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IV CAPÍTULO

4.10 Religião e Estado

Ao final da terceira parte de De Indiis, Vitoria trata especialmente de responder questões relativas às relações dos cristãos com os infiéis; observa-se, entretanto, uma certa dificuldade em encontrar respostas acerca da possibilidade de domínio dos infiéis sobre os cristãos. O que não se contesta é que, mais uma vez, se cruzam razão de Estado e religião nesta obra que engloba filosofia, direito, política e relações internacionais. Luciano Pereña explica quais são as

353 Francisco de Vitoria. Op. cit., p. 125.

354 Lewis Hanke. Las teorías políticas de Bartalomé de Las Casas, p. 53. “Cuando Las Casas se refiere al

modo de vivir de los índios en aldeas (Política) toca de cerca el centro de los problemas politicos. Aunque los indios insulares no construyen grandes edificios, o importantes muralhas, o ciudades magníficas, viven agrupados en paz y Amistad, y unidos por Fuertes lazos de afecto, lo que llena el requisite más importante para la formación de um Estado perfecto y permanente. Las Casas cita , para apoyarse, el precepto de S. Agustín, que dice que la concordancia de voluntades es la base más importante de la ciudad perfecta (San

motivações subjacentes, ou seja, porque é este o pensamento espanhol predominante no século XVI.

Considerando que as cruzadas da Idade Média desembocam nas guerras religiosas, e este fato constitui o ponto nevrálgico da política européia dos tempos que se seguem, as próprias relações entre os Estados passam a ser orientadas por motivações religiosas.355 Assim, a religião passou a ser também o fulcro da vida internacional, conforme complementa Pereña:

“Entre os dois conceitos de religião e de Estado, que determinaram a grande crise do Renascimento, foi se definindo uma nova elite que pressagiava outro rumo à política internacional. A justiça a serviço da comunidade dos povos se convertia em civilização cristã. Esta evolução teórica de religião à justiça, de Estado à comunidade internacional, se deveu ao esforço dos internacionalistas da Espanha Imperial”.356

Reconhece-se em Vitória, entretanto, um talento extraordinário para estruturar a idéia de trânsito da res publica christiana medieval ao moderno sistema europeu de Estados, quando opta por reconhecer a totius orbe como norma suprema, que se traduz no universalismo:

“O pressuposto deste universalismo não é outro senão a unidade do gênero humano que resulta da igualdade essencial dos homens e dos povos, tal como proclamam em trajetórias convergentes a antropologia estóica e a cristã, as quais se refere Vitoria expressamente. A comunidade internacional universal é fruto da sociabilidade natural do homem, que não se detém nos limites de sua cidade ou de seu povo, senão que se estende à universalidade do gênero humano”.357

O grande obstáculo que se apresenta aos pensadores políticos do século XVI, é um entendimento, quase unânime, de que não há relação possível entre Estado e heresia - que é vista como uma espécie de corrupção. Isto porque a

355 Luciano Pereña Vicente. Estudio preliminar, In: Francisco Suárez. Guerra Intervención Paz Internacional, p. 18.

356 Ibid., mesma página.

357 Antonio Truyol. Vitoria en la perspectiva de nuestro tiempo, In:Francisco de Vitória – Relectio de

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religião é a base da justiça e significa a unidade da pátria. O príncipe herege ou sismático põe em risco o Estado e é um corruptor da República.358

Identifica-se, na voz de Vitoria, a angústia pessoal que lhe assoma ao espírito quando trata do tema, mais nitidamente visível na carta que envia ao P. Arcos sobre negócios das Índias, quando diz:

“E uns alegam ao Papa e dizem que vós sois cismático, porque pondes dúvida naquilo que o Papa faz, e outros alegam ao Imperador que condenais a sua majestade e condenais as conquistas das Índias; e falam a quem os ouça e favoreça. E deste modo confesso meu enfraquecimento que finjo quanto posso para não romper com esta gente. Mas se eu pressagio constrangimento em responder categoricamente, ao fim digo o que sinto”.359

Lewis Hanke alerta para o fato de que o trato com os índios é, especialmente, uma questão espinhosa para a Espanha, desde que Colombo pôs seus pés no Novo Mundo.360 Isto porque a legitimidade da posse das terras recém-descobertas repousa na importante Bula Inter Coetera de Alexandre VI, de 4 de maio de 1493, que dá aos reis de Castela direito ao território, mas lhes impõe um dever: estender os domínios do evangelho e trazer os pagãos ao rebanho de Cristo.361

A partir desse pressuposto político-religioso, devidamente sedimentado, atuará Francisco de Vitoria assumindo uma franca posição em favor dos povos sob domínio dos espanhóis. Destacadamente em Relectio de Indiis manifesta-se acerca da soberania dos povos indígenas, provocando, segundo Ruiz, de forma imediata uma revolução jurídica e legislativa que, ao longo do tempo, criará uma realidade social nova entre conquistadores e índios.362 Desde logo, percebe-se

358 Luciano Pereña Vicente. In: Francisco Suárez, Guerra Intervención Paz Internacional (Estudio Preliminar), p. 34.

359 Francisco de Vitoria. Relectio de Indis: O Libertad de los Indios, Apêndice I, pp.136-137. .“Y los unos

allegan al Papa, y dicen que sois cismático, porque pones duda en lo lo que el Papa hace; y los otros allegan al Emperador, que condenais a su magestad y condenais la conquista de las Indias; y hallan quien los oiga y favorezca. Itaque fateor infirmatem meam, que huyo cuanto puedo de no romper con esta gente. Pero si omnimo cogor a responder categóricamente, al cabo digo lo que siento”.

360 Lewis HANKE. Las teorías políticas de Bartolomé de Las Casas, p. 9. 361 Ibid., mesma página.

um fino pensamento universalista a inspirar o mestre de Salamanca, especialmente quando propugna pela prevalência do bem-comum como única forma de convívência pacífica entre os povos.

A despeito de todas as convenções, a idéia vitoriana da orbe como vida comunitária, bem-comum, bonum commune totius orbis, como norma suprema de uma ordem pacífica mundial prevalece, de fato, como perspectiva essencialmente universalista. Além disso, conforme leciona Truyol, o bem-comum particular de cada povo há de submeter-se ao bem-comum da orbe, por ser esta uma realidade superior àquela.363 Nesta mesma perspectiva comunitária, o ius communicationis significa, em Vitoria, a idéia de justiça distributiva e de justiça social nas relações internacionais, porque busca a realização das exigências legítimas de cada povo em consonância com um ideal de justiça internacional.364

Para além das crenças religiosas, importa, substancialmente, a Francisco de Vitoria os direitos da pessoa humana, que sobrepuja questões de Estado, para localizar-se na universalidade transcendente da comunidade dos povos. Assim, os bárbaros devem ser defendidos a qualquer custo, independentemente de fé religiosa que professem ou de seus costumes ancestrais, o que acaba por forçar a coroa espanhola a criar um corpo jurídico especialmente para a América, o Direito Indiano. Assim, aos interesses da Igreja e dos reis da Espanha, opõe o mestre de Salamanca os direitos fundamentais dos povos índígenas.

E, finalmente, é em Vitoria que se localiza substancialmente a idéia de tutela do direito à vida e da liberdade na esfera de poder do Estado, e que, pela sua função social, deve protegê-los com leis justas e equitativas; todavia não é senhor absoluto da vida e da liberdade dos cidadãos, nem tampouco a Igreja poderia tomar a si este poder, simplesmente porque não há título legítimo que o justifique.

363 Antonio Truyol In:Francisco de Vitoria, De Indiis. (Introducción), p. CXLVIII. 364 Ibid., p.CXLIX.

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Todo homem tem direito de exigir do Estado garantia jurídica para desfrutar uma vida pacífica e tranqüila, além disso, a proteção do direito à vida não pode ser esquecida pela comunidade internacional, tratando-se, neste caso, de um direito universal. Portanto, à luz da conquista da América, Vitoria elabora a tese da liberdade – o poder político não pode se constituir em barreira aos direitos inalienáveis da pessoa humana.

Pereña fala muito bem sobre um natural desdobramento deste pensamento revolucionário plantado por Vitoria:

“As suas teses manter-se-ão vivas nos seus alunos e discípulos, muitos dos quais ocuparão cargos de relevância tanto nas universidades espanholas quanto nas americanas; tanto na vida acadêmica quanto na vida política; de maneira que pouco mais de trinta anos depois de sua De Indiis, o procurador geral dos índios, Francisco Falcón, no II Concílio Provincial de Lima, apresentou sua

Representación, em que perfilava, seguindo os

rumos de Vitoria, a saída jurídica para a conquista americana: um acordo de protetorado entre os dois povos soberanos, os índios e os espanhóis”. 365

365 Luciano Pereña. Carta Magna, p. 269, apud Rafael Ruiz. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos, p. 183.

CAPÍTULO V

5 JUS GENTIUM COMO DIREITO À PAZ

A idéia vitoriana de communitas orbis, ou seja, uma sociedade de Repúblicas ou Estados soberanos, igualmente livres e independentes – que será retomada por Suárez e Molina, mais tarde – é considerada verdadeiramente revolucionária para o seu tempo; (...) sujeitos externamente a um mesmo direito

das gentes e internamente às leis constitucionais que eles mesmos se derem.366

Vitoria, em suas Relectiones, consegue, de fato, sedimentar a idéia de um direito que regule, além das relações entre os indivíduos, as relações entre os povos e as nações – inter gentes -, baseado no direito de comunicação e nos princípios de solidariedade e liberdade367, conforme se destacou no capítulo anterior, quando do comentário de De Indiis (ius naturalis societatis et

communicationis).

Em De potestate civili, Vitoria afirma que o poder da República está constituído por Deus e pelo direito natural, todavia considera que o gênero

humano tem o direito de eleger um só monarca antes de fazer a divisão em vários principados. Logo, poderá também retirá-lo, já que este poder, sendo de direito natural não cessa.368

366 Francisco de Vitoria, apud Luigi Ferrajoli. A soberania no mundo moderno, p. 7. 367 Javier Hervada. Historia de la Ciencia del Derecho Natural, p. 220.

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Observe-se, entretanto, que todo o “orbe” forma uma “República”, e disto se infere que o “direito das gentes”, na concepção vitoriana, não só possui força pelo pacto realizado entre os homens, senão que detém, intrinsecamente, verdadeira força de norma internacional imperativa – jus cogens.369 A partir do

direito natural, Vitoria implanta regras fixas de direito internacional, ou seja, converte o pragmatismo de suas concepções doutrinárias em regras jurídicas expressas em âmbito internacional.370 É inegável que, pela observação da natureza, não se chega à composição de regras, e, tampouco, a soluções fixas, o que sugere, em dado momento, uma considerável distância tanto de Santo Tomás quanto de Aristóteles.371

Suárez, por sua vez, não nega a existência de uma “comunidade de potências” cujos princípios são os mesmos do direito das gentes, base indispensável, quando se intente realizar a sociedade contratual de nações. Assim, se harmonizam a unidade de conjunto e a individualidade das partes. Cada indivíduo tem, por sua própria natureza, por suas faculdades, a virtude inicial para compor ou formar a comunidade perfeita. Todavia, há que se harmonizar e dar coesão a esses membros, dirigindo-os a um fim que a todos interessa: o bem-comum.372

Com idênticos direitos e deveres, todos os Estados convivem com o direito à sua independência e o dever de respeitar a independência dos outros. A soberania limita a própria soberania. O direito é o princípio absoluto que a determina - só em função do direito, a soberania encontra subsistência.373