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2 HISTÓRIA (POSSÍVEL) DA LEITURA: OS SUPORTES

2.2 UM ESBOÇO DE EVOLUÇÃO

Apesar dos desafios, alguns autores sistematizaram uma história da leitura a partir das transformações observadas e registradas, ao longo do tempo, no [a] comportamento do leitor, na [b] evolução tecnológica dos suportes, no [c] tipo de texto que circulava e na [d] função que a prática de ler desempenhava nas sociedades. É o que faz Fischer (2006), ao apresentar um retrato desta evolução, indicando detalhadamente como a leitura foi se desenvolvendo a ponto de se tornar um dos fatos distintivos da humanidade. Cada época e lugar acrescentou um aspecto diverso, até que a leitura tomasse a forma moderna. Fischer (2006) não chega a estabelecer uma periodização, nem a apresentar uma nomenclatura classificatória, mas reagrupar a sua proposta de história em algumas fases, ainda que sem repetir o nível de detalhamento apresentado pelo autor na obra de referência, permite vislumbrar a profunda mutação do fenômeno do leitor e também serve como argumento para sustentar a necessidade de enxergar a leitura como algo processual que se transforma como uma habilidade humana não inata.

Esta tese irá propor uma divisão por períodos18, a título de conduzir uma apresentação didática. A primeira fase pode ser denominada de [a] nascimento e engloba o período em que a leitura passa a existir em cumplicidade com a escrita. Fischer (2006) entende que a escrita nasceu para cumprir um papel de "testemunha imortal" do conhecimento, dos fatos registráveis, das histórias dos povos responsáveis pela sua invenção, mesmo quando ela ainda não tinha alcançado o aspecto verbal, ou seja, quando ainda estava na sua fase embrionária, pictórica. Foram os sumérios19, povo que habitava o sul da região da Mesopotâmia, que atribuíram pela primeira vez um aspecto fonográfico à escrita pictórica, completando o processo de invenção da escrita. "A leitura em sua forma verdadeira surgiu quando se começou a interpretar um sinal pelo seu valor sonoro isoladamente em um sistema padronizado de sinais limitados" (FISCHER, 2006, p. 15). Ou seja, só se pode falar em escrita – e na consequente e simultânea habilidade de leitura – quando o processo tem como fundamento [a] a comunicação, [b] no momento em que se valeu de sinais gráficos aplicados sobre superfícies duráveis e [c] estabelece conexão com um determinado discurso articulado.

Importante notar que, neste período inicial de desenvolvimento da escrita- leitura, há uma vinculação do ato de ler com determinadas funções sociais bem definidas. Nos primórdios, Fischer (2006) lembra que a expansão e a organização das cidades-Estado da Mesopotâmia tornou as relações mais complexas. Em consequência, a documentação passou a exigir uma existência escrita, mas com a finalidade da leitura oral posterior, o que poderia facilitar a transmissão e o cumprimento de ordens, por exemplo. A leitura ainda não havia conquistado um valor em si, pois "durante a maior parte da história escrita, ler denotava falar" (p. 9). Havia ali, em decorrência do próprio amadurecimento das relações políticas, administrativas e sociais daqueles povos, um processo incipiente de classificação da realidade, algo que nunca mais se dissociaria da lista de atribuições da escrita-leitura. Ele chama este tipo de leitura de "leitura atuarial" (p. 19), necessariamente burocrática, em uma época em que os relatos narrativos tradicionais permaneciam circunscritos à transmissão oral.

18 A divisão é propositiva, com o intuito de organizar a apresentação das fases de maneira cronológica,

apontando as alterações estruturais.

19 Conforme Fischer (2006), o processo teria sido concluído na Mesopotâmia entre 6 mil e 5,7 mil anos a. C,

fechando as três condicionantes do que o autor considera a base para a escrita-leitura completa: "ter por objetivo a comunicação; consistir em sinais gráficos artificiais sobre uma superfície durável ou eletrônica; e empregar sinais que se relacionem convencionalmente ao discurso articulado (a organização sistemática de sons vocais significativos) ou à programação eletrônica de modo que efetive a comunicação" (p. 14).

O primeiro suporte do escrito foi a tabuleta de argila. Ou seja, como lembra Fischer (2006), ler dava trabalho, era pesado, esgotava o usuário pelo esforço do manuseio de um aparato em nada ergonômico. Nada parecido com a ideia de conforto que se assentaria séculos adiante. Tudo era desconfortável, quase inimaginável diante das noções modernas de fruição, por lazer ou prazer, proporcionadas pelos objetos contemporâneos em papel ou tela. Também a extensão do texto produzido por aqueles povos dependia do formato e das dimensões da tabuleta. Desde o início, o aspecto físico guardava relação com o uso da leitura naquelas sociedades e, de uma certa maneira, condicionava o fenômeno a determinadas circunstâncias. Respeitando as devidas proporções, pensar na forma como o suporte argila limitava a leitura oferece um paralelo para se entender todas as demais evoluções materiais das superfícies da escrita: há uma economia e uma ergonomia do ato leitor sobre as quais incide a tecnologia, condicionando permanentemente o sistema de leitura.

Ainda assim, ler era aristocrático, e escrever, uma atividade majoritariamente ligada ao registro burocrático e à organização da vida cotidiana. Nestas sociedades antigas, exigia-se veracidade do escriba, pois a palavra escrita também era a palavra falada. O Código de Hamurabi20 é exemplo desse compromisso, pois condenava à morte quem prestasse falso testemunho. Havia censura e reescrita motivada por inúmeros fatores, sagrados ou profanos, justamente para manter a credibilidade do escrito. No Egito, a leitura também se expandiu, a partir de uma dupla oralidade: a escrita considerada o discurso visível, e a leitura realizada em voz alta. Para os egípcios, a leitura era "o testemunho oficial de um meio oral" (p. 26), exatamente como na Mesopotâmia.

Fischer (2006) destaca que a palavra escrita era apenas um meio, socialmente aceito, de transmitir, não tinha um fim em si mesma. "A mensagem verdadeira não está na tabuleta cuneiforme ou na carta em papiro, mas na transmissão oral final: ou seja, ela reside no escriba que lê a mensagem em voz alta para o destinatário" (p. 27). Até o século 4 a.C, foi assim: a leitura permaneceu passiva (para consulta burocrática e atuarial), sem depender de um leitor analista, que age como intérprete ativo sobre o texto. Servia, basicamente, para ajudar as pessoas a recordar. Lendas, mitos, feitiços, cânticos eram reservados à tradição e à habilidade orais. Na medida em que

20 Documento datado do século 18 a.C, que reúne um conjunto de leis editadas pelo rei Hamurabi, na

Mesopotâmia. Foi entalhado com um tipo de escrita então em desenvolvimento e espalhado por pontos do território para que houvesse conhecimento coletivo das regras de conduta. Desconhecer a sua existência ou a essência das normas nele previstas não evitava as punições prescritas, a maioria delas pela pena de morte.

aperfeiçoou a habilidade de escrever e ler, a humanidade teria perdido, já naqueles primeiros momentos, a capacidade oral de contar histórias e lembrar. Haveria uma relação indissociável entre leitura e memória21, desde os primeiros passos da humanidade, no desenvolvimento da linguagem:

Favorecendo a memorização visual, a leitura possibilitou a memorização de estruturas de ordem mais elevada e tornou possível o surgimento de recursos ou técnicas inovadores de classificação (como listas alfabéticas e referências de acrofonia) que estimulavam a recuperação mental de informações (FISCHER, 2006, p. 39).

A relação entre escrita, leitura e memória sempre estruturou o processo de ler, independente das transformações verificadas ao longo deste processo evolutivo. Sabe- se, hoje, a função que os mecanismos da memória – como a memória de curto prazo (operacional) e a de longo prazo (recursiva) – desempenham no processamento cognitivo da leitura, como se verá adiante, mas a escrita-leitura também manteve uma relação externa, de registro e retenção dos acontecimentos cotidianos. Manguel (1997) sublinha esta função já nos primórdios da pré-história do livro na Babilônia, ao dizer que a escrita nasce para ajudar a sociedade como uma manifestação de "vitória contra o esquecimento". Tal característica passaria a ser imanente ao fenômeno do leitor, associando-se inclusive ao objeto analisado neste trabalho, a leitura jornalística:

De repente, algo intangível – um número, uma notícia, um pensamento, uma ordem – podia ser obtido sem a presença física do mensageiro; magicamente, podia ser imaginado, anotado, passado adiante através do tempo e do espaço. Desde os primeiros vestígios da civilização pré-histórica, a sociedade humana tinha tentado superar os obstáculos da geografia, o caráter final da morte, a erosão do esquecimento (MANGUEL, 1997, p. 207).

Uma segunda fase da narrativa historiográfica de Fischer poderia ser denominada de [b] disseminação, a partir da revolução proporcionada pelo aparecimento do papiro. Fischer (2006) se refere ao período como sendo a época da “fala do papiro”, porque o novo suporte22 até facilitou o manuseio do material escrito, mas os textos que passaram a circular com mais intensidade pelas regiões em que a leitura se consolidava, ao sul e ao norte do Mar Mediterrâneo, ainda eram produzidos

21 A relação entre leitura e memória já está esboçada, por exemplo, em Platão, no Fedro, como será mostrado

mais adiante, neste capítulo.

22 A tecnologia do papiro foi consolidada por volta de 2.300 a.C pelos egípcios (ZILBERMAN, 2001). Base material

da produção de conhecimento em uma época de evolução da leitura, em torno do material desenvolveu-se uma verdadeira economia de produção, que alçou o Egito a centro estratégico do mundo então conhecido. O próprio investimento posterior em alternativas ao papiro foi uma resposta à concentração da produção nas mãos dos egípcios (FISCHER, 2006). O papiro original era produzido a partir de fibras localizadas no caule de uma planta de mesmo nome, dispostas vertical e horizontalmente e depois prensadas para serem secas.

basicamente para serem falados. Na Grécia e na Roma antigas, a escrita estava se generalizando, porém sem perder o seu caráter elitizado, lembrando que o "seu uso cotidiano ainda permanecia dominado pela palavra falada23. Eles ditavam cartas, escutavam declamações, ouviam notícias, participavam das leituras de literatura e cartas de seus escravos" (FISCHER, 2006, p. 41).

A proliferação do uso do papiro colaborou para o desenvolvimento de uma verdadeira economia do material, sobretudo no Egito, para abastecer a produção escrita na Grécia e em Roma. Já havia literatura em tabuletas de cera e argila, mas foi a partir do papiro que floresceu a produção de escritos e a leitura na região. Do ponto de vista tecnológico, o papiro não permitia uma leitura amigável de obras extensas, pois precisava ser enrolado e desenrolado para ser lido – seja horizontal ou verticalmente, dependendo da região –, o que dificultava, por exemplo, a localização específica de um determinado ponto do conteúdo a ser lido. Assim, para compensar a limitação, as obras eram fragmentadas em mais de um rolo. Para se ter uma ideia, a

Ilíada, de Homero, exigia 24 rolos separados, só posteriormente reunidos em um

único volume. Guardadas as proporções, é interessante estabelecer um paralelo do papiro com o scroll (rolagem) das telas, um dos traços distintivos da leitura contemporânea. Fischer (2006) lembra que a leitura do papiro se dava por quadros sequenciais, muito próximo do que ocorre hoje em uma tela de computador, tablet ou celular. Havia obstáculos, muito embora facilitasse a leitura sequencial, pertinente à leitura oral tão comum na época.

É na fase do papiro que se desenvolve a leitura grega. Os gregos leem desde aproximadamente 2000 a.C. Embora se associe à cultura grega o aperfeiçoamento da cultura ocidental, ela ainda estava vinculada à comunicação falada, à oratória e à retórica persuasiva. Um exemplo da ligação entre ler e falar à época: em grego,

anagignósko significa, ao mesmo tempo, eu leio, eu reconheço e eu leio em voz alta.

Apesar deste aspecto oral, aos poucos a leitura começa a sua trajetória de afastamento em relação a esta dimensão articulada, algo que ainda levaria muitos anos para se consolidar. O surgimento da narrativa histórica e da obra de ficção – ou seja, o tipo de

texto24 em jogo no processamento da leitura – sinalizou uma mudança fundamental e gradual de paradigma. Por volta de 700 a.C., com o início de sua popularização, a leitura passa a ser objeto de um outro tipo de reconhecimento, pois a naquele momento

23 Grifo do autor.

a "escrita permitia a complementação e a retenção de textos em um grau que a oralidade jamais conseguiria alcançar" (FISCHER, 2006, p. 47). De novo, uma associação com a ideia de luta contra o esquecimento, conforme citado por Manguel (1997).

Com Platão (427-347 a.C.), o idioma grego avança a ponto de consolidar o poder de formular ideias abstratas, que já ocorria antes, mas os diálogos do filósofo expressam o desenvolvimento da capacidade de reflexão, até mesmo sobre os significados da leitura. Em Fedro, por exemplo, Platão usa a figura de outro filósofo, Sócrates, para censurar um jovem por ter memorizado o conteúdo de um texto sobre o amor, escrito pelo sábio Lísias. Para Sócrates, a verdade não estaria na capacidade de memorização, mas na leitura oral como um vertente exclusiva da interpretação. Portanto, o esforço de memorização de Fedro teria sido em vão, pois, na concepção platônica, apenas a voz poderia transmitir o conhecimento da forma correta, ou seja, a oralidade triunfava por conta do seu potencial de interpretação unidimensional. Tal noção já estava em xeque na sociedade grega. Não é gratuito que tenha sido objeto de um diálogo de Platão. Neste sentido, a visão do filósofo ainda depreciava a escrita e a leitura como fundamentos da intelectualidade e da produção do conhecimento. Apenas aos poucos, essa percepção negativa seria substituída, com a escalada do leitor interpretativo, por uma nova perspectiva, revigorada, multidimensional.

Zilberman (2001) chama a atenção para este mesmo texto de Platão, atribuindo-lhe um significado semelhante ao de outro texto relevante na história da literatura, escrito muitos anos depois, o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Vale destacar este aspecto comparativo que, de alguma forma, aproxima essas duas obras pelo tom crítico à leitura nas duas épocas, ainda que separadas por séculos, pois, conforme a autora, "a noção de que a leitura prejudica acompanha sua história (a da

leitura)" (ZILBERMAN, 2001, p, 27). Ou seja, apesar do seu potencial de libertação e

condução à autonomia intelectual, em vários momentos da sua história, a leitura é vista com desconfiança, seja por tensionar as formas de poder, seja por materializar mudanças culturais, ou até mesmo como um forma de suspeita diante da sua própria transformação25. A autora destaca, na obra de Cervantes, o personagem que enlouquece pela leitura. Os dois retratos, segundo Zilberman (2001), mostram a leitura conduzindo a um saber "artificial e indesejado" (p, 23), arquitetados por Platão e

25 Algo dessa incerteza é percebido em reflexões a respeito da leitura digital, principalmente quando ela é vista

Cervantes, como crítica e reação a fenômenos profundos das épocas em que viveram. No caso de Cervantes, porque o livro estava se difundindo como produto cultural, adquirindo um novo status nas sociedades entre os leitores. Já o diálogo platônico flagra o momento em que a escrita se converte em uma forma de fixação da tradição, corroendo o seu caráter religioso anterior.

A crítica de Platão não deixa de ser, também, o registro da reformulação em curso. Na passagem dos séculos 5 para 4 a.C, ocorre o início do processo de afirmação da tradição escrita, muito embora sem que a sociedades perdessem o vínculo com a tradição oral. A escrita começou a ser usada para registrar e difundir o conhecimento, o que teve impacto sobre a leitura, que passa a ser objeto de interpretações criativas, livres, algo que iria se consolidar com a leitura silenciosa, alguns séculos mais adiante, mas que já estava presente ali, nos escritos gregos, em seu potencial de libertação. A leitura, assim, aproxima-se lentamente da sua concepção cultural, que lhe dá sentido até hoje: usada para "compreender, obter conhecimento e, depois, criar algo com base no texto escrito" (FISCHER, 2006, p. 49). Com o apoio material do papiro produzido no Egito, a escrita e a leitura se desenvolvem exponencialmente, com a transmissão oral do conhecimento social perdendo lugar e relevância (nunca completamente) para a possibilidade de transmissão escrita. Autonomizada, correia de transmissão da informação, das interpretações cotidianas e das criações humanas, inclusive como um dos fundamentos da produção artística, a leitura interpenetra o processo de desenvolvimento da sociedade grega, retroalimentando-o, o que significa incidir sobre a própria concepção do que se entende por cultura ocidental, dada a dimensão da influência helênica sobre o restante do mundo desde então:

Ao contrário do que alguns historiadores têm afirmado, a leitura não ofereceu a democracia, a ciência teórica ou a lógica formal aos gregos. Isto é, a leitura

per se não modificou o modo de pensar das pessoas. Na realidade, o que ela

fez foi incentivar mais pessoas a escrever sobre o que pensavam. E forneceu a oportunidade para que essas e outras predisposições similares criassem raiz e florescessem (FISCHER , 2006, p. 55).

Desta forma, percebe-se que a leitura paulatinamente acumulou outros significados, com sentidos que atravessam os tempos e permanecem presentes até mesmo na contemporaneidade. Ou seja: não é imutável, estanque, refratária. Estas camadas de utilidade e práticas foram aperfeiçoadas em vários pontos do mundo e em diferentes sociedades, em um fenômeno multifacetado e retroalimentado. Conforme Fischer (2006, p. 56), os judeus, por exemplo, introduziram a santificação da escrita e de sua matéria física, do seu suporte, conferindo à leitura uma dimensão nova: litúrgica

e de compreensão do divino. A evolução, até que este aspecto religioso fosse valorizado pela cultura judaica, foi processual, lembrando que os judeus, assim como os gregos e os romanos, também passaram pelas fases da leitura funcional, burocrática e administrativa.

Antes dos judeus, os babilônicos já haviam se interessado por relatos mágicos, portanto, de alguma forma transcendentais. A leitura e o debate se aliaram para cumprir o papel de elementos essenciais da compreensão sobre o divino, o que era, na época, um conceito novo, que também iria inspirar gregos e romanos cristãos, "cujas liturgias difundiram a prática, bem como a nova dimensão da palavra escrita, por todo mundo ocidental" (FISCHER, 2006, p. 58). O que se percebe, então, é um entrelaçamento de influências entre regiões e culturas. Os talmudistas26 inauguram uma perspectiva que iria se consagrar, no Ocidente, apenas com o Renascimento, o da revelação infinita pela leitura, algo que sempre pode ser aprendido à medida que a sociedade se transforma: "Em outras palavras, um texto pode ser duas coisas ao mesmo tempo: original (oficial) e sua interpretação (criativo), e este infinitamente complementa e perpetua aquele" (FISCHER, 2006, p. 60).

O próprio movimento físico, ergonômico, da leitura possui um processo de evolução em parte atrelado ao suporte do escrito. É inegável que, da tabuleta de argila ao papiro, passando pelo pergaminho, até a chegada do papel, a funcionalidade também tem como marca o fato de ser dinâmica, quer dizer, sujeita à evolução. Trata- se de um aperfeiçoamento criativo, testemunhado nesta época histórica de disseminação da leitura, o que significa que, também neste aspecto, as atuais transformações provocadas pela transição do papel para a tela, mais de vinte séculos depois, não são uma novidade na história do homem. Fischer (2006) traz como exemplo a diferença entre a leitura do papiro romano e do papiro grego (p. 62). A leitura em Roma era perpendicular, o contrário do papiro grego, que se direcionava para baixo em linhas contínuas. Os gregos seguravam o papiro com uma mão sobre a outra. Os romanos, com os rolos na lateral. A pontuação também foi uma invenção humana para facilitar a leitura, que se consolidou com o amadurecimento da escrita, na transição da retórica para outros apelos funcionais do texto. Vale lembrar que

26 Estudiosos do Talmude, texto sagrado complementar à Torá da religião judaica. Como exemplo da associação

sagrada ao ato de ler, os talmudistas entendiam que das escrituras emanavam interpretações reveladoras dos significados mais profundos da existência humana. Conforme Fischer (2006), os talmudistas liam incessantemente os textos religiosos, tornando a tarefa um propósito de vida, já que o Talmude reunia a lei moral e as tradições do judaísmo.

"atualmente, a pontuação é vinculada sobretudo ao significado e não ao som, o que demonstra o resultado da transformação da leitura oral em silenciosa" (FISCHER, 2006, p. 63).

Uma terceira fase da historiografia de Fischer pode ser denominada de [c]

popularização, uma das mais longas desta história possível, iniciando em Roma e

atravessando praticamente toda a Idade Média. Não é, ainda, a massificação que viria apenas com a era moderna, mas o começo da trajetória de deselitização. No início do período, a própria letra manuscrita romana contribuiu para que escrever deixasse de