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5. A APROPRIAÇÃO PELO LIVRO DIDÁTICO DA CONCEPÇÃO DE

5.1. Os conceitos de ‘mediação’ e ‘escrita’ no texto de assessoria pedagógica do

A escrita é uma função psicológica superior que media a relação do homem com o mundo e consigo, sendo um sistema de signos e instrumentos. A escrita apresenta aspectos sensoriais diferentes da fala, pois representa uma linguagem desprovida de sons, além de ser, quase sempre, dirigida a um interlocutor ausente ou imaginário. Nos sistemas alfabéticos e silábicos, a oralidade constitui um meio de acesso à escrita. No sistema alfabético, a escrita reproduz os sons da fala para poder representar a linguagem. No entanto, quando se torna um simbolismo direto, as relações entre sons e sinais gráficos tornam-se secundárias, e a escrita passa a representar diretamente a linguagem. Nas culturas letradas, a escrita como simbolismo direto tornou-se uma necessidade. A relação de semelhança entre fala e escrita é que ambas são meios de interlocução e formam elos entre as pessoas.

A aprendizagem da escrita requer consciência e intenção, pois exige a compreensão das suas diferenças em relação às outras formas de linguagem, bem como habilidade para adaptar o registro escrito à intencionalidade do enunciado.

A categoria ‘escrita’ foi analisada no texto de assessoria pedagógica do livro didático, em interação com a outra categoria desta análise: a mediação. No texto do livro didático, as autoras, Procópio e Passos, citam Vigotski para mostrar sua concepção de escrita e mediação. O texto trata da mediação como importante fator para aprendizagem de língua portuguesa. A escrita é compreendida como sendo representação e mediação. Entretanto, as autoras apenas citam Vigotski na conceituação de mediação e escrita, não chegam a assumir que a proposta pedagógica do livro didático é histórico-cultural. A concepção de escrita expressa pelas autoras traz o conceito de mediação, mas não é uma concepção vigotskiana.

Compreender a escrita como um sistema de representação que mediatiza a ação do homem no mundo e que, portanto, é produzido nas diferentes práticas sociais ao longo da história é de fundamental importância para o (a) educador (a) que assume a função de ensinar – promover a aprendizagem desse objeto de conhecimento. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 09)

Vigotski só é citado quando as autoras concebem o conceito de linguagem.

Ao conceber a linguagem como “um sistema de signos histórico e social que possibilita ao homem significar o mundo e a realidade”

(Vigotski, 1989), o(a) educador(a) tem diante de si o desafio de

organizar diferentes e significativos encontros da criança com este universo: a língua (...) (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 05)

Embora as autoras citem Vigotski para conceituar linguagem, tratam das relações entre fala e escrita, dois parágrafos abaixo, usando termos da lingüística textual. Importante ressaltar que, embora citem termos da lingüística textual, as autoras não explicitam as categorias desta concepção de linguagem, conforme demonstra a citação.

(...) texto é manifestação lingüística do discurso, produto da atividade discursiva oral e escrita, constituindo uma teia de significados materializados no conjunto de relações entre os elementos da língua, os quais, ao se articularem, formam um todo coerente e coeso e configuram uma unidade significativa global, independentemente de sua extensão. Um texto se demarca pelo conjunto relacional de elementos da língua a partir da coesão e da coerência, o que se denomina textualidade. (PROCÓPIO &

PASSOS, 2006: 06).

O aluno e o professor são concebidos pelas autoras do livro a partir da psicologia histórico-cultural. O aluno é concebido como um indivíduo historicamente constituído e como um construtor de conhecimentos. Para explicar como se dá a dialética entre história individual e história social na apropriação do conhecimento, Procópio e Passos citam um trecho do livro A formação social da mente, de Vigotski, que fala da construção de significados pela criança através da interação com uma pessoa mediadora do conhecimento. O papel da criança neste processo, segundo o livro didático, é modificar o objeto de conhecimento e a si mesmo nas relações de ensino e aprendizagem. Por sua vez, o papel do professor é ser aquele que organiza as propostas pedagógicas e é co-autor e parceiro no desenvolvimento do trabalho pedagógico. As autoras citam ainda a categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’ para lembrar que o professor deve investigar as possibilidades de desenvolvimento da criança, para elaborar sua proposta pedagógica.

As autoras consideram que a zona de desenvolvimento próximo é o lugar privilegiado de mediação entre a criança e a língua. Através da mediação do professor, o aluno ascende a patamares mais elevados de conhecimento da língua portuguesa. Estes patamares o levam ao conhecimento do sistema de linguagem em sua norma culta.

Vale lembrar o conceito de zona de desenvolvimento proximal como espaço privilegiado de mediação entre a criança e a língua portuguesa, como objeto de conhecimento. Considerando a zona de desenvolvimento proximal como “a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução indiferente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes” (Vygotsky, 1984), a mediação do(a) professor(a) é de fundamental importância para a criança reconstruir suas teorias e reelaborar seus conceitos espontâneos, transformando-os em conceitos próprios do sistema de linguagem, considerada em sua norma culta. (PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 08)

Percebe-se que Procópio e Passos citam a categoria ‘zona de desenvolvimento próximo’ deslocada do contexto geral no qual ela se situa na obra de Vigotski. As autoras deixam de fora a importante tese de Vigotski, já citada em capítulo anterior, de que o trabalho na zona de desenvolvimento próximo visa a autonomia do aluno. Além disso, as autoras colocam apenas o professor como mediador da aprendizagem, de modo que acabam por desconsiderar que outros elementos podem ser mediadores. Para a psicologia histórico-cultural, o elemento mediador entre o sujeito e o desenvolvimento das funções superiores pode ser a própria pessoa, através do sistema de signos. Também um instrumento, ou a cultura, podem ser elementos mediadores. Entretanto, o livro didático cita somente o professor como mediador, deixando de fora outros fatores do processo de ensino e aprendizagem. O livro até faz alusão à importância de haver um ambiente alfabetizador para que ocorra a aprendizagem da leitura e escrita. Entretanto, considera que o professor é o único responsável por organizar este ambiente.

Interessante observar que Procópio e Passos utilizam ‘mediação’ que é um conceito da psicologia histórico-cultural, e o transformam em uma espécie de didática.

Vigotski (2000), ao demonstrar sua concepção de mediação, utiliza a imagem de um triângulo, no qual em uma ponta está o sujeito, na outra o objeto e, na terceira, um elemento que media o acesso do sujeito até o objeto.

Procópio e Passos também apresentam um triângulo para representar a mediação. Segue, abaixo, a reprodução do triângulo apresentado pelo livro:

Contexto socioistórico

(PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 06)

O livro assim explica o esquema do triângulo:

Portanto, é preciso que o(a) professor(a), ao adotar o livro, compreenda as três variáveis componentes da relação e perceba que ela se insere em um contexto que extrapola o escolar, na medida em que concebe o discurso produzido em condições socioistóricas, materializado sob a forma de textos, reconhecendo a escola como um espaço privilegiado de aprendizado desse objeto.

(PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 07)

O conceito de mediação expresso pelo livro didático pode ser interpretado de modo indistinto de transmissão de conhecimento.

O ensino transmissivo, proposto pelo livro no texto aos professores, entra em contradição com a sua própria linguagem. O processo de ensino proposto é centrado no professor, mas o livro se refere o tempo todo ao aluno, conforme já foi analisado no capítulo anterior. Se é o professor quem ensina, como pode ser o aluno quem conduz este processo?

Das concepções de mediação e zona de desenvolvimento próximo, é possível inferir que estas se relacionam mais com um ensino pautado na cooperação dos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, do que na mera transmissão de

relação dialética Aluno(a) aprendiz

Professor(a) mediador (a)

Língua portuguesa Contexto escolar

conhecimentos. Podemos aqui nos remeter à Beatón (2005), autor que explica os níveis de ajuda que podem ser prestados para trabalhar na zona de desenvolvimento próximo.

Para fazer os alunos realizarem coisas que sozinhos não conseguem, é preciso que o professor tenha intencionalidade pedagógica, mas, mais do que isso, que preste ajuda ao aluno, sempre visando sua autonomia. Embora a escola seja o lugar privilegiado para a aquisição de conhecimentos científicos, esta deve ocorrer em atividades nas quais os mediadores da aprendizagem sejam o professor, os demais alunos, o objeto de conhecimento e o próprio indivíduo. No caso do ensino da escrita, o gesto, o desenho, o jogo, a interação e a oralidade, entre outros, são importantes mediadores do processo de apropriação do sistema de signos-simbólicos da escrita, bem como da escrita como linguagem e função cultural complexa.

Sendo assim, como a mediação é uma categoria transversal a todos os fatores do desenvolvimento da escrita, sua concretização nos exercícios propostos pelo livro didático está de algum modo implícita aos fatores do desenvolvimento da escrita, a bem dizer: o gesto, o desenho, o jogo, o ensino das relações grafemas-fonemas, a leitura silenciosa, o ensino da escrita como algo necessário e a oralidade.

Para analisar os fatores do desenvolvimento da escrita, passemos aos seus momentos e suas respectivas categorias relacionadas.