

100 No modelo licence fee do Reino Unido, o cidadão contribui diretamente com o financiamento da

televisão pública através do pagamento de taxas anuais. O pagamento incide sobre todo cidadão com televisor em sua residência.

101 “Pagamento de custos relativos à produção de programação ou de um programa específicos, sendo

permitida a citação da entidades apoiadora, bem como de sua ação institucional, sem qualquer tratamento publicitário”(Lei BRASIL, 2008, Art. 11º, $1º)

102 O Programa foi fruto de parceria entre Ministério da Cultura/Secretaria do Audiovisual (SAV), Fundação Padre Anchieta/TV Cultura e Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec). A gestão foi compartilhada entre a TV Brasil e as emissoras públicas estaduais, articuladas em torno da RedeDocTV, incluindo os recursos: 80% do Fundo Nacional de Cultura e 20% das TV’s estaduais.

Com mudanças na equipe gestora após a posse da presidente Dilma Rousseff, em 2011, o programa perdeu a continuidade. Mudança de gestão associada a transições de governo é um dos grandes calcanhares à manutenção de projetos no campo público e aos investimentos na produção independente em toda a trajetória brasileira.

Por outro lado, o programa teve desdobramentos, a exemplo do DOCTV América Latina (atual DOCTV Latinoamérica), DOCTV CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e DOCTV Colômbia (HOLANDA, 2013).

O DOCTV havia sido inspirado no DOC.Brasil (1998-2002), da TV Cultura SP, um núcleo de documentaristas coordenado por Mário Borgneth. A TV Cultura é responsável por algumas das passagens mais expressivas de alcance ao público, caracterizando uma exceção na trajetória de baixa audiência que marca o setor no país (LEAL FILHO, 2016)103.

Na TV fechada, a Lei do Cabo de 1995 declarou obrigatórios nos pacotes de TV por assinatura: canais legislativo, judiciário, universitário, educativo-cultural (vinculado ao Ministério da Educação) e comunitário (não-governamental). A Lei da TV Paga (2011) mantém a obrigatoriedade desses canais, ampliando o espectro para canais de cidadania e do Executivo.

O investimento em produção independente ocupa lugar importante nas ações de fomento para o campo público. A TV Brasil padronizou as normas de licenciamento de conteúdos em 2009, com destaque para os editais (EBC, 2009).

No mesmo ano, a emissora lançou o primeiro pitching para aquisição de projetos. Tal como na TV comercial, este tem sido o método preferencial adotado pela emissora para se relacionar com as produtoras independentes.

Desde 2014, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) opera linhas exclusivas para TV Pública, aprofundando a experiência do DocTV. Cada região do país conta com editais específicos (Prodav 08 a 12) e, além de documentários, são elegíveis projetos de ficção seriada, destinados aos públicos infantil, jovem e adulto, com temáticas e formatos previamente discutidos entre entidades representativas do setor.

Essas linhas do FSA/Prodav, em especial, são geridas pela TV Brasil, em parceria com a Secretaria do Audiovisual (SAv). Os resultados dos editais serão

103 Programas infantis nos anos 1990 como Castelo Rá-ti-bum se tornaram referência de qualidade no

Brasil e no exterior, repercutindo na audiência da emissora e influenciando emissoras comerciais como o SBT, que passou a investir em programação infantil para concorrer com a TV Cultura, inclusive com contratação de alguns profissionais daquela emissora (LEAL FILHO, 2016).

discutidos no capítulo 6 como parte dos resultados empíricos da tese. 3.4. CONCLUSÃO DO CAPÍTULO

Com a globalização da economia, movimento consolidado no final do século XX, empresas de televisão em esfera nacional compartilham uma lógica comum aos mercados de mídia integrados em escala global (ALBARRAN, 2002; DOYLE, 2012). Esta lógica está associada ao baixo risco e ao potencial dos conteúdos alcançarem públicos diversos e transitarem por fluxos de exibição e distribuição distintos. Isso implica adequá-los à condição de produto de mídia (MURDOCK, 2005).

A inserção da produção independente nos mercados de TV também está submetida a esta lógica, em maior ou menor grau a depender das práticas estabelecidas no setor produtivo. Licenciamento e coprodução são as modalidades tradicionais através das quais essas transações se efetivam. São alianças estabelecidas entre produtoras e canais/programadoras.

No caso das alianças transnacionais, as motivações incluem possibilidades políticas que permitem alcançar novos mercados, fluxos monetários e disponibilidade de mão de obra qualificada a baixo custo (HARDY, 2014). Populações desterritorializadas também criam mercados a serem explorados e se conectam por relações culturais que desconhecem os limites dos Estados nacionais (APPADURAI, 1990).

Somam-se a esses elementos, as especificidades dos contextos nacionais em que as empresas de mídia operam e que afetam o modo como os conteúdos independentes são absorvidos. Elas dizem respeito a aspectos legais, regulatórios, econômicos e culturais.

No Brasil, as diferentes estruturas dos mercados de TV Aberta, TV por Assinatura e o campo público resultam em experiências distintas de acolhimento da produção independente. Configuram-se como uma repercussão das regras de operação do setor, definidas na esfera dos Estados-nação, sob forte influência dos agentes econômicos.

O papel do Estado na definição dos marcos regulatórios dos mercados de televisão e do desenho das ações de fomento à produção independente nestes espaços é o tema do próximo capítulo.