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O currículo e a organização pedagógica: interdisciplinaridade e

No documento 2016ConsueloPiaiaTese (páginas 160-165)

2 OUTROS CAMINHOS, OUTRA ESCOLA

3.3 O currículo e a organização pedagógica: interdisciplinaridade e

A uniformidade e a estabilidade são marcas dos modos da escola organizar-se, mas, juntamente com elas, sobressai outro aspecto: a crença na impossibilidade de mudança desse modo de gerir e organizar a instituição escolar, portanto, a crença na impossibilidade de construção de outra escola. Sobre essa crença, Canário afirma que os

[...] dois últimos séculos permitem pôr em evidência, por um lado, o modo uniforme e estável das modalidades organizacionais do trabalho escolar e, por outro, verificar como o núcleo central dessa organização (a tecnologia da classe) tende a instituir-se como algo que não é concebível mudar (CANÁRIO, 2005, p. 76-77).

Partir da realidade como referência para organizar o currículo demanda a transformação da escola a partir de um processo de teorização, questionamento e desnaturalização não só currículo, mas na sua organização. Sendo que a experiência é o elemento organizador do trabalho pedagógico faz-se necessária uma nova forma de olhar as complexidades que fazem parte do entorno escolar.

Santos, ao escrever sobre a sociologia das ausências e das emergências, defende que, para emergir novas racionalidades e modos de vida, é preciso um processo de tradução. A ideia da tradução permitiria criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis, sem pôr em risco as suas identidade e autonomia, ou seja, sem reduzi-las a identidades homogêneas.

O objetivo do trabalho de tradução é estimular a vontade de criarem em conjunto saberes e práticas suficientemente fortes para fornecer alternativas credíveis à globalização neoliberal, a qual não é mais do que um novo passo do capitalismo global no sentido de subordinar totalmente a riqueza inesgotável do mundo à lógica mercantil. [...] A possibilidade de um futuro melhor não está, assim, num futuro distante, mas na reinvenção do presente, [...] tornado coerente pelo trabalho de tradução (SANTOS, 2001, p. 133).

Cabe, então, promover articulações de práticas e saberes com foco no que nos conectanão no que nos afasta. Faz-se indispensável um esforço de tradução, que favoreça inteligibilidade recíproca entre os diferentes grupos, experiências e saberes envolvidos. Como estabelecer um diálogo que permita a tradução de saberes e de práticas? Como promover o debate e o diálogo entre distintas visões de mundo e de direitos humanos? Como ampliar o diálogo intercultural? Esses são desafios da escola diante de cenários dinâmicos, controversos e conflituosos.

A diversidade de formas de vida, etnias, culturas e identidades existente nas experiências e nos processos sociais precisa de novas formas de olhá-los e uma estrutura flexível dos tempos e dos espaços como suporte técnico-pedagógico que permita a dialética entre a escola e as sociedades complexas. É preciso questionar qual a concepção de conhecimento e de método de produzir, organizar e socializar o conhecimento é mais apropriada para a comunidade escolar. O diálogo e a coletividade são pontos nodais para uma proposta de educação popular efetivar-se. Uma abertura para o diálogo que envolve, entre outros elementos, reconhecer a relativização das posturas em relação ao conhecimento, às opções pedagógicas e à própria estrutura curricular. Se o diálogo é premissa para o trabalho de tradução, a interdisciplinaridade passa a ser elemento fundamental para a articulação de um currículo que almeje estabelecer-se como lugar de tradução.

As práticas inter ou transdisciplinares são imprescindíveis para que o trabalho pedagógico consiga trabalhar com as questões da realidade, da vida, que não têm como ser compreendidas pelo enfoque fragmentado de cada disciplina. Trata-se, nessa visão, de erigir uma forma de organização do currículo que desloca a centralidade das disciplinas e conteúdos, não para que a escola deixe de ensinar conteúdos, mas para trabalhá-los para que os estudantes apropriem-se de conhecimentos e de métodos de produção de conhecimento ou de análise da realidade imprescindíveis aos desafios de compreensão e ação sobre as questões da vida (CALDART, 2011, p. 146-148).

A organização do conhecimento por área é uma opção de organização pedagógica que exige a flexibilização dos tempos e dos espaços educativos e facilita os processos inter e transdisciplinares ajudando a enfrentara complexidade dos fenômenos, pois oferece novas formas de cercar os objetos de estudo na busca pela superação da fragmentação do saber. Neste sentido,

É importante ressaltar que o currículo por área, ou qualquer outra forma de implantar processos interdisciplinares na escola, está organicamente vinculado a uma mudança no fazer/ pensar dos educadores, que devem passar de uma subjetividade, do trabalho isolado e individual para o trabalho coletivo. Essa passagem é difícil e conflituosa, pois pressupõe a exposição dos não saberes dos educadores e mexe com espaços de poder estabelecidos, o que ocasiona, muitas vezes, um processo de negação, de desqualificação, de recusa ao novo que se apresenta (CALDART, 2011, p. 53).

A organização curricular por área do conhecimento sugere a composição de uma forma integrada de projetar o processo educativo, pois exige espaços e tempos para um pensar coletivo dentro da instituição educativa. Da mesma forma, a organização do conhecimento por projetos de iniciação científica e os Tempos Educativos138exige a eleição de conhecimentos, a

preparação e a efetivação de atividades interdisciplinares e, portanto, a avaliação do trabalho desenvolvido deve basear-se no diálogo.

Neste sentido, os saberes escolares das instituições analisadas estão coerentes com a proposta e o projeto social das escolas que são a opção pelos oprimidos e a busca de relações sociais humanizadoras. Essa relação dá-se em diferentes graus e de modos diversos, mas se materializa na articulação entre saberes populares e científicos, na postura de problematização do conhecimento, na opção de enfrentamento de situações de exploração, na alienação e na discriminação e na carga horária disponível para as áreas humanas, na importância dada às apresentações artísticas, às leituras e às discussões.

A organização pedagógica e administrativa dessas instituições está em permanente construção, portanto, configura-se de forma diferente ao longo dos anos. Essa opção pela construção permanente é perceptível na reformulação constante do Plano Político Pedagógico, nas mudanças nos aspectos teórico-metodológicos das propostas pedagógicas e nos tempos /espaços de aprendizagem. Em relação a esse aspecto, a flexibilidade da organização permite que o processo adapte-se às necessidades do currículo e não o contrário. A flexibilidade dos



138 Tempo Comunidade, Tempo escola, Tempo Formatura, Tempo Notícia, entre outros Tempos educativos

tempos, dos espaços e até mesmo a liberdade de organização/seleção de conhecimentos139

contempla parte da complexidade do mundo contemporâneo, as suas transformações, mas também as permanências do mundo contemporâneo: relações sociais de competição, opressão e dominação. Compreender esses processos e atuar como sujeito exige uma postura crítica e aberta ao questionamento e à dúvida. Nessa perspectiva, a estrutura educacional precisa ser suporte para a proposta da instituição educacional, não o contrário.

As políticas públicas educacionais para serem suporte de pedagogias alternativas precisam ser formuladas a partir de uma concepção aberta e flexível de educação, incentivando a autonomia pedagógica diante dos diferentes contextos sociais e culturais em que as escolas estão inseridas. Apesar de termos uma legislação que é flexível, de modo especial, a LDB 9394/96, nem sempre as mantenedoras em nível estadual e municipal estão dispostas a incentivar grandes mudanças pedagógicas. Uma política pública pelo viés da flexibilidade privilegiaria os processos dialógicos, pedagógicos e históricos que a escola e a sua comunidade percorreram dando condições para que esse espaço possa ser ressignificado e a autonomia escolar posta em prática.

Uma proposta pedagógica dessa natureza implica um conjunto de desafios: a formação qualificada do corpo docente; a apropriação do conhecimento pelos alunos; uma atividade sistemática de reflexão crítica; uma predisposição mobilizadora, no sentido dado por Charlot (1979) e a capacidade de autoavaliação permanente. Em síntese, as possibilidades para enfrentar os desafios postos pelas sociedades complexas passam, em parte, por uma proposta pedagógica crítico-dialética.

3.4 O protagonismo das humanidades

O teatro, a mística, a poesia, a música, a dança, a literatura, assim como a filosofia, a história, a sociologia e a antropologia, desempenham um papel indiscutível na edificação de uma proposta humanizadora, principalmente por fomentar a capacidade de colocar-se no lugar do outro e despertar a sensibilidade. Conforme as teorias formuladas por Dubet (1994) e Bondía (2002), as experiências são estimuladas nos contextos sociais, mas só se efetivam no interior dos sujeitos. Esses aspectos ficam perceptíveis na análise realizada nas instituições pesquisadas. 

139 A flexibilidade dos tempos, espaços e a forma como selecionam-se e trabalham os conhecimentos é uma das

condições para a melhoria do processo educativo. Concorrem para a melhora desses processos outros aspectos que não vamos discutir neste momento.

Nussbaum acredita que a escola precisa desenvolver uma educação das emoções, que, a partir do sentimento de compaixão em sua acepção etimológica de “sentir com” o outro, leve-nos a aprimorar nossas relações interpessoais para a construção de uma sociedade solidária, compreensiva e pluralista, ou seja, que promova a imaginação narrativa, apreendida como

[...] a capacidade de pensar o que seria no lugar de outra pessoa, para interpretar de forma inteligente com essa pessoa. O cultivo da compreensão constitui um elemento em melhores concepções modernas de educação para a democracia, tanto em nações ocidentais e outros. Grande parte deste processo deve ocorrer dentro da família, mas também importante é o papel das escolas e até mesmo instituições de ensino superior e universitário. Para desempenhar o seu papel, a este respeito, as instituições devem atribuir um papel de liderança para as artes e humanidades no currículo, cultivando um tipo de treinamento participativo para ativar e melhorar a capacidade de ver o mundo através dos olhos de outro ser humano (NUSSBAUM, 2010, p. 131-132, tradução nossa).

As humanidades sensibilizam, permitem refletir, questionar, ouvir e respeitar. Esses são pressupostos básicos para a construção da democracia. Para que uma escola tenha o seu trabalho pedagógico alicerçado em uma pedagogia social, que tem como suporte pedagógico a experiência, é preciso que ela esteja centrada, voltada para o desenvolvimento das dimensões éticas, estéticas e políticas no ser humano. Se a escola propõe-se a educar para a cidadania, Nussbaum questiona: o que deve ela fazer para gerar cidadãos e uma sociedade democrática? Segundo a autora,

A escola pode desenvolver a capacidade do aluno para ver o mundo a partir da perspectiva do Outro, especialmente aqueles que a sociedade muitas vezes representado como "objetos" ou seres inferiores. A escola pode incultar atitudes em relação à fraqueza e impotência percebendo que ser fraco não é vergonhoso e que precisar dos outros não é indigno de um homem; Você também pode ensinar as crianças que ter necessidades ou considerar-se incompleto não são motivos para sentir vergonha, mas são ocasiões de cooperação e reciprocidade. A escola pode desenvolver a capacidade de sentir uma genuína preocupação com os outros, seja perto ou longe. A escola pode minar a tendência a distanciar-se das minorias em um ato de repugnância por os considerar "inferior" ou "contaminados”. A escola pode ensinar o conteúdo real e concreta sobre outras pessoas raciais, religiosas e sexuais ou com deficiência, a fim de combater os estereótipos e desgosto que normalmente acompanha grupos. A escola pode promover o senso de responsabilidade individual por tratar cada criança como um agente responsável por suas ações. A escola pode promover ativamente o pensamento crítico e a capacidade e a coragem de expressá- lo, mas divergências com os outros (NUSSBAUM, 2010, p. 73-74, tradução nossa).

Ainda, segundo Nussbaum,

As humanidades são fundamentais para conservar “a saúde da nossa sociedade”. Contudo, distraídos na busca pela riqueza, os países, as sociedades e os pais inclinam-

se cada vez “mais esperar que nossas escolas formem pessoas aptas para gerenciar renda no lugar de cidadãos reflexivos” (NUSSBAUM, 2010, p. 187, tradução nossa).

Em um mundo cada vez mais voltado ao capital e ao individualismo, a tendência dominante é a desvalorização das artes e das humanidades comenta Nussbaum,

[...] Porque eles servem para ganhar dinheiro. Só servem para algo muito mais valioso: para formar um mundo vale a pena viver, com pessoas capazes de ver os outros seres humanos como entidades em si mesmos, dignos de respeito e empatia, que têm seus próprios pensamentos e sentimentos, e também com as nações capazes de superar o medo e desconfiança para um debate marcado pela razão e compaixão (NUSSBAUM, 2010, p. 189, tradução nossa).

Por esse ponto de vista, uma escola que se propõe a educar para a construção de um mundo que valha? a pena viver precisa ampliar o protagonismo das áreas de humanidades, quer seja na explicitação da dimensão artística (teatro, mística, literatura), quer seja na explicitação dos saberes das áreas humanas no currículo formal. Ao estudar a história dos povos e a sua cultura, pode-se compreender as suas identidades. Essa atividade é um exercício de olhar a partir do lugar do outro e permite ao educando o germinar da solidariedade e a constituição de sua própria identidade com um olhar mais sensível e humano diante da diferença concebida como fator de inferioridade. Ao escrever sobre a escola do campo, Caldart (2011, p. 37) acredita que uma forma de “trazer” a comunidade para o interior da escola e valorizar a identidade camponesa seria a instituição promover, nesses espaços, grupos culturais permanentes de dança, teatro, música, entre outros, assim como a realização de eventos culturais como feiras científicas, mostras culturais e festas regionais, além da abertura dos espaços da escola para reuniões e atividades da comunidade e dos movimentos sociais. Essa iniciativa precisa ser pensada por outras escolas, não só as escolas do campo.

No documento 2016ConsueloPiaiaTese (páginas 160-165)