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Capítulo II – Privacidade e Interoperabilidade

2.1 Privacidade

2.1.1 O conceito de privacidade

A privacidade só se tornou uma questão social importante depois de 1960, com a atenção política que emergiu face a uma enorme expansão de ameaças (Clarke, 2009). Apesar do debate bastante intenso desde o final da década de 60, ainda não existe uma definição universalmente aceite de privacidade (Introna, 1997; Wuyts et al., 2009). Constitui atualmente um conceito abrangente, que engloba (entre outras coisas) a liberdade de pensamento, o controlo sobre o corpo, o controlo sobre informações pessoais, a liberdade de vigilância, a proteção da reputação de alguém, e proteção contra buscas e interrogatórios (Solove, 2008). Tem sido descrita como algo que pode ser “invadida”, “violada”, “quebrada”, “perdida”, “diminuída”, e assim por diante (Tavani, 2007). As ideias fundamentais da privacidade são que ela envolve pessoas e informações (Wuyts et al., 2009). Para muitos académicos constitui um valor e um direito fundamental, ligada a ideias de autonomia, dignidade pessoal e

independência. É muitas vezes vista como condição necessária para separar aquilo que é pessoal do que é público (Waldo, Lin, & Millett, 2007).

Interpretada de forma mais ampla, a privacidade tem a ver com a integridade do indivíduo, e abrange todos os aspetos das suas necessidades sociais (Clarke, 2006). O objeto da privacidade pode ser uma pessoa, um grupo de pessoas, ou uma organização formal através da qual pessoas e grupos cooperam. Por exemplo, no contexto específico da colaboração interempresarial, podemos distinguir diferentes níveis de privacidade, como a privacidade das pessoas, da empresa, da colaboração e de todo o ecossistema de serviços (Moen, Ruohomaa, Viljanen, & Kutvonen, 2010). Não surpreendentemente, a privacidade como conceito e como direito sofre mudanças constantes, mudanças a que temos que nos adaptar continuamente. Devemos preservar os ideais do passado e adaptarmo-nos a novos contextos nunca contemplados pelos autores das leis de privacidade (Cavoukian, 2009).

Atendendo à complexidade na definição de privacidade, bem como às questões ou dimensões envolvidas, autores como Introna (1997) e Clarke (2006) sugerem a sua definição com base em quatro categorias distintas, as quais não se excluem mutuamente, nomeadamente: a privacidade da pessoa, a privacidade do comportamento e da esfera pessoal, a privacidade nas comunicações pessoais, e a privacidade da informação pessoal.

A privacidade da pessoa, por vezes referida como “privacidade corporal”, diz respeito à integridade do corpo do indivíduo (Clarke, 2006). São os casos da vacinação obrigatória, transfusão de sangue sem o consentimento prévio, assim como a recolha de dados biométricos (ICO, 2009).

A privacidade do comportamento e da esfera pessoal relaciona-se com o direito à não observação, utilização e invasão da atividade de um indivíduo ou do seu “espaço privado”, relevante tanto em “espaços privados” como em “locais públicos” (Clarke, 2006; Introna, 1997). Relaciona-se com questões sensíveis, tais como as preferências e hábitos sexuais, atividades políticas e práticas religiosas (Clarke, 2006). Para Johnson (1989), a verdadeira questão da privacidade reside no julgamento da pessoa, por outros, ou seja, dos aspetos da vida pessoal culturalmente reconhecidos como imunes ao julgamento de outros. É o conhecimento sobre a pessoa através do qual outros a julgam de um modo particular, talvez com base em ideias e normas preconcebidas, que

faz com que exista o desejo individual de espaço pessoal e privado de imunidade (Introna & Pouloudi, 1999).

A privacidade das comunicações pessoais, relacionada com a liberdade de comunicação, através de vários meios, sem que estas sejam intercetadas por outras pessoas ou organizações (Clarke, 2006). São os casos da monitorização de caixas de correio eletrónico, o controlo de determinados tipos de tráfego no local de trabalho, a interceção telefónica, entre outras (ICO, 2009).

A privacidade de dados pessoais, referida muitas vezes como a “privacidade dos dados” e “privacidade das informações”. Mesmo quando os seus dados são recolhidos por uma outra parte, o indivíduo deve ser capaz de exercer um significativo controlo sobre os seus dados e sobre a sua utilização (Clarke, 2006). A ideia de controlo sobre a distribuição de dados pessoais é determinante em situações em que é importante determinar se o direito à privacidade do indivíduo foi ou não violado (Introna, 1997).

Tavani (2008), com base na evolução do significado de privacidade, inicialmente entendida em termos de liberdade de intrusão (física), até à atualidade, em que a privacidade surge cada vez mais associada à preocupação constante sobre como proteger dados pessoais, distingue quatro tipos de privacidade: (1) privacidade como a não intrusão no espaço físico pessoal: privacidade física/acessibilidade; (2) privacidade como a não interferência nas escolhas individuais: privacidade de

decisão; (3) privacidade como a não invasão/interferência no pensamento e

identidade pessoal: privacidade psicológica/mental; e (4) privacidade como ter controlo sobre/limitar o acesso à informação pessoal: privacidade informacional3.

Do ponto de vista da teoria ética, a privacidade é um valor curioso, afirma Moor (1997). Por um lado, parece ser algo de grande importância e a sua defesa é vital, e, por outro lado, a privacidade parece ser um assunto de preferência individual, relativa culturalmente, e no geral difícil de justificar. Tavani (2007) questiona mesmo, o que é, exatamente, a privacidade? Segundo este autor, ao ser de difícil definição, a privacidade é muitas vezes descrita como, ou confundida com noções como liberdade, autonomia, sigilo e solidão.

3 A preocupação incide nos problemas de privacidade que surgem da quantidade de dados pessoais

recolhidos e armazenados, da velocidade à qual os dados são transferidos e partilhados, e do período que dura a retenção destes dados.

Face à dificuldade de uma definição simples e global de privacidade, Introna (1997) identificou certos aspetos da privacidade, importantes à sua compreensão: (i) a privacidade é um conceito relacional, emerge numa comunidade quando as pessoas interagem; (ii) a privacidade visa o domínio pessoal; o que é considerado pessoal é, em certa medida, definido culturalmente. No geral pode-se afirmar que os aspetos pessoais ou privados são os aspetos que não afetam, ou tendem a não afetar, significativamente os interesses de outros; (iii) reivindicar privacidade significa reivindicar o direito de limitar ou controlar o acesso ao domínio pessoal ou privado da pessoa; (iv) o controlo da distribuição de imagens textuais ou informação verbal sobre uma pessoa constitui uma forma eficaz de controlar o acesso à sua esfera pessoal; (v) reivindicar privacidade significa reivindicar o direito ao domínio (pessoal) de imunidade contra o julgamento de outros; (vi) a privacidade é um conceito relativo. Uma privacidade total pode ser tão indesejável como uma total transparência. É uma questão de adequação à situação em causa. É, infelizmente ou felizmente, uma questão de julgamento (Moor, 1997).