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5 LEITURA JORNALÍSTICA: UM MODELO PSICOLINGUÍSTICO Se as condições para o processamento da leitura permitem dizer que algo se

5.1 O CARÁTER LINGUÍSTICO DE UMA LEITURA ESPECÍFICA

A partir de suas perspectivas conciliatórias e abrangentes para os estudos da linguagem, a Psicolinguística apresenta-se como uma ferramenta versátil de análise dos fenômenos de comunicação, incluindo nesse rol de objetos a leitura jornalística. Matrizes interativas, como as sugeridas por Jocelyne Giasson (2000) e Otília Souza (2015), combinam os elementos dos movimentos ascendente (bottom-up) e

descendente (top-down) da leitura, para compor modelos integracionistas, geralmente

formados por uma triangulação entre [a] o leitor, [b] o texto e [c] o contexto. É a partir desta composição em três vértices que se vai propor, mais adiante, um modelo para a análise da leitura jornalística. Até mesmo as conceituações psicolinguísticas mais elementares a respeito do que ler significa, como a proposta por Isabel Solé (1998),

153 A base teórica para o argumento foi apresentada no Capítulo 4 desta tese, sobretudo com o trabalho de

contemplam esse caminho de interpretação, que prevê a tripla interação entre os elementos. Para Solé (1998), reapresentando um conceito já introduzido no Capítulo 3, a leitura é “um processo de interação entre o leitor e o texto; neste processo tenta-se satisfazer [obter uma informação pertinente para154] os objetivos que guiam sua

leitura” (p. 22). Ou seja, a leitura é relação, é processo, orientada por intenções, estratégias e procedimentos específicos, como os de natureza jornalística.

As estruturas textuais, os suportes/dispositivos, os objetivos de leitura, os recursos cognitivos e os conhecimentos prévios, conforme Solé (1998)155, incidem sobre a leitura, praticamente coincidindo com o modelo das variáveis intervenientes

na leitura, proposto por Goodman (1991). O modelo psicolinguístico para a leitura jornalística, portanto, irá partir da conciliação processual proposta por estes

esquemas, e o ponto de partida será entender aquilo que transcorre, de específico, quando o leitor lê um texto jornalístico, adotando-se como premissa que algo de particular sempre acontece. A noção de jornalístico, nesta tese, também será construída a partir da linguagem, na medida em que o objeto de investigação é a operação da leitura – ou seja, um objeto linguístico. Isso não significa negar as outras abordagens a respeito da atividade jornalística156, mas apenas circunscrever a perspectiva mais produtiva para os objetivos da presente investigação. Aliás, como destaca Mayra Rodrigues Gomes (2000), o aspecto da linguagem (em consequência, o da leitura, vale ressaltar, ainda que a autora não lhe faça uma referência direta) tem sido negligenciado nos estudos sobre o jornalismo:

Há algo negligenciado nas reflexões sobre jornalismo. Antes de registrar, informar, antes de ser colocado pelas condições que o caracterizam, por exemplo, periodicidade, universalidade, atualidade, difusão, categorias que nos são dadas por Otto Groth157, o jornalismo é ele próprio um fato de língua

(GOMES, 2000, p. 19).

154 Grifo no original.

155 A concepção psicolinguística de Solé (1998) foi detalhada no Capítulo 3.

156 O jornalismo, como fenômeno da comunicação, é objeto multidisciplinar, sujeito a uma série de possibilidades

de observação, entre elas a Linguística e, nessa tese, a Psicolinguística.

157 Pesquisador alemão, um dos pioneiros da caracterização do jornalismo, a partir de estudos em que ele

fundamenta os principais traços da atividade, influenciado por uma concepção ideal weberiana e com o sentido de construir uma ciência dos jornais ou uma ciência do jornalismo. De acordo com Groth (2011), as características do jornalismo são periodicidade, universalidade, atualidade e publicidade, sendo que elas não justificam sua existência apenas por uma força estritamente classificatória, mas por expressarem finalidades exigidas pela sociedade. São, assim, respostas funcionais e operacionais a necessidades sociais.

É como um fato de língua, portanto, que o aspecto jornalístico será sublinhado como ponto inicial da argumentação158. Assim, a linguagem jornalística – ou seja, o texto e as demais expressões objeto de uma leitura específica – cumpre uma determinada função, a de "organizar discursivamente, o que, aliás, é a prática jornalística por excelência" (GOMES, 2000, p. 19). O primeiro aspecto deste movimento de “organizar discursivamente” é o da [a] função testemunhal, como

confirmação do pacto fundador da vida social, pois, como diz Gomes (2000, p. 20), "se

o jornalismo se caracteriza pela periodicidade, essa periodicidade, como repetição que é, está sempre a serviço dessa reiteração, da recolocação do pacto social". A função

testemunhal também é exercida pelo atributo da vigilância, que se soma à ideia

anterior da confirmação, mas como uma espécie de contraponto aos poderes materializados pela língua em movimento e articulação. Ou seja, o jornalismo é tomado como observador (e fiscalizador) da vida social, por meio da linguagem e das formas de poder que ela expressa/embute. Assim, chega-se ao terceiro atributo, o desenho e

hierarquização do espaço social, com a localização e a organização de importâncias,

valores e temáticas da realidade.

O papel de "organizar discursivamente" a realidade social também é exercido pelo segundo aspecto, [b] o testemunho do testemunho. Isso porque os mecanismos de funcionamento da linguagem são originalmente imperfeitos159 e exigem a formação de discursos sobre discursos, textos sobre textos, testemunhos sobre testemunhos, justamente para que se cumpram as exigências do discurso sobre a realidade. São essas exigências que asseguram a produção de um efeito de realidade, próprio do universo jornalístico e da sua estratégia de busca constante pela referencialidade. Assim, a linguagem jornalística, no entendimento da autora, proporciona uma espécie de esquecimento da ordem simbólica que lhe é inerente como fato de língua, para sublinhar apenas os traços de referencialidade, o "enaltecimento de um real como auto- suficiente, como não mediatizado, na suposição de pura concretude" (GOMES, 2000, p. 24). Por isso, como decorrência dessas imperfeições, o que a linguagem jornalística opera (como toda linguagem) é tão somente um efeito de real, materializado em uma série de estratégias textuais.

158 Sem aprofundar a discussão a partir de outras abordagens teóricas a respeito dos fenômenos da linguagem,

como as apresentadas no Capítulo 2.

159 Como Gomes (2000) destaca, trata-se da dissimetria entre a ordem simbólica e o real/referente, um

desencontro que está na natureza do funcionamento da linguagem e demanda movimentos permanentes da própria linguagem, visando a complementação da significação.

Efeito de real é o termo empregado por Barthes para designar o resultado das

estratégias dos discursos realistas, aqueles que, na busca de testemunho para o seu testemunho, recorrem a uma realidade em cuja construção colaboram. Essa é a prática jornalística por excelência (GOMES, 2000, p. 27).

No fundo, está-se diante de uma ilusão referencial, de natureza simbólica, pois os próprios indicadores de realidade seriam sistemas de significação arbitrários, parciais e imperfeitos, que levam a escolhas, vieses e descontextualizações, com forte caráter subjetivo, porque opcionais. São três as funções integrativas160 que operam a verossimilhança, com o objetivo de contornar essa limitação original da linguagem161, e produzir o efeito de real: [a] os índices, os "significantes que delineiam o caráter de uma personagem, sua identidade, atmosfera, estado de espírito" (GOMES, 2000, p. 25); [b] os informantes, os "significantes que servem para situar no espaço e no tempo" (GOMES, 2000, p.27); e [c] as catálises, a "função cronológica pela qual se operam a distensão e a compressão temporal presentes no tempo da narrativa" (GOMES, 2000, p.27). Por isso, na linguagem jornalística, os atributos da verossimilhança e da credibilidade (as construções) sobrepõem-se aos ideais da verdade e do verdadeiro. No fundo, esta pretensão que a caracteriza – a ambição à realidade – é a própria limitação da linguagem jornalística, como fato de língua. Ainda assim, e sem aprofundar a discussão teórico-discursiva decorrente, as considerações da autora sublinham e caracterizam os aspectos linguísticos da linguagem jornalística, abrindo caminho para uma reflexão sobre a leitura jornalística, tratando-a como uma operação de linguagem, no caso, a leitura.

Como lembra Alfredo Vizeu (2003), o reconhecimento dos limites e das formas de operação da linguagem jornalística colabora, inclusive, para a percepção do que é a notícia162 e sobre como se movem os seus mecanismos peculiares de construção – entre eles os próprios critérios de noticiabilidade163 – como um discurso da atualidade. É

160 O conceito aparece em Roland Barthes (2004).

161 Basicamente, o fato de que a linguagem, ainda que realista e mesmo que vinculada a uma tarefa de retratar

o real – como ocorre com o Jornalismo – não é a realidade em si: é representação, é símbolo.

162 Vizeu (2003) recupera a oposição entre os estudos que consideram a notícia como um espelho da realidade

ou uma representação da realidade. Do ponto de vista da abordagem psicolinguística, que se debruça sobre as operações da linguagem, a segunda perspectiva, a da representação, é a mais adequada, como já visto na argumentação de Gomes (2000). Admite-se, aqui, que a referência à notícia não limita a aplicação do argumento aos demais tipos de texto jornalístico, mas o contrário.

163 São os fatores que sustentam a noticiabilidade em um processo de produção de notícias. Vários autores

apresentam formas de classificar as decisões que levam à produção de um determinado relato ou produto jornalístico, sendo a de Johan Galtung e Mari Ruge (1999) a mais utilizada, em torno da ideia de valor-notícia. A visão que esta tese assume sobre critérios de noticiabilidade está ligada aos estudos de Gislene Silva (2005).

uma abordagem que prepara o caminho para tratar o texto jornalístico a partir da perspectiva da enunciação e das funções que o Jornalismo cumpre na sociedade, do ponto de vista linguístico, no tocante à audiência, como um fator de constituição da realidade:

Entendemos que a construção da notícia não se reduz a uma mera técnica, à simples mobilização de regras e normas fornecidas pelos manuais de redação ou aprendidas no desempenho da atividade profissional. Acreditamos que tal ponto de vista desconhece a dimensão simbólica do trabalho jornalístico. Consideramos que é no trabalho da enunciação que os jornalistas produzem discursos. E é no interior do próprio processo discursivo, por meio de múltiplas operações articuladas pelos processos da própria linguagem, que a audiência é construída antecipadamente (VIZEU, 2003, p. 108).

A enunciação jornalística produz o que Vizeu (2003) chama de efeito de

reconhecimento, que cumpre um papel específico na apreensão e na compreensão do

conteúdo pela audiência. Ou seja: o discurso jornalístico circula com marcas nítidas, porque reconhecíveis, da sua própria caracterização e fruição posterior. Mais do que percebidas pelo público, estas evidências enunciativas organizam até mesmo a formação do público pelo funcionamento da linguagem, sendo que a leitura é uma etapa crucial do fenômeno, pois se refere ao momento do contato texto-leitor. Estes efeitos são produzidos por raciocínios, expressos nos textos, e por cadeias articuladas de razões, que promovem um determinado tipo de percepção que também é específica das formas jornalísticas de toda a ordem, como notícias, reportagens, artigos ou editoriais, entre outras. Vizeu (2003) lista os efeitos característicos gerados pela enunciação jornalística:

[a] anunciar, dizer o que aconteceu ou vai acontecer, podendo ser um fato ou uma declaração;

[b] descrever, o que é "relatar as etapas de um fato, com suas circunstâncias; os passos de um personagem, com seus comportamentos, atitudes, declarações ou proposições, ou o quadro de uma situação, com os diversos aspectos envolvidos" (VIZEU, 2003, p. 115);

[c] demonstrar, atestando a relevância, a validade ou a veracidade daquilo que foi anunciado ou descrito em uma enunciação jornalística;

[d] argumentar, orientando as inferências provocadas pelo discurso jornalístico;

[e] persuadir, com o objetivo de provocar algum convencimento a respeito do relato, sobretudo em relação a sua importância e veracidade, dois atributos jornalísticos característicos.

Vale ainda, nesta concepção do autor, destacar mais uma vez o aspecto interativo da formulação de um processo que se afirma pela articulação entre dois polos, o da emissão (no caso em análise, as reportagens em longform journalism, em papel ou na tela de um celular) e o da recepção (o leitor). Assim, a leitura colabora para organizar e demarcar a recepção das enunciações jornalísticas, a partir dos efeitos enunciativos de anunciar, descrever, demonstrar, argumentar e persuadir a respeito da realidade, como sustenta Vizeu (2003):

É nesse processo que a recepção é construída, mediante um conjunto de regras e de instruções construídas pelo campo da produção, para serem seguidas pelo campo da recepção (audiência), condição por meio da qual ele se insere no sistema interativo proposto e pelo qual ele é reconhecido e, consequentemente, se reconhece como tal. A recepção não pode ser definida apenas pelos estudos que as estratégias de marketing propõem para ajudar as empresas jornalísticas a construir o mercado. É claro que traços e características sociais identificados pelos institutos de pesquisa orientam as organizações a construírem o mercado e um perfil da audiência. Entretanto, entendemos, que a recepção é construída na própria economia enunciativa (VIZEU, 2003, p. 115).

Dando prosseguimento à caracterização da leitura jornalística, os diversos tipos de texto jornalísticos configuram um modo de ler específico, com uma estratégia de leitura determinada, na linha do proposto por Graça Paulino e outros (2001, p.45): "cada um desses textos [do jornal] pede uma diferente estratégia de leitura porque foi construído com objetivos diferentes, visando, muitas vezes, a públicos diversificados". Ou seja, há uma correlação processual entre as [a] estruturas textuais, os [b] objetivos que conduzem a leitura e as [c] características específicas de um modo de ler como o jornalístico. Este é o alicerce linguístico para o modelo psicolinguístico-jornalístico que será proposto.