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Em Santa Catarina a piscicultura começou a ser incentivada a partir da década de setenta com a fundação da ACARPESC. Os objetivos eram elevar o nível nutricional da população rural e elevar a renda dos produtores (ACARPESC, 1986). Na década de setenta os resultados foram modestos. Mas nos anos oitenta houve um rápido e relativamente autônomo crescimento da atividade^, atribuída principalmente à produção não comercial. Nesse período, as principais ações do Estado foram o apoio à instalação de unidades produtoras de aievinos. o insumo básico da piscicultura, e a contratação de técnicos para o Interior em resposta âs demandas dos agricultores, interessados nesta nova atividade (Boll e Garádi, 1995).

^ Para a Teoria do Ator-rede (TAR) quando uma tradução é feita com sucesso ela rapidamente desaparece (ver Callon, 1986b).

^ Em 1986 já havia quase 8.000 piscicultores no Estado (ACARPESC, 1986). Nesse mesmo ano as instituições responsáveis pela piscicultura em Santa Catarina eram, no âmt«to federal, a SUDEPE (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca) e, no âmbito estadual, a ACARPESC (Associação de Crédito e Assistência Pesqueira de Santa catarina), fundada em 1968 fundonava em regime de colaboração entre os governos federal (Ministério da Agricultura - SUDEPE), estadual, municipais e iniciativa privada (Godoy, 1987).

Até meados da década de oitenta, apesar da demanda dos agricultores, dos esforços realizados pelos órgãos estatais e mesmo do seu crescimento relativo, seus resultados eram pouco satisfatórios. Ainda não havia se tornado uma atividade econômica e socialmente significativa, tal como era sua promessa (ACAq, 1986). Na avaliação de pesquisadores e técnicos da área (Tamassia e Zamparetti, 1987; Grumann e Casaca, 1989; Boll, 1994), o motivo disto era a falta de um modelo de desenvolvimento tecnológico para a piscicultura catarinense. As tentativas para desenvolvê-la até então estiveram baseadas na imitação de técnicas retiradas da literatura, as quais eram "não adaptáveis à nossa realidade socioeconõmica e/ou

mal interpretadas", e na aplicação de "pacotes tecnológicos incompletos e frágeis",

que haviam resultado, consequentemente, numa dispersão de esforços e na segmentação da atividade. Em resumo, não se organizava como uma rede.

Entretanto, na década de noventa o seu crescimento foi bastante significativo, acompanhando as tendências mundiais e destacando-se a nível nacional. Passou a ser uma atividade de importância econômica para um número razoável de pequenos produtores rurais, envolvendo uma parcela significativa dos agricultores catarinenses (aproximadamente 10% deles). Mas, para que isto ocorresse, foi necessário uma série de esforços e a configuração de um contexto favorável. Assim, para desenvolver um sistema de produção de peixes "adaptado à

realidade geográfica, social e econômica dos produtores catarinenses" (Boll et al.,

1998), foi necessário a elaboração de projetos e planilhas contendo dados estatísticos, a constnjção de viveiros experimentais, a circulação de documentos e recursos, o deslocamento de técnicos, a colaboração de grupos de agricultores e

de algumas espécies de peixes, além de uma série de outras ações para o desenvolvimento e adaptação do sistema produtivo.

Em alguns momentos foi necessário a tomada de decisões técnicas a partir de uma leitura da sociedade, então traduzida (ou simplificada) como uma

"estrutura fundiária agrícola baseada na pequena propriedade e mão-de-obra familiar^' (idem) e representada - inscrita - em diagnósticos e estatísticas socioeconômicas. Também foi necessário o treinamento de técnicos; a assessoria de peritos; conseguir a reprodução artificial das principais espécies comerciais, possibilitando que a iniciativa privada dominasse esse processo e se interessasse pela produção e comercialização de alevinos; a instalação de um setor produtor de insumos e equipamentos; o treinamento dos produtores através de cursos, dados pela extensão rural; conseguir a concordância dos consumidores em comprar e comer peixe de água doce, desenvolvendo um mercado estável, que também passou pela instalação de frigoríficos e a abertura de inúmeros pesque-pagues. Sendo que a recente proliferação destes ainda pode ser associada a transformações mais amplas, envolvendo novas formas de lazer, com o deslocamento das atenções para a valorização do interior e o contato com a natureza, bem como ao domínio do transporte de peixe vivo à longa distância, através de caminhões (transfish), recipientes e técnica apropriadas.

Além de tudo, isto a piscicultura também se beneficiou de outros eventos, alguns distantes e de alcance global, cujas conseqüências vieram a favorecê-la, como foi o caso da estabilização e das restrições à expansão da captura de peixes, através de portarias, acordos internacionais, fiscalização, delimitação de espaço e tempo para a pesca, etc. Também foi beneficiada impremeditadamente

pelas freqüentes estiagens ocorridas no Estado e as tentativas de mitigar os seus efeitos, através da construção de açudes, muitos dos quais vieram a ser utilizados para criação de peixes.

A piscicultura orgânica em Santa Catarina desenvolveu-se a partir deste conjunto heterogêneo de peças que foram se encaixando, de materiais e entidades que foram sendo mobilizadas e deslocadas, de atores que foram assumindo determinados papéis. Nesse processo, o desenvolvimento tecnológico desempenhou um papel crucial, de liderança, na construção e definição do que viria a ser o “modelo catarinense de piscicultura”. Mas o seu sucesso, embora dependesse do desenvolvimento de uma tecnologia apropriada, também foi produto de uma leitura e mobilização do social e do natural. A piscicultura emergiu assim como uma rede, tanto social, como técnica e natural. Por isto, a metáfora da rede, tal como propõe a TAR (Law e Callon, 1988) pode auxiliar na análise deste processo, possibilitando ligar essa heterogeneidade, essa simultaneidade, do social e do técnico. Trata-se de um processo que na perspectiva da TAR (Callon, 1986b) pode ser considerado como de engenharia sócio-técnica, no qual há uma co-evolução; da sociedade, de artefatos tecnológicos e de conhecimentos sobre a natureza. Partindo desta compreensão pretendo descrever e analisar o modo como a piscicultura orgânica foi construída como uma rede sócio-técnica, e para isto, seguindo a recomendação da TAR, utilizarei os conceitos de ator-mundo e tradução, procurando adaptá-los ao cenário estudado.