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CAPÍTULO IV: A CONSTRUÇÃO DO “LINHÃO DE GURI” E OS CONFLITOS

4.4 O CONFLITO E A NEGOCIAÇÃO

4.4.1.2 O diálogo e a cooperação

Segundo Carvalho126 (2004), quando se comentava no estado de Roraima que a Linha de Guri, quando implantada, resolveria os problemas crônicos de energia elétrica de Boa Vista, não se dimensionava a sua importância para as comunidades indígenas. Primeiro, porque não estava prevista nenhuma possibilidade de se levar energia elétrica aos índios, pois a Linha, caso passasse por dentro da Terra Indígena São Marcos, seria em altíssima tensão, sem condições de transformá-la durante o seu curso em energia para consumo popular. Segundo porque, em Roraima, não era prática considerar os índios e suas terras como parceiros em empreendimentos ou discutir com eles os impactos e medidas mitigadoras que o empreendimento, se implantado dentro da terra indígena, poderia trazer.

No entanto, para esse empreendimento, a Eletronorte, através de seu consultor e assessor indigenista, Porfírio de Carvalho, optou por utilizar, inicialmente, como metodologia de trabalho e solução para as divergências dos grupos sociais, o diálogo com as comunidades indígenas, informando-os com detalhes o que viria a ser o empreendimento e quais as consequências positivas e negativas se fosse implantado dentro da Terra Indígena São Marcos. No primeiro momento, as comunidades e associações indígenas reagiram com certa desconfiança.

Não foi com a FUNAI que nós negociamos. Foi com as comunidades indígenas e foi a primeira vez que isso aconteceu. Nunca se ouvia os índios – se ouvia FUNAI. Foi a primeira vez que se fez uma negociação direta com os índios. Havia sempre essa máxima

126 José Porfílio de Carvalho – Consultor Indigenista da Eletronorte responsável em mediar a negociação com as comunidades indígenas e propor ações mitigadoras referentes ao empreendimento.

de se ouvir a FUNAI nos empreendimentos realizados pelo governo. E ouvimos como – eu vejo da seguinte maneira o processo de consulta de qualquer pessoa – a pessoa tem o direito de dizer sim ou não, porque se for só para dizer sim não precisa consultar E quando nós convidamos as lideranças indígenas para reunião ela não tinha nem os costumes nem de se reunir. Todos elas reuniam separadas, pega um aqui outro ali, mas reunir todos não. Isso exigia uma logística própria, um mecanismo. Até tinha liderança que não conhecia o outro então, primeira coisa que nós fizemos para poder conversar com todos, era tentar reunir todos, escutar todos, então como?. Como fizemos isso? As aldeias eram distantes umas da outras – 100 km, 150, 200, então escolhemos um local que pudéssemos atraí-los. Então escolhemos a fazenda São Marcos. E a primeira coisa que nós fizemos foi reunir todos. Nós queríamos ouvir todos. Elas não tinham nem o costume de reunir todos. Reuniam separados e isso exigia uma logística própria. (José Porfílio Fontenele Carvalho, assessor e consultor indigenista da Eletronorte. Entrevista realizada em 14/06/2011).

Com essa postura, o consultor indigenista da Eletronorte buscou parcerias com as entidades governamentais e não governamentais, iniciando um fórum permanente de debates e consultas, através de várias reuniões informativas às comunidades indígenas e diversas entidades ligadas às causas indígenas. O conteúdo dessas reuniões, segundo Carvalho, era:

“Explicamos para eles o que nós queríamos. O que era uma linha de transmissão, e o que era entrar em uma terra indígena e como essa linha passaria. Foi nesse processo que daí em diante nós começamos a ouvir os questionamentos. Visitei todas as aldeias. Explicando o que era a construção de uma linha. Em ora nenhuma nós levamos algum objeto de troca. Eu sempre dizia a eles sem que eles me perguntassem. Se vocês me perguntarem se é bom passar uma linha de transmissão aqui na terra de vocês, a minha resposta é: não é bom. E porque era um truque de marquete? não, porque sempre eu tenho na minha cabeça de que a pessoa tem o direito de dizer não e um objeto estranho dentro da sua terra não é bom.” (José Porfírio Fontenele de Carvalho, consultor indigenista da Eletronorte. Entrevista realizada em 14/06/2011).

De acordo com Carvalho, esse processo foi muito interessante porque não só conseguiu-se mostrar o que era uma linha de transmissão para as comunidades indígenas, como também serviu para que eles se aproximassem mais e pudessem discutir algumas questões internas nessas reuniões. Essas reuniões eram constantes durante o processo e em locais diferentes. Isso tudo tinha um custo, que era bancado pela Eletronorte, tendo em vista o interesse que ela tinha na solução, ou seja, no resultado positivo decorrente desses diálogos. Além de explicar o significado de uma Linha de Transmissão, o indigenista ainda explicou que nenhum benefício eles teriam com a implantação dela: Expliquei que não ia trazer benefícios nenhum para eles. Não ia iluminar as casas deles, contrariando o que dizia o prefeito de Pacaraima.

A primeira reunião com as comunidades indígenas ocorreu em 29 de maio de 1997, onde foi distribuído material informativo sobre o empreendimento e as atividades de

topografia. Os principais pontos da reunião foram os seguintes127: apresentação da experiência da Eletronorte no trato com as comunidades indígenas e sua política de respeito para com essas comunidades; apresentação do projeto, finalidade e características técnicas gerais.

Na ocasião, foram apresentadas com maior destaque, as atividades referentes à topografia. A finalidade era reforçar que só através desse trabalho é que se poderia avaliar com clareza a magnitude dos impactos que a linha causaria nas Terras Indígenas. Ainda foi abordada na reunião, a conscientização da disposição da empresa em discutir e informar as comunidades indígenas sobre todas as características do empreendimento para que eles pudessem participar de todo o processo, e que eles poderiam, a qualquer momento, convocar outras reuniões. Posteriormente, em julho de 1997, a Eletronorte recebeu correspondências das comunidades indígenas e suas associações informando que autorizavam a execução dos trabalhos topográficos, visando definir o traçado da linha de transmissão.

O indigenista da Eletronorte relata a forma como ocorreu esse processo, do qual participaram:

“(...) e aí nós andamos com eles, com os topógrafos antes de fazer a topografia propriamente dita e nós íamos desviando, que era o nosso plano ambiental, plano da minha assessoria era esconder a linha. Esconder como? Você passar pela estrada, pelos caminhos e não vê-la dentro da terra indígena para não agredir a paisagem. Para um engenheiro é lindo uma linha de transmissão no cocorocó de uma serra, mas, para um ambientalista verdadeiro, é horroroso, no meio daquela natureza pura ter um equipamento daquele. A idéia era esconder a linha. O plano ambiental era esconder a linha – não ver dentro da terra indígena para não agredir a paisagem. Então nós escolhemos junto com os índios – várias equipes revezando com as lideranças - onde a linha ia passar (José Porfírio Fontenele de Carvalho, assessor/consultor indigenista da Eletronorte. Entrevista realizada em 14/06/2011).

Realizados os trabalhos topográficos na região, com a participação ativa dos representantes das comunidades, a Eletronorte emitiu, em agosto de 1997, o relatório preliminar do levantamento realizado durante os trabalhos topográficos128 de avaliação e fixação do traçado da linha de transmissão. Esse relatório foi dirigido às comunidades indígenas e apontou itens como: a área de interferência nas terras indígenas; as características da área atingida; as principais ocorrências no levantamento topográfico; a indenização; as modificações do traçado inicial e os impactos prováveis com a construção da linha de transmissão.

127 Relatório Final das Atividades do Programa São Marcos no período de 13/05/2004 a 06/01/2004 Coordenação Geral: José Porfílio Fontenele de Carvalho e Daniella Vanessa Abrantes Martins.

Na TI Ponta da Serra a interferência seria de 3,8 km. Havia a presença de habitantes indígenas próximas ao eixo da linha de transmissão (99 metros). O relatório apresentou a necessidade de modificação do traçado inicial através da mudança no eixo da linha em função de proximidade com residência de índios. Alguns impactos prováveis com a construção da linha foram identificados, como a derrubada de árvores e construção de estradas de acesso ao local de montagem das torres. Na TI São Marcos, os trabalhos identificaram cinco trechos, que totalizaram 66,5 km de área de interferência. O relatório ainda informou como elas seriam atingidas, os impactos prováveis com a construção e se haveria necessidade de modificação do traçado original ou não. Apenas no trecho “Maloca Sabiá – Maloca Boca Da Mata” foi identificada modificação do traçado inicial, com o afastamento do eixo da linha visando distanciar-se o máximo das residências dos índios. Apenas uma casa ficou a aproximadamente 80 metros do eixo da linha de transmissão.

Ao final dos estudos topográficos foi realizada uma reunião na sede da administração regional da FUNAI, em Boa Vista, com os representantes da Comissão Interinstitucional, os representantes indígenas que participaram dos estudos, além dos membros da equipe indigenista da Eletronorte e de técnicos do Departamento de Meio Ambiente da Eletrobras. Nos relatos dos representantes indigenistas, foram destacados pontos por eles considerados positivos129 nesse processo, como: colaboração ao invés de conflito; que a experiência com o trabalho, apesar de cansativa, foi muito boa para conhecer. Apesar de pontos positivos, restava ainda por parte deles, a certeza de que queriam que a Linha fosse construída.

Os representantes das associações, principalmente do CIR e da APIR enfatizaram a necessidade de estudos específicos, bem como de explicações sobre o fato de construir uma Linha de Transmissão como alternativa à Hidrelétrica de Cotingo (NUTI, 2006). Os representantes da APIR comparam esse processo de negociação com o projeto de Cotingo. Embora o trabalho estivesse sendo feito com esta preocupação de diálogo, nesses moldes, Cotingo também poderia se concretizar e eles não sabiam disso. Para eles, o que ocorreu de fato, foi a transferência do problema (o empreendimento atravessa terras indígenas). Na ocasião, o representante do CIR esclareceu que a proposta deles era pela alternativa do Linhão, mas que o fato de passar pela terra indígena São Marcos não era do conhecimento da associação. Afirmou ainda, que Cotingo também passaria por São Marcos. Com relação à necessidade de estudos, todos concordavam. Esses estudos tinham que acontecer com o

129 A pesquisadora Mirian Nuti acompanhou a realização da reunião realizada no dia 01.09.1997. Os relatos dos representantes indígenas foram registrados naquela ocasião: in loco (NUTI, 2006).

acompanhamento deles e que a FUNAI disponibilizasse técnicos para que eles pudessem analisar o empreendimento.

A possibilidade de se encontrar um caminho alternativo contornando a TI São Marcos não foi interessante. Segundo a Eletronorte, isso implicaria aumentar o impacto ambiental já que teria que passar por uma região maior de selva. Por outro lado, as comunidades indígenas temiam a possibilidade de não se livrarem dos invasores, no caso da Linha passar por fora da terra indígena São Marcos. Essa situação deixou os líderes em desvantagem negociadora.

4.4.1.3 Resultado das negociações: as reivindicações das comunidades afetadas e o Termo de