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CAPÍTULO II 2 HUMANISMO NA ESPANHA

3 UNIVERSALISMO – UNIVERSALIS REPUBLICA

3.6 O choque da diversidade na descoberta da América

Muito além do círculo do Mediterrâneo, além mesmo do caminho aberto por Marco Polo para o comércio em direção à China, e mesmo dos relatos dos monges sobre terras distantes, aonde chegam levando a “ palavra”; a despeito de todo o acervo cultural greco-romano, das tradições judaicas, da cultura egípcia, ou do compartilhamento de vários séculos de Islã, nada poderia estar carregado

257Vio Cajetan. Secunda Secundae Partis Summae Totius Theologiae D. Thomae Aquinatis, p. 66, a. 8,

apud Höffner. Op. cit., p. 59.

258 Ángel Losada. Juan Luis Vives y la polémica entre Fray Bartalomé de Las Casas y Juan Ginés de Sepúlvida sobre las justas causas de la guerra contra los índios. In:F. J. Fernandez e outro (Coords). Luis Vives y el Humanismo Europeo, p. 46.

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de maior significado para a Espanha do século XVI do que a Descoberta da América, embora alguns não concordem.

A tarefa enfrentada pelos conquistadores e colonizadores e o confronto com a diversidade, para se pensar, em seguida, na construção da unidade do Império, colocam a Espanha, unificada a duras penas, diante de um desafio tão inusitado quanto gigantesco.

Reconhece-se, contudo, que os espanhóis realizam na América uma obra edificadora, equivalente àquela construída pelos romanos na Europa e no norte da África, e sua presença na América se traduz rapidamente pela fundação de cidades e em sua organização jurídica e econômica. Algumas dessas cidades, em pouco tempo, abrigam uma população maior do que as mais importantes cidades da Espanha – Potosí chegou a contar, em seu período de esplendor, com mais almas que qualquer outra cidade do Império.259

Ao contrário dos portugueses, os espanhóis plantam, desde cedo, além do ensino fundamental, o ensino superior na América – se estabelece a primeira Universidade em Santo Domingo, em 1538, obra dos dominicanos, com faculdades e privilégios iguais aos de Alcalá de Henares; em 1551, no México e em Lima, ambas com atribuições reais e pontifícias.260

Entretanto, a saga da conquista se exprime dramaticamente em sentido inverso, quando inclui a questão dos povos indígenas e da ocupação legítima das terras descobertas, conforme comentário anterior. A idéia de orbe plantada por Vitoria, como princípio geral do direito das gentes, se aplica também às sociedades não cristãs, que possuem um direito natural e devem ser reconhecidas como pessoas jurídicas.

259 Diego Abad de Santillan. Op. cit., p. 84. 260 Ibid., p. 86.

Assim, toda comunidade humana que respeite uma ordem natural – a qual não se confunde com a ordem cristã-européia ou ocidental – deve ser admitida como sujeito de direito das gentes. A diversidade, portanto, se apresenta como importante deflagrador de um sistema jurídico-filosófico que se amplia, sem dúvida, na medida em que outros fatores políticos e econômicos se acrescentam, no interior e fora do continente europeu, porém, destacando-se, soberbamente, os conflitos decorrentes da conquista do Novo Mundo.

Truyol revela a própria perplexidade, quando descobre o “novo” brotando da obra dos pensadores espanhóis, especialmente aqueles de Salamanca quando diz:

“Prescindindo de outros aspectos, nos bastará assinalar um sentido muito mais agudo da diversidade e da complexidade da natureza humana, que por sua força havia faltado ao humanismo anterior, excessivamente entroncado na tradição ‘clássica’. Este sentido da diversidade e da complexidade da natureza humana conduz a uma noção mais relativa da cultura. Se tal noção encontrou, como é sabido inequívoca expressão em Montaigne (especialmente em Les Essais, livro I, cap. 31: ‘Des cannibales’), entendemos que subjaz também implicitamente em determinadas observações de Vitoria, entre elas a de seu famoso parágrafo da primeira parte da Relección

De Indis: ‘ Porque em realidade não são os

bárbaros americanos idiotas, senão que têm, a seu modo, o uso da razão. É evidente que têm certa ordem nas suas coisas..Ademais, têm também uma religião”.261

Parece óbvio que o mérito de Vitoria se traduz em saber explorar intelectualmente os novos tempos, em construir novos saberes no plano do direito das gentes. Vitoria suscitou, já àquela época, um sentido de universalismo político e jurídico de alcance planetário, que não havia sido pensado anteriormente.262 O mestre de Salamanca criou a pauta para toda uma escola espanhola de direito internacional que se desenvolveu no curso dos séculos XVI e XVII, além de ter influenciado, inegavelmente, outros internacionalistas europeus.263

261 Antonio Truyol. Vitoria en la perspectiva de nuestro tiempo. In: Francisco de Vitoria. Relectio de

Indiis. (Introducción). p. CXLV.

262 Ibid., p. CXLVI. 263 Ibid., mesma página.

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A partir daí, pode-se afirmar que se constroem os fundamentos de uma doutrina, em um dos momentos mais decisivos da história, sobre o gênero humano, plenamente includente, porque universal.

Michel Villey admite que, trabalhando sobre os textos da Suma Teológica, os espanhóis transmitiram para a Europa moderna um direito público com outro espírito.264

E completa:

“Nem é preciso lembrar que o direito internacional, que é uma das grandes criações da Europa moderna, nasceu na Espanha; que ali se encontram seus verdadeiros ‘fundadores’, com Vitoria, Soto ou Suárez. E esse direito internacional se edificou, como bem se sabe, sobre a base do direito natural ou do ‘direito das gentes’. (...) Ninguém ignora que os espanhóis cultivaram o direito colonial. O direito colonial deles voltou aliás à ordem do dia com o sucesso do livro de Hanke: porque se inspiram em São Tomás e aplicam a doutrina deste segundo a qual a origem das soberanias e das propriedades é

natural, isto é, independentemente da adesão à fé

cristã, os espanhóis Vitoria, Soto, Las Casas afirmam os direitos dos índios e constroem um direito colonial do qual, infelizmente, a Europa se afastou”.265

Deve-se considerar, portanto, como provável, a proposta de que a expansão geográfica representada pelo Novo Mundo, povoado por aborígenes, além da configuração já conhecida das fronteiras da África, contribui significativamente para a formação da idéia de comunidade universal das gentes. É importante que se destaque, contudo, que as idéias de diversidade e universalidade que compõem o pensamento ibérico convivem, ao mesmo tempo, com a fundamentação daquilo que convém denominar-se “Estado espanhol”. 266 Ainda no século de ouro, Suárez faz referências ao termo “nacional”, que a ele mesmo se apresentava com sabor de novidade.

264 Michel Villey. Op. cit., p. 375. 265 Ibid., pp. 373-374.

Todavia, é surpreendente que, em meio às inúmeras variáveis que se somam, estruture-se, finalmente, o complexo universo espanhol do início do século XVI. Uma realidade forjada no conflito religioso e no compartilhamento de culturas decorrentes de invasões, ocupações, domínios e assimilações diversas, uma verdadeira confluência de fatores, de que resulta o espírito do povo ibérico deste tempo.267 A riqueza da literatura do denominado Siglo de Oro Español é

outro dado que se acrescenta à estética renascentista espanhola, de forma marcante e definitiva, bem como a outras proposições culturais que contribuem, sem dúvida, com a idéia de “universalidade do gênero humano”. Esta idéia transcende aspectos políticos e jurídicos para localizar-se no plano filosófico do significado da própria Orbe como comunidade de indivíduos.

267 Diego Abad de Santillan. Historia institucional argentina, p. 57. “La lucha secular de los pequeños

reinos de la península Ibérica contra la dominación secular también de los musulmanes, realizada bajo el estandarte de la fe cristiana y con el impulso y apetencias de una nobleza turbulenta, consumió las mejores energias de un pueblo. Los reys de León y luego los de Castilla, tuvieron que recurrir a los municipios, a los pueblos para hallar en ellos factores de resistencia contra ricos hombres y los nobres; la monarquia adquirió así un carácter especial, en la que se combinaba el poder real con ciertas formas democráticas, que tuvieron expresión institucional en las Cortes, hasta que, domonados en parte los nobles, la aristocracia prepotente, se fue abandonando el sistema da las Cortes y se volvió al absolutismo originario”.