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3 ALGUNS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA LEITURA

3.1 O QUE LER PODE SIGNIFICAR

Com o objetivo de sinalizar a amplitude da variedade de perspectivas a respeito do que é a leitura, esta seção irá recuperar algumas das principais tradições de análise. A apresentação está dividida em percursos, iniciando pelo discursivo-enunciativo, passando pelo funcionalista e pelo cognitivo. Por fim, cumprindo o propósito de sinalizar o estágio contemporâneo a respeito do fenômeno leitor, a perspectiva neurocientífica será detalhada, sustentando o argumento de que, muito embora sejam distintas as tradições de investigação sobre os componentes exteriores da leitura (os modelos observáveis), é preciso levar em conta que o fenômeno possui uma base neuronal, mental, interna (captada por instrumentos psíquicos de investigação), que corresponde ao circuito propriamente dito do ato leitor pelo cérebro humano.

3.1.1 Percurso discursivo-enunciativo

Um ramo influente para a compreensão do que ler significa é representado pelas teorias discursivas, uma ampla gama de abordagens marcantes a respeito do fenômeno leitor. Dentro deste espectro, os trabalhos de Oswald Ducrot e da brasileira Eni Pulcinelli Orlandi compõem o que se pode chamar de visão discursivo enunciativa. Conforme Orlandi (1988), a própria palavra leitura é polissêmica, englobando desde a ideia de captura de sentidos, em processos mais sofisticados e fluentes ligados à produção do conhecimento, até a aprendizagem formal no ambiente escolar. Ao assumir uma perspectiva discursiva, Orlandi (1988, p.8) enumera consequências que ajudam a fixar o horizonte de preocupações teóricas desta vertente de compreensão: a leitura integra o processo da formação de sentidos; o sujeito-leitor tem uma

especificidade e uma história; sujeitos e sentidos possuem uma determinação histórica e ideológica; há variados modos de leitura; a vida intelectual dos sujeitos está relacionada “aos modos e efeitos de leitura de cada época e segmento social” (p. 8).

Ou seja, esta lista de desdobramentos, que sintetiza o percurso enunciativo- discursivo, sinaliza a existência de um conjunto de exterioridades contextuais que incidem sobre a leitura. Há algo para além do texto, que transborda para o processo de compreensão leitora. Ao buscar entender a questão da legibilidade, por exemplo, Orlandi constatou que o que torna um texto legível não depende apenas dos seus fundamentos textuais – no caso, uma suposta clareza ou a sua qualidade estilística –, mas de um contorno, cuja natureza é histórico-discursiva: “a leitura, portanto, não é uma questão de tudo ou nada, é uma questão de natureza, de condições, de modos de relação, de trabalho, de produção de sentidos, em uma palavra: de historicidade” (ORLANDI, 1988, p. 9). Ela entende que há uma historicidade no texto, mas também na própria ação da leitura, não só do ponto de vista evolutivo48, como das formações sociais que compõem o entorno da enunciação.

No modelo de leitura desenhado pela autora, há um leitor virtual, previsto, “inscrito no texto” (p. 9), e um leitor real, que entra em contato efetivo, vivo, com o texto49. O leitor real interage com este leitor virtual, o que, segundo Orlandi (1998), já interpõe uma barreira crítica às formulações interacionistas da leitura, que enxergam o fenômeno da compreensão e da formação de sentido como resultado exclusivo da interação entre o leitor e o texto. Haveria um intruso neste encontro, o leitor virtual, que não pode ser desprezado. Assim, dedicar-se excessivamente à objetalidade do texto – ampliar os poderes do material escrito – seria absolutizar a mediação, afetando a sua historicidade, o fato incontornável de que há um sujeito localizado histórica e socialmente, encarregado da tarefa de compreender, mas exposto às condicionantes externas. A partir desta ponderação, Orlandi (1988) empresta uma primeira noção de leitura a este trabalho:

A leitura é o momento crítico da produção da unidade textual, da sua realidade significante. É nesse momento que os interlocutores se identificam como interlocutores e, ao fazê-lo, desencadeiam o processo de significação do texto. Leitura e sentido, ou melhor, sujeitos e sentido se constituem simultaneamente, num mesmo processo. Processo que se configura de formas muito diferentes, dependendo da relação (distância maior ou menor) que se estabelece entre o leitor real e o leitor virtual (ORLANDI, 1988, p. 9-10).

48 Como visto no Capítulo 2 desta tese.

49 A concepção guarda sintonia com a proposta do leitor-modelo de Umberto Eco, já referida em nota no Capítulo

Para a autora, a existência desta interlocução é um dos fundamentos do contexto do fenômeno leitor – ou da situação de leitura, como ela denomina –, mas não o único. Deve-se destacar, também, entre os componentes do processo, os modos de leitura, classificados em [a] possíveis, [b] propostos ou [c] pressupostos, que são “muito variáveis e certamente indicam diferentes formas de relação dos leitores com o texto”, funcionando como “elemento de organização” (p. 9) da interação. A relação entre autor, texto e leitor ocorre de tal maneira, que estaria desautorizada qualquer linha argumentativa que valorizasse a existência de [a] um autor onipotente sobre os resultados da significação; [b] a transparência do texto na definição de um único sentido para a leitura; e [c] um leitor onisciente, com capacidade dominante sobre todos os sentidos acionados por um texto. Todas estas posturas absolutizantes precisam ser vistas com reserva, porque há uma relação de posições “histórica e socialmente determinadas – em que o simbólico (linguístico) e o imaginário (ideológico) se juntam – que constitui as condições de produção da leitura” (ORLANDI, 1988, p. 11).

Outra ressalva feita por Orlandi (1988) é a noção de incompletude, ou seja, há sentidos implícitos e os que aparecem na relação de intertextualidade. Resumidamente, um texto desencadeia relações de sentido entre o que diz e o que não diz (caráter implícito) e também entre o que diz e aquilo que dizem outros textos (caráter intertextual). Admitir estas frestas de significação ajuda a confirmar a complexidade do fenômeno leitor, pois há elementos que não estão imediatamente visíveis no texto, mas que o sustentam e concorrem para sua significação. Haveria um caráter ideológico, histórico e social nesta constatação, além do aspecto linguístico, pois todo o discurso se imbrica em formações ideológicas essenciais à constituição dos diversos tipos de leitura:

De forma geral, podemos dizer que a atribuição de sentidos a um texto pode variar amplamente desde o que denominamos leitura parafrástica, que se caracteriza pelo reconhecimento (reprodução) de um sentido que se supõe ser o do texto (dado pelo autor), e o que denominamos leitura polissêmica, que se define pela atribuição dos múltiplos sentidos ao texto (ORLANDI, 1988, p. 12). Na perspectiva desta corrente, a leitura é produzida em condições determinadas, no interior de um contexto sócio-histórico, que precisa ser levado em consideração. A própria existência de uma história da leitura – como apresentado no Capítulo 2 – seria um indício relevante desta necessidade, pois “leituras que são possíveis, para um mesmo texto, em certas épocas, não o foram em outras, e leituras

que não são possíveis hoje serão no futuro” (ORLANDI, 1988, p. 86). Há leituras previstas para um determinado texto, embora, quando se pensa no movimento da significação, não se possa descartar alguns pressupostos desta previsibilidade relativa, como, por exemplo, a sedimentação dos sentidos de acordo com as condições em que são produzidos e a relação com os outros textos, como indício relevante de como o texto deve ser lido. A envolver a teia de articulações, entre outros fatores, ainda há a dependência de uma legitimação, pois “algumas leituras são mais legítimas do que outras” (p. 87). Além do fato de a leitura ter uma história, o leitor também tem a sua história particular e cumulativa de leitura50, presente à cena da significação:

As leituras já feitas configuram – dirigem, isto é, podem alargar ou restringir – a compreensão do texto de cada leitor específico. A inclusão da história nas condições de produção da leitura aparece, assim, caracterizando um dos seus aspectos: as leituras já feitas de um texto e as leituras já feitas por um leitor compõem a história da leitura quanto ao seu aspecto previsível. Mas também a imprevisibilidade resulta da história. Dessa forma, é ainda do contexto histórico-social que deriva a pluralidade possível – e desejável – das leituras. Quando me refiro à pluralidade das leituras não estou pensando apenas na leitura de vários textos, mas, sobretudo, na possibilidade de se ler um mesmo texto de várias maneiras. Este é um aspecto fundamental do processo de significação que a leitura estabelece (ORLANDI, 1988, p. 87).

Em outra obra, ao explicar como insere a sua abordagem em uma perspectiva da análise do discurso (AD), Orlandi (2001) aprofunda o detalhamento teórico. Ao tratar a linguagem como uma prática de mediação entre o homem e a realidade natural e social, a análise de discurso associa os aspectos linguísticos ao contexto ideológico- histórico-social, configurando um modo de produção social – o simbólico. O discurso, assim, seria aquilo que dá materialidade à dimensão simbólica, por meio de “efeitos de sentido”, produzidos entre os locutores (emissores e receptores), no interior de formas materiais, que são as “formas linguísticas encarnadas no mundo, significando os sentidos e os sujeitos e significando-se pelos sujeitos que as praticam” (p. 63). A interpretação é o ponto de confluência do processo. O sujeito-leitor entra em contato com a linguagem por meio da textualidade, o que produz os seus efeitos sobre a significação. “Essa materialidade textual já traz, em si, um efeito-leitor, produzido, entre outros, pelos gestos de interpretação de quem o produziu, pela resistência material da textualidade (formulação) e pela memória do sujeito que lê” (p. 63-64).

50 Ainda que pertencentes a tradições distintas, há um paralelo entre esta noção de Orlandi, a história de leitura

de um determinado leitor, e uma das fontes para a formação do conjunto de informações que a Psicolinguística, em seus modelos e abordagens, denomina de conhecimento prévio.

O texto sempre está aberto às possibilidades de leitura, se visto como materialidade do discurso, como a unidade empírica do processo leitor. O que Orlandi (2001) chama de efeito-leitor “se dá no reconhecimento – identificação do sujeito, gesto de interpretação – de uma leitura no meio das outras. Como sabemos, não há fecho e não há início definitivos” (p. 70). Assim, a autora chega a uma nova definição de leitura, não revisando as anteriores mas aprimorando-as de acordo com a abordagem simbólico-discursiva:

Chegamos finalmente a uma outra definição de leitura: trabalho simbólico no espaço aberto de significação que aparece quando há textualização do discurso. Há pois muitas versões de leitura possíveis. São vários os efeitos- leitor produzidos a partir de um texto. São diferentes possibilidades de leitura que não se alternam mas coexistem assim como coexistem diferentes possibilidades de formulação em um mesmo sítio de significação (ORLANDI, 2001, p. 71).

Os trabalhos do linguista Oswald Ducrot também se filiam à vertente enunciativa das teorias discursivas da leitura. Para ilustrar a forma como a abordagem ducrotiana gera uma determinada concepção de leitura, é útil apresentar alguns conceitos presentes nas formulações teóricas do autor, tanto a teoria da argumentação na língua, quanto a teoria da polifonia, constituindo parte do campo da semântica linguística. Uma das marcas do pensamento do Ducrot é a constante reformulação. Influenciado por Émile Benveniste, de quem foi aluno, ele elabora uma teoria fundada nos atos ilocutórios e no papéis de locutor e enunciador no interior da enunciação. Mesmo que ultrapasse a dicotomia clássica língua-fala51, conforme esboçada por Ferdinand de Saussure, ao valorizar a enunciação pelos elementos do enunciado, não fora dele, Ducrot também se nutre do estruturalismo saussureano, fundado na relevância dos signos e nas relações que o material sígnico estabelece.

De acordo com o verbete "Ducrot", produzido por Leni Barbisan e Carmen Silva (2009) em Valdir Flores e outros (2009), a teoria da argumentação na língua, desenvolvida por Ducrot, e aprimorada com parceiros, até se chegar a formulações posteriores, como a teoria dos blocos semânticos, pode ser tratada como uma teoria argumentativa e enunciativa, porque “em todas as versões está em jogo a conversão da língua em discurso pelo locutor que faz escolhas para indicar a sua posição argumentativa no discurso e para constituir seu alocutário [destinatário previsto, não

51 Uma das dicotomias com que o pioneiro da Linguística estrutura suas concepções teóricas no seu Curso de

Linguística Geral. Enquanto a língua tem um caráter coletivo, mais homogêneo e social; a fala é a expressão individual do uso da língua. A dicotomia língua-fala alicerça a abordagem estruturalista sobre linguagem que seria esboçada mais adiante.

empírico] neste discurso, convocando-o a se enunciar” (p. 249). Por trás desta

perspectiva relacional, também há um leitor virtual, previsto no texto, que engatilha as possibilidades de leitura nas situações concretas, reais.

Entre outras possibilidades teóricas oferecidas por sua obra, a concepção de leitura de Ducrot está embutida na ideia de uma semântica argumentativa, na medida em que ele parte da ideia de que o sentido de uma frase, ou de um texto, está na articulação que se estabelece no encadeamento das palavras de um determinado enunciado. Ao explicar os fundamentos do pensamento de Ducrot, aplicados à pesquisa da leitura, Neiva Gomes (2016) destaca que a teoria de Ducrot pensa o discurso como o conjunto de usos que um locutor faz da língua, organizando enunciados, o que não deixa de sinalizar uma proximidade com a pragmática. Gomes (2016, p. 3) entende que as proposições de Ducrot levam à aceitação da ideia de que a significação de uma palavra está sempre em relação combinada com outras palavras, no interior de determinados enunciados, a partir de encadeamentos semânticos. Em consequência, “ler, nesse sentido, é perceber os sentidos que se constroem a partir das combinações de unidades linguísticas em um texto: palavras, expressões, segmentos que constituem os enunciados” (GOMES, 2016, p. 3).

Outra perspectiva relevante para os estudos sobre a leitura, dentro da visão

discursivo-enunciativa, é a proporcionada pela análise do discurso (AD). Conforme

Sírio Possenti (2001), a análise do discurso nasceu justamente para oferecer uma resposta à questão de “como ler”. A leitura, segundo o autor, sempre esteve no centro das preocupações da corrente, inclusive entre os seus precursores, como Michel Pêcheux que, por meio de sua visão peculiar da AD, teria trabalhado na direção de propor uma “teoria não subjetiva da leitura” (p. 19). Possenti (2001) lembra que haveria dois grandes caminhos analíticos da AD em torno da leitura, sendo que, em cada um deles, a própria palavra leitura mereceria ser reconhecida com significados diferentes. A primeira vertente dedicou-se a estudar o “dispositivo social de circulação de textos”52 (p. 20), sem focar na questão do sentido. A segunda vertente prende-se à questão do sentido. Nesta segunda linha, os aspectos da circulação, centrais na

52 Conforme Possenti (2001), “suas questões típicas seriam relativas a quais textos circulam em quais espaços

em quais épocas e por que razões” (p. 20). Assim, trata-se de um caminho analítico focado nas questões da circulação do material escrito (discursivo), com desdobramentos inclusive sobre o mercado leitor em alguns estudos. Esta primeira perspectiva trabalha com os mecanismos de controle que uma determinada sociedade pode exercer sobre a circulação de certo tipo de discurso. Também a segunda vertente, a do sentido, está interessada no controle (restrições), mas naqueles oriundos do texto (linguísticos), enquanto a primeira busca entender os de natureza externa ao texto (censuras, proibições, seleções).

primeira vertente, interessam apenas na proporção em que afetam a formação de sentido. Valendo-se das ideias de Pêcheux para apresentar a perspectiva, Possenti (2001) ressalta o projeto da AD de encontrar uma fórmula objetiva para a análise dos textos, reconhecendo que a língua, instrumento de acesso ao texto, é originalmente subjetiva.

A primeira resposta da AD é conduzir uma investigação de caráter institucional sobre o discurso: “a leitura não é a leitura de um texto como texto, mas como discurso, isto é, na medida em que é remetido às suas condições, principalmente institucionais, de produção” (p. 24). O autor defende que o empreendimento epistemológico da AD justificou-se pela ambição de encontrar um conjunto de critérios que permitisse a leitura objetiva, fornecendo um grupo de fatores restritivos das possibilidades de leitura de um determinado texto:

O pertencimento de um enunciado (ou palavra) a uma formação discursiva limita as interpretações possíveis do enunciado (e da palavra); o pertencimento de um enunciado (ou de uma palavra) a um gênero e não a outro configura-se, por sua vez, como um limite para sua interpretação; a relação entre um texto e um autor (e outros textos do mesmo autor e outros textos de um certo tipo) são outros fatores de restrição a uma suposta liberdade de interpretar ou a eventuais interpretações que o enunciado poderia receber, se considerados apenas sua forma estritamente linguística e/ou seu contexto imediato (POSSENTI, 2001, p. 24).

Ainda que tenha perseguido a organização de um aparato objetivo para analisar a leitura, a AD admite a possibilidade de existirem muitas leituras para um mesmo texto. Assim, o projeto metodológico desta linha de investigação não pode ser visto como a defesa de uma unicidade do ponto de vista da compreensão e dos sentidos. A AD não reivindica o papel de autorizar determinadas leituras, e não outras, mas se debruça sobre os recursos usados por quem lê, da forma como lê. Ao localizar o núcleo das preocupações da AD, Possenti (2001) apresenta um breve inventário de deslocamento do elemento central, focalizado para se entender como alguém lê como lê: inicialmente o autor, posteriormente o texto (valorizado por toda a tradição estruturalista, mas que se mostrou insuficiente) e, por fim, o leitor, foco de inúmeras perspectivas contemporâneas:

Chegou-se ao leitor, que é exatamente o que lê o que nem o texto diz e/ou que opta entre as muitas coisas que um texto diz, ou ainda que fica com todas as coisas que um texto diz ao mesmo tempo, ou, alternativamente, que numa leitura fica com uma coisa e em outra com outra – sejam essas leituras separadas ou não por grandes lapsos de tempo. Parece incontestável que quem lê é o leitor (POSSENTI, 2001, p. 27).

O autor sublinha um elemento fundamental da visão da AD sobre a leitura, qual seja, o papel do leitor e a sua suposta liberdade na construção da significação. A tradição da AD trabalha com critérios limitadores, cuja operação acaba por autorizar ou não determinadas leituras. "Ela (a AD) não acredita que haja sujeitos individuais que leiam como querem, mas sim, que há grupos de sujeitos (situados em determinada posição) que leem como leem porque têm a história que têm” (POSSENTI, 2001, p. 28). Os três polos do fenômeno – autor, texto e leitor – precisam ser encarados com a mesma relevância, e esta relevância não pode ser definida aprioristicamente, sem se considerar inúmeros fatores, como, por exemplo, o tipo de texto que se está lendo, o que inclui os textos de natureza jornalística. Assim, não haveria o sujeito livre, pleno condutor dos movimentos da significação, mas uma necessária submissão do ente leitor às “restrições do discurso” (p. 28):

Penso que se pode defender a ideia de que o árbitro definitivo da leitura é o texto, desde que o texto seja concebido discursivamente, isto é, seja tomado como submetido a todas as restrições históricas que normalmente o afetam, e que afetam, portanto, seu autor e seu(s) leitor(es), submetendo-os tanto às regras de circulação quanto às de interpretação (POSSENTI, 2001, p. 30). Um dos principais representantes da perspectiva da AD é o pensador russo Mikhail Bakhtin, cuja relevância da obra se estende por várias ramificações do conhecimento humano, tendo sido um dos mais significativos formuladores do século 20 a respeito das questões da linguagem. Em síntese, Bakhtin entende que a linguagem se concretiza na interação verbal, sendo que, nela, a noção de diálogo, em um sentido amplo, ancora-se no plano social, nas situações concretas de comunicação, sejam faladas ou escritas, e manifesta-se por meio das enunciações. “A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior. As dimensões e as formas dessa ilha são determinadas pela situação da enunciação e por seu auditório” (BAKHTIN, 1992, p. 125). Nessa linha de argumentação, não existiriam palavras neutras, articuladas e expostas às situações concretas de leitura, em contextos comunicacionais de fala ou escrita, pois “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (p. 99).

No meio de uma vasta e rica obra, destacam-se, pelos menos, duas formas de enxergar a leitura do ponto de vista bakhtiniano, a primeira pelos [a] conceitos de interação verbal e a segunda pelas [b] noções que subsidiam os conceitos de tema e

significação53. Ambas são mobilizadas por uma perspectiva de natureza social, não individual. O ato de leitura, tomado como construtor do sentido, para Bakhtin, é sempre dialógico – fundado na noção central de diálogo54 dentro do pensamento do

autor – e se manifesta por meio da interação e do conflito de vozes, seja do texto, do autor, do leitor, de outros textos, de outros interlocutores da vida social e do contexto