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5. A APROPRIAÇÃO PELO LIVRO DIDÁTICO DA CONCEPÇÃO DE

5.2. A representação simbólica na pré-história da ontogênese

5.2.3. O desenho

junho, pessoal’, a criança deve desenhar ou escrever, em dupla, os conhecimentos prévios sobre festa junina. No projeto ‘Histórias em quadrinhos, gibis e outros “bichos”, a criança deve desenhar, em balões de diálogo, o que deseja aprender sobre o tema do projeto. A criança também é solicitada a registrar, do seu modo, onde podemos encontrar histórias em quadrinhos.

Nas atividades propostas pelo livro, a criança registra com desenhos seus conhecimentos prévios sobre os temas dos projetos. Expressa idéias apenas na medida em que estas têm relação com o que gostaria de aprender ou já aprendeu sobre o tema do projeto. Quase não há propostas nas quais a criança usa o desenho com as mesmas funções culturais da escrita, ou seja, como meio de expressão, memorização, prazer estético, comunicação, etc. Em uma perspectiva histórico-cultural, o desenho poderia ser mais explorado como meio de expressão. Vigotski (2000) diz que quando a criança utiliza o desenho como linguagem, ou seja, representa com ele a própria fala, já tem capacidade de compreender o sistema de escrita. Como é possível registrar a própria fala usando desenho? Em atividades nas quais a criança queira e possa falar e comunicar idéias usando desenhos. Além das já citadas atividades nas quais a criança usa o desenho para memorizar, também pode desenhar para falar de si: o lugar e as pessoas com quem mora, seus sonhos, seus medos, do que gosta de brincar, o que gosta de assistir na televisão, fatos importantes que aconteceram na sua vida, etc. Também pode desenhar os conceitos científicos aprendidos na escola: os animais vertebrados e invertebrados, os dinossauros, a representação cartográfica de algum lugar, etc. Pode-se também explorar a função do desenho nas formas culturais de escrita: os logotipos, os sinais de trânsito, as legendas de mapas. E, por fim, a função estética do desenho e da pintura.

Ao fazer atividades de expressão através do desenho, a criança poderá entender que o desenho é uma forma de comunicar idéias. Em uma reflexão mais aprofundada, poderá entender, ainda, que para vários homens poderem se comunicar uns com os outros através da escrita, é necessário um sistema de signos estáveis que permita comunicar idéias, fatos e eventos. Se cada um inventasse sua própria escrita, a compreensão seria muito difícil.

O livro traz pinturas de artistas famosos e solicita que as crianças conversem sobre a imagem, mas pouco explora o significado da obra. Sem dizer quem é Picasso, e qual significação está contida na sua obra, o livro traz a pintura “Auto-retrato com palheta”. Depois solicita que a criança se olhe no espelho e faça seu auto-retrato. Esta

atividade está inserida no projeto ‘Todo mundo tem um nome’. Seu objetivo provavelmente é trabalhar a identidade do aluno. No mesmo projeto, há também a pintura de Paul Klee e uma proposta de atividade a partir dela. Há um pequeno texto informando que Paul Klee foi um pintor suíço que viveu entre 1879 e 1940 e gostava de incluir letras do alfabeto e numerais na sua tela. A criança é solicitada a registrar as letras encontradas na foto da tela do pintor e, depois, a pintar sua própria tela, incluindo as vogais do próprio nome ou de outra pessoa. A clara intenção da atividade é trabalhar as vogais.

O livro também usa pinturas para inserir temas trabalhados nos projetos. A primeira atividade do projeto “Plantas e bichos” é discutir qual lugar é representado pelo quadro “Jardim em flor”, de Claude Monet. O livro não traz informações sobre o pintor, e o objetivo da sua proposta provavelmente é fazer uma exploração inicial do tema ‘plantas’. No projeto “Histórias de vida”, o livro traz a história de vida do pintor espanhol Joan Miró. No texto para os professores, o livro explicita que o objetivo deste projeto é trabalhar duas modalidades textuais: biografia e autobiografia. A partir da leitura de algumas biografias (Miró, Villa-lobos e Daniel Munduruku) a criança é encorajada a escrever sua autobiografia. Após, o livro solicita que a criança reproduza a obra de Miró intitulada ‘Bailarina’. O livro pede que a criança observe a obra e crie um quadro a partir dela. Sugere que a criança planeje como fará a pintura e, depois, organize com a turma uma exposição para divulgar todos os trabalhos.

As atividades de análise de obras não foram propostas em função de levar a criança a entender que uma pintura pode expressar idéias e sentimentos. As informações biográficas dos pintores sempre aparecem em função do projeto proposto, não para que a criança interprete melhor a obra. Assim, traz informações sobre Paul Klee para trabalhar as vogais e, sobre Miró, para mostrar a estrutura de uma biografia.

Em uma perspectiva histórico-cultural, as obras de arte poderiam ser apresentadas às crianças acompanhadas de alguma informação sobre o pintor e sobre o lugar e época em que viveu. A partir destas informações, as crianças poderiam dizer o que pensam que o autor tentou expressar com a obra. Como crianças do primeiro ano do ensino fundamental ainda não dispõem de conhecimentos históricos e geográficos suficientes para compreender a influência do contexto sobre uma obra, poderiam ser analisadas obras de algum artista local, conhecido da turma ou convidado a ser entrevistado por ela. O modo como o livro apresenta as obras de arte e as coloca em função de projetos de ensino acaba por descontextualizá-las, esvaziá-las de significado.

Vigotski (2000) diz que para a criança atribuir significado aos seus próprios desenhos, precisa primeiro significar o desenho do outro. Para a criança entender que o desenho pode ser uma espécie de linguagem, é preciso que entenda qual mensagem é transmitida pelo desenho ou pintura do outro.

Nas demais atividades, o livro solicita que a criança desenhe para ilustrar textos ou palavras. Nesta categoria, incluem-se as seguintes atividades: ilustrar e escrever o nome da profissão de alguém da família; ilustrar uma música do folclore; ilustrar uma poesia sobre a cobra; ilustrar uma estrofe do poema ‘Quantos bichos no Brasil’, de Pedro Bandeira; e ilustrar a floresta e a casa da bruxa do conto ‘João e Maria’. Não se pode considerar que nestas atividades, nas quais o desenho acompanha o texto, a criança usa o desenho como meio de expressão e linguagem.

A partir da análise do modo como o livro apresenta atividades de desenho, foi possível extrair algumas considerações sobre a relação estabelecida entre desenho, linguagem e escrita. Em algumas atividades a criança foi encorajada a representar idéias bastante abstratas através do desenho, como é o caso da atividade no qual é solicitada a desenhar o que gostaria de aprender e o que é ler e escrever. Mas, na maioria das propostas, a relação estabelecida entre desenho e escrita não leva a criança a operar com a escrita com linguagem ou meio de representação. O livro, na maioria das atividades, traz o desenho como algo que simplesmente acompanha e ilustra a escrita formal. A função mnemônica da escrita não é desenvolvida pelo livro didático, a despeito da sua importância na teoria de Vigotski.