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5. A APROPRIAÇÃO PELO LIVRO DIDÁTICO DA CONCEPÇÃO DE

5.2. A representação simbólica na pré-história da ontogênese

5.2.2. O jogo

A análise dos jogos propostos no livro teve três enfoques: os tipos de jogos, o modo como eles trabalham o simbolismo e a relação com o desenvolvimento da escrita.

Dentre os tipos de jogos apresentados no livro, apenas um foi do tipo dramatização. Os restantes foram jogos pedagógicos com regras. Embora mesmo os jogos com regras tenham atividade simbólica, apenas um jogo proporcionou o uso de coisas para representarem outras coisas. Em relação à escrita, todos os jogos demonstraram ter como finalidade pedagógica levar a criança a ler e escrever palavras, frases ou textos usando a escrita formal. Vamos aprofundar esta conclusão.

Dentre os tipos de jogos propostos no livro, nenhum é de faz-de-conta generalizado. Ou seja, Procópio e Passos não sugerem que as crianças imitem uma situação ou personagem. No entanto, se considerarmos que a criança brinca de faz-de-conta para realizar atividades próprias do mundo adulto, como propõe Leontiev (2003), podemos inferir que o jogo de faz-de-conta só pode mesmo emergir da experiência de vida da criança. A atividade representativa do jogo se desenvolverá na medida em que a criança conviver com outras crianças e pessoas, ou seja, através da inserção na cultura.

Claro que a escola também é lugar de brincar e representar, mas, para dispor deste espaço, ela não precisa do livro didático.

Procópio e Passos apresentam uma proposta de jogo de dramatização. No projeto sobre contos de fadas, há uma página do livro onde aparece a sugestão para que a criança use meias, botões e tintas para confeccionar fantoches e representar uma história de conto de fadas. Há um texto trazendo dicas de como confeccionar o boneco, ensaiar e apresentar de modo que todos entendam. O fantoche é um jogo de dramatização e, ao mesmo tempo, uma atividade com gestos, pois é preciso manipular os bonecos com as mãos, representando com gestos seus movimentos e expressões. O interessante da proposta é a sugestão para que a criança planeje a ação de representar.

Na perspectiva de Leontiev (s/d), planejar a própria ação em função de objetivos é o que caracteriza a atividade humana; na medida em que o homem planeja suas ações, desenvolve as funções psíquicas superiores. O objetivo colocado no livro para o

planejamento da ação de representar é o de dramatizar de modo que os espectadores entendam o teatro. Assim, esta atividade, além de permitir a aprendizagem da linguagem dramática, também trabalha a escrita como função cultural complexa.

O restante dos jogos apresentados no livro são de regras, ou pedagógicos. São jogos que levam a criança a ler e escrever nomes e listas de palavras, aparentando serem específicos para a fase inicial da escrita. Nos jogos que envolvem a escrita, são propostos no livro: a confecção de um jogo de memória com figuras e palavras, um bingo de letras, o amigo oculto, o alfabeto móvel para formar palavras e a pescaria de São João com brinde.

Para fazer as crianças lerem, há no livro a proposta do jogo ‘Boca de Forno’, que se desenvolve a partir da seguinte música:

O instrutor diz: A turma responde:

- Boca-de-forno? -Forno!

- Jacarandá? - Dá!

- Se não fizer? - Apanha!

- Seu rei mandou dizer que todos...

(o instrutor dá uma tarefa.)

(A turma executa a tarefa.)

(PROCÓPIO & PASSOS, 2006: 142)

A partir deste jogo, o livro propõe que os alunos copiem o texto do jogo em letra cursiva. A seguir, traz algumas observações sobre sinais de pontuação. Quanto à letra cursiva, é importante salientar que seu exercício no início do processo de alfabetização é desnecessário, se formos considerar que, para Vigotski, o traçado das letras é menos importante do que o ensino da escrita como função cultural complexa. O espaço urbano é repleto de materiais escritos, e a criança tem acesso à leitura de diversos tipos de letras. Ao sentir necessidade de ler e escrever, a criança, provavelmente, se esforçará para entender todos os tipos de letras, inclusive a cursiva. Mais interessante que forçar a aprendizagem da letra cursiva, exigindo que a criança exercite seu traçado em atividades repetitivas, é ensiná-la na medida das suas necessidades e curiosidades. Se as autoras do livro didático compreendessem a concepção histórico-cultural de alfabetização, certamente não proporiam exercícios de traçado da letra cursiva, visto que o mesmo deve se apropriado pela criança de modo natural. Vigotski (2000) faz

diversas críticas aos métodos de alfabetização que levam a criança a desenvolver um belo traçado, sem, contudo, apropriar-se da escrita como função cultural complexa.

O livro trabalha também a leitura de instruções, em um texto no qual ensina a criança a fazer pés de latas. Nesta atividade, o livro mostra a escrita como necessidade, tema do qual trataremos mais adiante. Seria interessante, entretanto, que propusesse alguma reflexão sobre textos de instrução. Ao invés disso, apenas propõe exercícios para a criança aprender a letra cursiva.

Vigotski (2000) leva a entender que o jogo é uma etapa do desenvolvimento da escrita. A criança que usa objetos para simbolizar outros e que brinca de faz-de-conta desenvolve a representação simbólica, função de suma importância para compreender o sistema arbitrário da escrita. Os jogos pedagógicos que envolvem escrita, como bingo e memória, também têm símbolos. Como diz Vigotski, todo jogo com regras simboliza dada situação, além de que a criança precisa ter imaginação para entender o motivo pelo qual precisa executar certas ações no jogo e excluir outras. No caso dos jogos de bingo, pescaria e memória, eles são ainda importantes para a criança realizar atividade de leitura e escrita, exercitando a escrita como simbolismo de segunda ordem, ou seja, trabalhando as relações grafemas-fonemas.

No entanto, os jogos de faz-de-conta também precisam estar presentes na atividade da criança em fase inicial da escrita. Diante disso, o que pode um livro didático? Ora, o livro didático pode propor jogos com regras e pedagógicos. Quando o livro traz as letras de um alfabeto móvel ou as cartelas de bingo, poupa o professor de um trabalho manual e proporciona momentos importantes de jogo na alfabetização.

Entretanto, certas atividades de faz-de-conta só podem ser proporcionadas pelo ambiente. Crianças precisam de materiais não estruturados (bola, caixas, sucatas e outros materiais que permitem criações lúdicas variadas) para usar coisas para representar outras coisas e imitar o mundo dos adultos. Um livro didático até pode, por exemplo, propor que a criança use uma caixa para fazer de conta que é um fogão. Mas para que a criança use uma caixa para representar um fogão, é preciso que o ambiente lhe proporcione a caixa, o espaço e o tempo necessários para esta brincadeira. O limite do livro didático é seu suporte, é o fato de o livro se constituir como um material impresso, não permitindo à criança a execução de determinadas ações, dentre as quais se inclui o brincar. Boa parte do que é necessário para brincar encontra-se na esfera das relações que se estabelecem na escola entre professor e alunos, dependendo mais do ambiente do que da proposta de um livro didático.

Já vimos que os tipos de jogos propostos são pedagógicos e com regras, e que todos têm como objetivo levar a criança a ler e escrever textos, frases e palavras usando a escrita formal. Resta saber como o livro trabalha a simbolização em seus jogos.

Leontiev (2003) diz que o símbolo, embora não seja inerente aos jogos, está de algum modo presente em todos eles, inclusive nos jogos com regras. Nesta perspectiva, os jogos propostos pelo livro didático desenvolvem o símbolo, ainda que não seja através do faz-de-conta. Entretanto, o livro não propõe atividades nas quais a criança usa coisas para representar outras coisas ou brinca de faz-de-conta. A maioria dos jogos propostos pelo livro tem o objetivo de levar a criança a escrever. Por este motivo, são jogos que trabalham principalmente a escrita como simbolismo de segunda ordem.

Os jogos que trabalham o simbolismo de segunda ordem são o bingo e o alfabeto móvel, neste a criança precisa pensar nos sons das letras para formar certas palavras. No bingo, a variação proposta pelo livro didático é de palavras. Cada criança escreve em sua cartela uma palavra referente à festa de São João. O professor deve sortear letras.

Cada criança cuja palavra tiver a letra sorteada pelo professor deve assinalá-la na sua cartela. Vence o jogo a criança que assinalar toda a cartela primeiro. Neste bingo, o professor pode trabalhar as relações biunívocas, arbitrárias e contextuais entre letras e sons. Assim por exemplo, ao sortear a letra ‘A’, pode refletir com os alunos porque seu som é de /ã/ na palavra ‘canjica’ e /a/ na palavra ‘pamonha’. No entanto, o livro não sugere ao professor que faça isso.

Os jogos que trabalham o simbolismo direto são: fantoche, pé de lata e ‘boca de Forno’. No fantoche, a criança precisa escrever uma peça de teatro, o que a ensina a organizar as idéias em um texto dramático. Neste jogo, também seria interessante que o professor pedisse para as crianças transformarem um texto narrativo em um drama, o que o livro não sugere. No pé de lata, a criança precisa ler um texto informativo para aprender a confeccionar o brinquedo, de modo que a escrita é mostrada como algo necessário para obter informações. No ‘boca de forno’, a criança precisa memorizar o texto para poder brincar, ou seja, a escrita é mostrada como algo necessário para servir de recurso à memória.

Além de jogos, o livro apresenta uma série de propostas de desenho. Vejamos, agora, de que modo estas trabalham a simbolização.