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IV CAPÍTULO

4.5 O Sumo Pontífice é o monarca de todo o orbe?

Conforme se depreende em De Indiis, existe uma compreensão muito bem fundamentada de que o Sumo Pontífice é monarca de todo o orbe, inclusive no domínio temporal, e, portanto, pode submeter os príncipes daqueles bárbaros aos reis da Espanha.313 Vitoria faz referências a alguns juristas, em número considerável, que sustentam a jurisdição temporal plena e universal do Pontífice de Roma sobre todo o orbe e, ainda, de que todo o poder dos príncipes seculares dimanam do Papa.314

312 Francisco de Vitoria. De Indiis, p. 42. “Probatur, quia etiam qui Imperatori tribuunt dominium orbis, non

dicunt eum esse dominum per proprietatem, sed solum per iurisdictionem, quod ius non se extendit ad hoc ut convertat provincias in suos usus aut donet pro suo arbitrio oppida aut praedia. Ex dictis ergo patet quod hoc titulo nec possunt hispani occupare illas provincias”.

313 Francisco de Vitoria. De Indiis, p. 43.

314 Ibid., pp. 42-43. Praeter auctores infra citatos confer: Innocentius IV, In quique libros Decretalium, Lugduni 1578, cap. 42, n. 6, fol, 206 v (Cfr. J. A. Wat, The Theory of Papal Monarchy in the Thertheenth:

The Contribution of the Canonists, Traditio XX, 1564, 244 n); Niccolai Tudeschis Catanensis (Siculi,

Abbatis Panormitani), Primae partis in secundum Decretalium (explicabat anno 1421), cap. XIII Novit ille, ad. 3, fol. 40; Felinus Sandeus, Super Decretales. Augustae Taurinorum 1528, lib. II, tit. I De iudic. C. Novit

ille, fol. 20; Iohannes Andreas, In secundum Decretalium librum Novella commentaria. Venetiis 1612, De

iudiciis, cap. 13. Novit, fol. 10; Philipus Decius, Super Decretales. Lugduni 1594, II – I. De iudiciis, Novit, fol. 123; Oldradus De Ponte, Consilia et quaestiones. Viennae 1461. ( Caret foliorum numeris), quaest. CLXXX; Paulus de Castro, In primam partem codicis praelectiones. Lugduni 1544, fol. 26. Magnam copiam auctorum citat Martinus de Azpilcueta, Commentaria et tractatus, Relectio Caput Novit, de iudiciis. Venetiis 1590, fol. 94.

Ainda em torno do mesmo tema, o humanista de Salamanca faz especial destaque para Enrique de Segusio (In tertium Decretalium librum commentaria, 1631), Arcebispo de Florença e Agostinho de Ancona. Mas reforça que é em Silvestre Prierias que se identifica com mais amplitude e condescendência o reconhecimento do poder do Papa sobre todo o orbe.315

Há momentos na leitura de De Indiis em que se identifica em Vitoria uma voz solitária, parece que seus argumentos brotam de uma mente inadequada ao seu tempo, e, especialmente, contrária aos interesses da Igreja e da Espanha do século XVI. Percebe-se uma posição de pensador independente, especialmente na argumentação que contrapõe ao poder do Papa, defendida abertamente pela maioria das mentes mais respeitadas desde o Medievo. Aqui Vitoria faz referências inclusive ao argumento de S. Tomás, do qual discorda:

“(...) parece também favorecê-la Santo Tomás ao fim do segundo livro das Sentenças, cujas últimas palavras, respondendo ao quarto e último argumento de todo o livro, são de que o Papa possui a supremacia dos poderes civil e espiritual. A mesma teoria defende São Irineo”.316

Vitoria já havia tratado extensamente sobre o domínio temporal do Papa em sua Relección De potestate ecclesiastica, todavia, retoma o tema em De

Indiis, para apresentar uma primeira proposição: “O Papa não é o senhor civil ou

temporal de todo o orbe, falando de domínio e poder civil em sentido próprio”.317 Prova-se esta tese com os mesmos argumentos utilizados contra o poder do imperador: não lhe pode pertencer o domínio senão por direito natural, por direito divino ou por direito humano. Por direito direito natural e por direito humano é certo que não lhe pertence. Segue com a sua primeira conclusão: “por direito divino”, não consta em nenhuma parte, logo esta afirmação é gratuita e sem fundamento.318

315 Francisco de Vitoria. De Indiis. passim. 316 Ibid, p. 45.

317 Ibid., pp. 46-47. 318 Ibid., p. 48.

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Recorda-se o grande pensador daquilo que o Senhor disse a Pedro: Pasce

oves meas (Ioan. 21, 17)319, e destaca que isso só demonstra, de forma bem

clara, que se trata de um poder espiritual e não temporal. Ademais, apresenta a prova de que o Papa não é senhor de todo o orbe, “porque o mesmo Senhor disse que ao fim dos tempos se formaria um só rebanho e um só pastor. O que se vê no presente é que as ovelhas não pertencem a um só rebanho”.320

A conclusão, que resulta bem fundamentada, é altamente significativa do ponto de vista do direito internacional na medida em que Vitoria reconhece a existência de fontes diversas de poder que se congregam em perspectiva universal, e demarcam finalmente a fronteira entre temporal e espiritual, divisando o que seriam, no futuro, as relações entre os Estados modernos – especialmente a formação do conceito de autoderminação. Além do mais, a Europa vive a contra-reforma, e nuvens negras da guerra, que se fará entre católicos e protestantes, se formam densamente no horizonte. Especialmente naquele momento, afirmar que as ovelhas já não pertencem a um mesmo rebanho é, acima de tudo, um ato de independência acadêmica e, acima de tudo, de grande coragem.

Parece que finalmente Vitoria fecha a conclusão aduzindo que alguns pensadores sustentam a teoria das “duas espadas” – o Papa exercendo os poderes temporal e espiritual sobre todo o orbe - esta é uma atitude própria do bom cristão. Complementa seu argumento lembrando a posição pró-Igreja de Palude, Durando e Enrique Goethals, além do seu pensador preferido, de quem se permite discordar uma vez mais – o mesmo dizem alguns autores mais antigos, como também Santo Tomás no livro primeiro das Sentenças.

Destaque-se, entretanto, que a grande questão nem ao menos fora enfrentada de fato, e Vitoria apresenta sua quarta conclusão: El Papa no tiene

ningún poder temporal sobre esos bárbaros ni sobre los demás infieles...321

319 Francisco de Vitoria. De Indiis. p. 48. 320 Francisco de Vitoria. De Indiis, passim. 321 Francisco de Vitoria. De Indiis, p. 48. 321 Ibid. mesma página

Todavia, o cerne do problema só é atingido quando finalmente declara: Ahora

bien, no tiene potestad espiritual sobre ellos. Luego tampoco temporal...322

A despeito de os argumentos contrários ao poder do Papa parecerem esgotados, Vitoria, fiel à escolástica, apresenta ainda um corolário da sua conclusão: Aunque los bárbaros no quisieran reconocer ningún dominio al Papa,

no se puede por ello hacerles la guerra ni apoderarse de sus bienes y territorios. Es evidente, porque tal dominio no existe...323

Finalmente, se esgota a questão da submissão dos bárbaros ao domínio da fé cristã. É sustentável e profundo o argumento de Vitoria de que, se os bárbaros se negarem a receber a Cristo, estejam obrigados a submeter-se ao poder do seu vigário na terra, escravizados, privados de seus bens e até condenados ao suplício.

Assim, é renegada qualquer validade ao título de domínio da Igreja sobre os índios e às terras tradicionalmente por eles ocupadas, e, por evidente, não existe qualquer sombra de legitimidade, à luz do direito, em declarar-lhes a guerra. Surpreendentemente, Vitoria arremata esta questão alegando:

Claramente, pues, se ve por todo lo dicho que cuando la expedición real se dirigió a las tierras de los bárbaros ningún derecho llevaba consigo para ocupar sus provincias.324 Vê-se, portanto, que a questão se estende além da esfera da Igreja para atingir a discussão sobre a legitimidade da ocupação das terras descobertas, em nome da coroa da Espanha.