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2.2 OS VOLUNTÁRIOS E O COMPORTAMENTO HUMANO

2.2.2 O comportamento humano

O comportamento humano tem sido alvo de estudos desde o início do século XX, não apenas por ser uma área abrangente, mas também por fazer parte de uma ciência, a Psicologia, com muitos campos ocultos e teorias profundas. Uma das muitas razões por este interesse é a raça humana ser considerada única (HATTORI; YAMAMOTO, 2012).

Guerreiro Ramos (1984), na ciência da administração, propõem uma sistematização da sua concepção de homem afastando-se da categoria cristã de pessoa humana. Assim categoriza o homem operacional (equivalente ao homo economicus usado na economia

clássica) como sendo o predominante na ciência política, cuja validade foi questionada. Categoriza também o homem reativo, desenvolvido pelos humanistas e os seus antecessores ao sistema industrial, e, por fim apresenta o homem parentético. O homem parentético é um reflexo das novas circunstâncias sociais da época (década 1980), que tenta ser autônomo, dotado de consciência crítica altamente desenvolvida sobre as premissas de valor do seu cotidiano e que atinge um nível de reflexão conceitual que lhe confere liberdade. Deliberadamente, o homem parentético distancia-se do meio para abstrair a vida diária examina-la e avaliá-la como um expectador, quase tornando-se um estranho em seu meio social, maximizando sua compreensão deste meio. Guerreiro Ramos (1984) afirma que esta é uma atitude parentética construída com base na capacidade psicológica do indivíduo de separar-se de circunstâncias internas e externas.

Kanaane (1994), por sua vez, considera o homem como um ser social, com capacidades de relações sociais, com aspectos facilitadores e impeditivos, como bloqueios e omissões, os quais caracterizam o processo de socialização. No processo de socialização que o autor se refere, a pessoa direciona suas vontades e valores intrínsecos, que vêm desde a infância, composto por normas e valores transmitidos pela família. Assim estabelecessem-se funções instrumentais, consumatórias, “ajustadoras ou utilitárias, ego-defensivas, expressão de valores e de controle e apropriando-se de fatores condicionantes de uma sociedade” (KANAANE, 1994, p. 43-44).

Para Freud (1974), a sociedade gerou regulamentos que ordenam a vida de seus integrantes resultando em privação da liberdade comportamental, acometendo os indivíduos a renunciarem tal liberdade para o bem da convivência social. O caráter do homem é formado por valores da sociedade, possibilitando a autoafirmação e construção da sua individualidade (KANAANE, 1994). Afirma Kolb (1977), não se pode deixar de levar em consideração, que o ser humano, quando nasce já é dotado de padrões inscritos e potencialidades; um conjunto constituído por padrões e tendências comportamentais, definido pelo termo “personalidade”. Derivado da personalidade, o caráter é a base para entender a maneira do indivíduo relacionar-se, defender-se e adaptar-se às diversas maneiras de dirigir e tratar suas necessidades, conflitos internos, angústias e inclusive o nível de fantasia mental (BERGERET, 1988).

Uma das necessidades humanas é a interação social. Lewin (1973), que elaborou a teoria do campo social, diz que o indivíduo, consciente ou não de suas ações, utiliza um determinado grupo de relações sociais para manter e satisfazer suas necessidades próprias, inclusive suas ambições sociais, usando o grupo como um instrumento. O referido autor

pressupõe que, para adaptar-se socialmente, a pessoa deverá superar e atualizar suas ambições e atitudes, ou seja, atingir seus objetivos pessoais mantendo laços com outros membros do grupo social ao qual pertence.

Complementando a teoria de Lewin (1973), Schutz (1978) revela que as necessidades interpessoais podem ser representadas por “necessidades de inclusão, controle e afeição”. A necessidade de inclusão tem o objetivo de manter um bom relacionamento com outras pessoas, resultando em interação e associação. A segunda necessidade, de controle, seria a existência de um conforto psicológico em controlar e ser controlado, sendo uma ligação ao sentimento de respeito mútuo pelo merecimento de ser respeitado. E, por fim, a necessidade de afeição mantém relacionamentos satisfatórios com outras pessoas no que concerne ao amor e à afeição.

Ao reconhecer o ser humano como um ser social e com necessidade de relacionamentos sociais, abre-se espaço para correlacionar o comportamento dos voluntários às necessidades humanas básicas descritas por Maslow (1943), em especial a de auto realização. Insere-se aqui o pressuposto teórico de que não é um ato de voluntariado, na perspectiva da justiça social, que os voluntários buscam realizar nas OSCs, mas um ato de voluntariado por interesses pessoais. Trata-se de uma pressuposição teórica dos fatores comportamentais que orientam as ações dos voluntários, cuja as categorias analíticas são egoísmo, intenções e interesses, as quais são descritas a seguir:

a) Egoísmo

A palavra egoísmo deriva do latim e significa ego, ou seja, “eu”; e seu sufixo “ismo” ou “ista” é utilizado para representar uma doutrina, um dogma, uma teoria. Como exemplo, ateísmo, cristianismo, economista, etc. Sua interpretação nas ações do cotidiano permite afirmar que um indivíduo egoísta concentra todos seus pensamentos e atividades sobre si próprio. O altruísta cujo termo surgiu em 1830 na escrita de Augusto Comte, significa exatamente o contrário. O indivíduo altruísta é aquele que pensa primeiro no próximo para depois pensar em si (ABBAGNANO, 1982).

Freud (1974) explica que, na evolução da sociedade humana, os indivíduos incorporaram fatores sociais na sua personalidade. Desta maneira, a crença religiosa é um dos fatores do comportamento altruísta representado pelo temor à Deus, considerado “o todo poderoso”. No sentido egoísta do comportamento humano, o não atendimento à crença religiosa comprometeria a vida futura. Portanto, sem inibição ou temor, os indivíduos seguem seus instintos mais intrínsecos associais e egoístas, podendo acarretar no retorno de uma

época caótica com batalhas exercidas no poder e na soberania. Talvez tal comportamento justifica a livre escolha em exercer voluntariado em organizações religiosas, como o Cáritas, fundada e atuante nas dependências físicas da Igreja Católica.

Na interpretação de Santos (1955), Aristóteles demonstrava em seus manuscritos acreditar que “o egoísmo não é amor por nós próprios, mas uma desvairada paixão por nós próprios”. Neste pensamento está implícita a individualidade do sentimento de egoísmo, que faz o indivíduo realizar um ciclo de interesses que beneficie a si próprio. Portanto, pode-se subjugar egoísmo como amor próprio, ideia que vem ao encontro do que Smith (1999) considera um tipo de interesse próprio, podendo tornar-se vício com um resultado nada benéfico ao social. Assim, para Smith (1999), egoísmo é uma meta de ganho em que escolhe- se o melhor para si. Smith (1999, p. 5) faz a seguinte consideração:

Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte dos outros, e considera a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso senão o prazer de assistir a ela.

Desta maneira, os doadores voluntários de ações não apenas alimentam seu egoísmo em exercer tal prática, como também se satisfazem com a felicidade resultante dos beneficiados de suas ações.

De acordo com Rachel (2013), há dois tipos de egoísmo: egoísmo psicológico e egoísmo ético. O egoísmo psicológico tem por base a teoria motivacional, a qual considera que todos os desejos, até os mais profundos, referem-se a si mesmo. O ser humano, toda vez que quer o bem de outro (ou mal), tem um desejo instrumental, ou seja, preocupa-se com o outro apenas porque influenciará seu bem-estar. Todavia, é importante evidenciar que o egoísmo é uma teoria descritiva e não normativa. Desta forma, procura-se caracterizar as motivações dos indivíduos, mas nada diz sobre a conduta certa ou errada desta motivação (RACHEL, 2013).

Hobbes (2012) explica o egoísmo psicológico utilizando seu antônimo, “altruísta”. Considera que todos os indivíduos são compreendidos em termos egoístas, e após o término de seu projeto6, que não por coincidência é a representação do “Mundo da Fama” na Sociologia Pragmática, dentro de uma linha teórica crítico política, seria eliminado o altruísmo do entendimento da natureza humana. O referido autor subclassificou o altruísmo em caridade e piedade, como consta no Quadro 4.

Quadro 4 – As definições de altruísmo egoísta em Hobbes.

Caridade

Definida como amor ao próximo. Porém, se não há amor ao próximo, o comportamento caritativo deve ser entendido de outra forma. A caridade é o prazer de cada indivíduo na demonstração dos seus poderes. Um homem caridoso está provando para si mesmo e ao mundo, que possui mais recursos que os demais e, ainda, que é capaz de cuidar de si mesmo e tem o suficiente para ajudar outros. É um exibicionista de sua superioridade.

O homem caridoso não pensa desta forma. O próprio homem não é o melhor juiz de suas motivações. Desta forma, é perfeitamente natural que as pessoas interpretem suas ações altruístas como algo encantador.

Piedade

Poder-se-ia pensar que piedade é compadecer-se com os outros, é sentir-se infeliz com seus infortúnios. Partindo deste princípio, pode-se tentar ajudar a outros, por acreditar que a mesma coisa poderia lhe acontecer.

Consiste em imaginar ou fantasiar as próprias calamidades futuras, partindo da consciência das calamidades de outros.

A piedade requer a necessidade de identificação com a pessoa sofredora, pois o ser humano tem a capacidade de sentir piedade quando imagina-se no lugar do sofredor. Assim, justifica-se o sentimento de piedade em pessoas que se consideram boas, pois o indivíduo não se julgará a si próprio como uma pessoa má.

Fonte: A autora (2016) com base em Hobbes (2012).

Desta maneira egoísmo psicológico representa que as pessoas sempre agem de forma a beneficiar-se; e o egoísmo ético representa que as pessoas devem agir em função do seu próprio bem-estar. Então, o egoísta ético preza por sua segurança, por suas responsabilidades, pela solução de suas necessidades fundamentais, mas isso não o excluí de ser egoísta (CONSTANTINO, 2007).

b) Interesses

Trata-se de um conjunto de variáveis que orienta o processo de escolha dos atores sociais, e não devem ser estudados separadamente (MATTIAZZI, 1977). Interesse também é um processo comportamental, dotado de aptidões hereditárias, fatores da personalidade, cultura e experiências que o indivíduo carrega, que influenciam no desenvolvimento dos interesses, e determinando a busca de atividades específicas (MATTIAZZI, 1977).

Há diversas maneiras de representar o interesse. Pode ser em forma de padrão de gostos, asco e até mesmo indiferença a respeito de atividade e ocupações de outro indivíduo (LENT et al., 1994). Para Holland et al. (1994), os interesses são como preferências. As pessoas podem preferir certas atividades ao invés de outras em razão das influências culturais, pessoais e históricas. Desta maneira, o indivíduo sente-se melhor em companhia de pessoas com interesses e visões de mundo semelhantes, produzindo coletivamente ambientes que refletem as orientações dos que o compõem (HOLLAND et al., 1994).

Savickas (1999) traz a concepção de interesse como uma tendência para satisfazer necessidades e valores pessoais, a qual caracteriza-se por imediata resposta aos estímulos do ambiente. Neste ambiente encontram-se os objetivos, as atividades, as pessoas e as experiências. O autor considera interesse um processo cognitivo, em que as emoções se expandem, promovem interações do sujeito com o ambiente e integram o indivíduo em seu comportamento.

Na mesma linha de pensamento, Claparède (1905) explica o interesse como uma necessidade da pessoa exercer a relação indivíduo-objeto numa perspectiva de equilíbrio da vida, pois trata-se de um princípio fundamental da atividade mental pautada no comportamento. O comportamento tem a função de manter ou restabelecer a integridade da vida e a perda deste equilíbrio é o conceito biológico de necessidade, cujo equivalente psicológico é interesse. O termo interesse exprime a relação de conveniência recíproca entre sujeito e objeto, assim descrita por Claparède (1950):7

Le perpétuel réajustement d'un équilibre perpétuellement rompu. Toute réaction, tout comportement a pour fonction le maintien, la préservation ou la restauration de l'intégrité de l'organisme. La rupture d'équilibre d'un organisme est ce que nous appelons un besoin.

Sendo assim, pode-se afirmar que interesse é um processo cognitivo capaz de gerar emoções que interagem no sujeito-ambiente, ações para satisfazer as necessidades humanas e preservar os valores individuais e/ou coletivos e ao mesmo tempo promover o desenvolvimento pessoal e consolidar a identidade do ator social.

c) Intenções

As intenções foram objeto de estudos sobre voluntariado no Brasil de Carrion (2000) e Cavalcante et al. (2015). De acordo com Carrion (2000), os voluntários têm intenções diferentes para o exercício do voluntariado, como mostra o Quadro 5, podendo variar entre militante, idealista e falso idealista.

7

Édouard Claparède defendia uma abordagem funcionalista da psicologia, afirmando o ser humano é, acima de tudo, um organismo que “funciona”. Com base nisso, o pensamento é tido como uma atividade biológica a serviço do organismo humano, que é acionado diante de situações com as quais não se pode lidar por meio de comportamento reflexo. O referido autor formulou a lei da necessidade e do interesse, ou princípio funcional, que o tornou conhecido. Segundo esta lei, toda atividade desenvolvida pela criança é sempre suscitada por uma necessidade a ser satisfeita e pela qual ela está disposta a mobilizar energias.

Quadro 5 – Três intenções para exercer o voluntariado.

Militante Engajado na luta e defesa de seus interesses diretos, como a legalização de áreas

ocupadas por invasões, o acesso ao saneamento urbano e escolas para os filhos

Idealista Comove-se com os problemas sociais e milita por simpatia a uma causa que o

sensibiliza

Falso Idealista Em sua luta visa a preservação de privilégios, ainda que não raro elementos

dessas três modalidades se complementem Fonte: adaptado de Carrion (2000).

O constructo intenção é apresentado por Ajzen (1991) na teoria do comportamento planejado (TCP), cuja evolução teórica encontra-se na teoria da ação racionalizada (TAR), desenvolvida pelo mesmo autor em 2002. Por intenção entende-se um antecedente imediato do comportamento humano, o qual é determinado por dois fatores comportamentais, a crença de controle e a força percebida.

Tanto a TCP quanto a TAR consideram a intenção o fator mais importante e determinante no comportamento humano, pois entendem-na resultado de influências combinadas pelas atitudes, normas subjetivas e controle comportamental percebido (AJZEN, 1991; 2002; GODIN, 1994). A atitude é o processo inicial que determina a intenção de comportamento; consiste em avaliar a intenção e praticar a ação considerada/julgada adequada. Neste processo, a norma subjetiva é influenciada por pressões sociais percebidas pelo sujeito na forma de crenças normativas. O sujeito utiliza ela para adotar ou não um comportamento específico, levando em conta os motivos julgados para tomar a atitude. E o controle comportamental percebido é a crença individual sobre o nível de esforço requerido pela intenção para tomar determinada atitude, podendo variar entre fácil e difícil em determinado comportamento.

Com base na descrição subjetiva de cada fator comportamental, nesse pensamento, infere-se que as intenções são um conjunto de variáveis do comportamento humano demandadas pelo ambiente e experiências vividas pelos atores sociais, ou seja, são relativas ao contexto do qual o ator social pertence. Desta forma, todo comportamento humano é planejado a partir das intenções do indivíduo. Tais intenções podem ser produzidas por motivos específicos e formam uma categoria analítica do comportamento humano.

Em síntese, as três categorias analíticas do comportamento dos voluntários (egoísmo, interesses e intenções) atuam no direcionamento das ações de voluntariado num processo dinâmico e interativo a outras questões relativas ao comportamento humano, que contemplam os fatores sociais, psíquicos e emocionais num nível macro de análise. E, como orientadores do comportamento, no nível micro atuam os sentidos do trabalho atribuídos por cada voluntário e o altruísmo egoísta descrito por Hobbes (2012) pela caridade e piedade.

Com base no exposto, apresenta-se a seguir o esquema analítico do comportamento dos voluntários, os quais não podem ser estudados apenas por uma teoria ou perspectiva teórica, pois é dinâmico e não normativo. Tais fatores interagem entre si, são complementares e criam uma rede de motivos para o exercício do voluntariado. A Figura 4 explicita os três principais fatores do comportamento do ator social, que têm interface com os fatores comportamentais egoísmo, intenções e interesses, formando um ciclo infinito e retroalimentar num nível inferior, mas não menos importante. De acordo com o giro destas esferas, representadas pela cor cinza na referida figura, muda a prevalência de uma necessidade humana, de um sentido atribuído ao trabalho e de uma ação (caridade ou piedade) egoísta. No centro desta dinâmica encontra-se o ator social.

Figura 4 – A interação dos fatores do comportamento do ator social.

Os fatores sociais, quando se encontram com os fatores psíquicos geram intenções do voluntário, assim como quando os fatores psíquicos se encontram com os fatores emocionais atendem as necessidades humanas básicas, as quais se alternam todo o tempo, cada vez que uma é gratificada (SAMPAIO, 2009). Os fatores emocionais, no entanto, revelam altruísmo egoísta pela prática da piedade e da caridade. O comportamento altruísta egoísta depende do sentido dado por cada um ao “trabalho”, ligando-se entre si pelas necessidades humanas básicas, em especial a de autorrealização. Por conseguinte, o sentido atribuído pelo voluntário ao trabalho gera motivação, a qual só ocorre quando se tem consciência dos desejos e busca- se gratificá-los. O sentido atribuído ao trabalho e os fatores sociais, portanto, são permeados pelos interesses, os quais configuram-se como um conjunto de variáveis que orientam o processo de escolha da organização onde o ator social realiza o voluntariado.

Em síntese, a Sociologia Pragmática é o referencial teórico que relaciona o ator social com ele mesmo em um espaço na sociedade e/ou em uma OSCs na qual ele livremente realiza suas escolhas, encontra-se com seus desejos interiores, estabelece um tipo de relação social que guia a sua conduta e ao mesmo tempo caracteriza a ação social de forma contextualizada. Os fatores comportamentais que guiam a ação no voluntariado são investigados a partir do egoísmo, dos interesses e das intenções de cada ator social em organizações da sociedade civil descritas metodologicamente no Capítulo 3.